Raimundo Rodrigues Pereira. O escândalo de Daniel Dantas — Duas investigações. São Paulo: Ed. Manifesto, 2010. 325p.
Lúcio Flávio Vilar Lírio é o autor de uma frase lapidar: polícia é polícia, bandido é bandido. Ele sabia do que estava falando: foi o bandido mais charmoso da crônica brasileira. Um dos raros bandidos rebeldes, ou românticos. Nunca transacionou com policiais. Morreu cedo por isso.
Sua máxima pode servir de paráfrase para a relação dos jornalistas com os policiais. Ambos costumam andar pelos mesmos lugares, usando métodos semelhantes e se justificando com a defesa da lei e da verdade. Por isso, convivem muito mais e melhor com a polícia do que os bandidos, ainda que nem sempre seja possível distinguir quem é quem.
Certa vez, quando estava cercado de microfones e obrigado a responder a uma saraivada de perguntas, sem tempo e fôlego para pensar, o então senador Jarbas Passarinho, que sempre teve humor e raciocínio rápido, recorreu a uma frase de efeito para amansar os repórteres selvagens à sua volta: “Se tivéssemos usado jornalistas nos IPMs [Inquéritos Policiais Militares, utilizados pelo regime militar, a partir de 1964, contra os seus inimigos], teríamos arrancado tudo que queríamos saber dos indiciados”. Ao lado do ex-ministro, acrescentei minha frase: “E não teriam precisado torturar ninguém”. Passarinho ainda teve presença de espírito para rir, embora num tom palidamente amarelo.
O poder de um jornalista, diferentemente de um bandido ou de um policial, que são seus interlocutores, deve derivar apenas da sua inteligência, da potência da sua dialética, dos métodos de investigação que utiliza e da ética que delimita o seu campo de atuação. Com essas características, ele é um dos elementos fundamentais da democracia. Tem a missão de confrontar o poder, pondo em xeque as versões oficiais, identificando os fatos, desmascarando as farsas e tratando de transformar a informação num bem do patrimônio coletivo. Para que cumpra esse papel, o jornalista é, por definição, um outsider, um auditor dos poderes constituídos, um remador contra a maré do conformismo e da submissão, um fiscal do povo, um auditor da sociedade.
Precisa se expor, correr riscos, quando necessário, incluído o risco de errar. O que não pode é aceitar pratos feitos, verdades acondicionadas em dossiês formados por algum agente do enredo, por grupos de pressão e, muito menos, pelo governo. Presta atenção ao que ouve e procura reproduzir com fidelidade o que lhe dizem, quando funciona como entrevistador. Submetendo, porém, ao teste de consistência e à demonstração todos os dados que lhe chegam.
Claro que deve se resguardar dos equívocos, mas errare humanum est, diziam os latinos, sempre ladinos na retórica. Mas se o preço para anunciar uma novidade realmente relevante e do interesse público é arriscar-se ao erro, que venha o cálice amargo. Assim os interessados se manifestarão, os prejudicados contestarão e, talvez, os ratos saiam das suas tocas. O jornalismo que não exerce o ofício de provocar as manifestações da sociedade e a tarefa pedagógica de se antecipar à consumação dos fatos, ao mesmo tempo em que farejar tendências e perspectivas, é cosmética.
Ao lidar com todos os estratos da sociedade, em todos os lugares, em qualquer situação, atravessando cordões de isolamento, penetrando os grossos volumes da burocracia, destripando as contas e os códigos, indo atrás de cada um dos personagens do acontecimento da ocasião, o jornalismo se torna uma via específica de conhecimento, um caminho heurístico próprio, a forma de poder mais democrática e eficiente ao alcance do cidadão. É assim que se explica a frase aparentemente inconseqüente de Millôr Fernandes, o mais sábio dos sábios humoristas: jornalismo é oposição, o resto é armazém de secos & molhados.
O jornalista Raimundo Rodrigues Pereira deu mais uma vez sua contribuição a esse jornalismo com o livro lançado no final do ano passado e que só não passou em branquíssimas nuvens porque a Folha de S. Paulo lhe dedicou uma matéria. O desinteresse da imprensa contrasta com a relevância do tema ao qual Raimundo dedicou seu livro, em boa parte composto por artigos que ele já publicara.
Antes dessa abordagem, a visão predominante sobre o affaire era que o seu personagem principal, o banqueiro baiano Daniel Dantas, era o vilão da história. Ele formara um patrimônio notável, a partir de um mínimo de capital próprio, aproveitando-se de informações privilegiadas e formas de pressão ilícitas para enriquecer com a privatização das empresas estatais de telefonia.
Quando um justiceiro, o delegado da Polícia Federal Protógenes Queiroz, com o decidido apoio de um juiz e de um promotor de São Paulo, começou a investigar e desnudou todas as maracutaias do banqueiro inescrupuloso, culminando por prendê-lo, forças ocultas se puseram em campo, soltaram Dantas, afastaram Protógenes da apuração e o transformaram de autor do inquérito em réu. O malfeito só não se consumou por inteiro porque o delegado, afastado da PF, conseguiu se eleger deputado federal pelo Partido Comunista do Brasil, na onda da enxurrada de votos do humorista Tiririca, um analfabeto funcional (como um terço da população brasileira) que se tornou o mais votado dos candidatos à Câmara Federal em todo o país, com sobras suficientes para arrastar consigo o caçador de bandidos.
A história que Raimundo Pereira reconstitui é o oposto desse enredo. Ele argumenta que Daniel Dantas foi escolhido para bode expiatório (ou boi de piranha) de uma trama iniciada em 1999, quando o presidente da república era o sociólogo Fernando Henrique Cardoso e o PSDB era o partido no poder. Justamente nesse ano o PT mudou sua estratégia de conquista do poder, que resultara em três fracassos do seu candidato único, Luiz Inácio Lula da Silva.
Ao invés de bater de frente com os tucanos e contrapor ao programa reformista da social-democracia à brasileira um programa de testada socialista, os petistas decidiram contornar as diferenças e investir nas semelhanças com a prática que, desde o Plano Real, com a criação de uma moeda estável, levara à criação de empresas de porte internacional no Brasil e de um mercado consumidor avantajado.
Ao invés de “Fora, FHC”, o “Lulinha paz e amor” do marqueteiro Duda Mendonça. Duda recebeu pelo menos o equivalente a 10 milhões de reais, em dinheiro depositado numa ilha fiscal internacional, pela sua nova criatura. O depósito foi feito no BankBoston nas ilhas Cayman. O banco teve como presidente mundial o presidente do Banco Central do Brasil durante todo o desenrolar dessa intricada novela, Henrique Meireles.
Justamente em 1999 um personagem sem a menor parecença com o perfil petista, o empresário Luiz Fernando Demarco, se aproximou de um apparatchick petista, o nissei Luís Gushiken, para aumentar seu poder de fogo contra seu principal inimigo, Daniel Dantas. A animosidade começara nesse ano, quando Dantas propôs uma ação contra Demarco em Cayman. O contato não parecia de imediato tão forte, mas começou a mostrar seu potencial quando o PT elegeu a maioria da diretoria da Previ, o fundo de pensão do Banco do Brasil, o maior dos fundos de estatais, dono de um dos principais ativos de aplicações do país.
O presidente do fundo passou a ser Sérgio Rosa, outro personagem que não tem coerência com o catálogo público de perfis do então Partido dos Trabalhadores. Gerente de um patrimônio de 70 bilhões de reais, Rosa passou a circular com desenvoltura no circuito da grande finança, nacional e internacional, que se expandia “como nunca antes na história” em função da movimentação de dinheiro provocada pela venda das empresas estatais.
Essa dinheirama podia formar um apêndice de “recursos não contabilizados” suficiente para irrigar caixa dois de campanha eleitoral e vários outros escaninhos parasitários. O PT, o partido da ética, o único partido ideológico no espectro político brasileiro, passava a comparecer ao caixa dos fundos paralelos para crescer, se equipar e assim deixar de ser apenas um concorrente olímpico. Para a eleição de 2002, a determinação era clara — e já não mais original: vencer ou vencer.
Nesse momento em que a origem do dinheiro deixou de ser verificada e tudo se tornava legítimo pela alquimia do discurso petista, havia uma ordem, emanada de ninguém outro que não Gushiken, o futuro homem da comunicação do governo Lula (que convocara Demarco para trabalhar no comitê eleitoral): nada do dinheiro de Daniel Dantas, que não era ético. Uma diretriz estranha num colegiado que já possuía de tudo, menos anjos e inocentes.
A prevenção a Dantas pode ter uma justificativa: ele tinha sua origem associada ao babalorixá da Bahia e eminência parda do Brasil, o senador Antônio Carlos Magalhães. Ou ao fato de ser um empresário predador. Mas Lula beijou a mão de Jader Barbalho, saudando-o como seu mestre em política. E empresários com fúria devastadora maior do que a do dono do Opportunity passaram a ser tratados como amigos da casa. Menos Dantas.
Raimundo Pereira sustenta que já então estava traçado um projeto que seria posto em execução pelos 10 anos seguintes, começando ainda na gestão de FHC, graças à conquista da Previ pelo PT: modificar a correlação de forças da situação criada depois da venda das estatais das telecomunicações. Espanhóis, portugueses, mexicanos e americanos ficaram com suas suculentas fatias do negócio montado no 5º maior mercado mundial desse setor. Os italianos chegaram tarde, mas queriam recuperar o tempo perdido.
Como abrir uma brecha na nova divisão? Não podia ser investindo contra inimigos poderosos, como a Telefônica, a Portugal Telecom, o Citi Bank ou Carlos Slim. O negócio era partir para cima de Daniel Dantas, o parceiro mais frágil desse conglomerado. Frágil em função da participação societária ou do patrimônio próprio. Mas poderoso porque, tendo tão pouco de seu, administrava tanto dos outros.
Raimundo Pereira explica o paradoxo dizendo que se trata de uma situação que se generalizou quando os Estados Unidos liberaram a atuação dos bancos, permitindo-lhes combinar função comercial com a de fomento, através de fundos, como o que Dantas criou. Mesmo que não tivessem operação de massa, poderiam lidar com pequeno número de clientes dotados de elevado capital para investir. Eram os “gestores de recursos”, que cresceram a hipertrofia tal que provocou a explosão do sistema financeiro internacional em 2008. Os “deuses do universo” mostraram o que eram.
No entanto, no caso do Brasil, independentemente desse novo ator, havia um elemento específico: os tucanos consideravam Dantas seu aliado preferencial. Enquanto para os petistas ele era suspeito como premissa, o pressuposto dos tucanos é que ele era o escolhido. Demônio para os primeiros, anjo para os segundos. Na verdade, à parte suas qualidades pessoais, Dantas era quase nada no pesado jogo em que ele se meteu.
Os contendores eram faixa preta. A Telecom Itália, para enfrentá-lo e vencê-lo, além da própria força (tendo atrás de si a Pirelli e o governo italiano), contou com o apoio da Previ, do Banco do Brasil, do Ministério da Fazenda e do já então presidente Lula.
Uma das virtudes de Raimundo está na meticulosidade, na paciência em buscar provas e juntar peças isoladas. Graças a essa capacidade, ele desvenda outro paradoxo: como é que o governo Lula, posto no poder em nome dos trabalhadores e da nacionalidade, acabou favorecendo uma multinacional italiana e, depois dela, arrematou a desnacionalização da telefonia, iniciada pelos tucanos?
Não é simples montar a equação que leva a esse resultado. Afinal, Lula abriu mais uma vez as burras do BNDES, fazendo-o liberar R$ 13,6 bilhões, a pretexto de dar a oportunidade a dois grupos nacionais, o da Andrade Gutierrez e o de Carlos Jereissati, de criar uma tele “verde-amarela”. Uma vez juntadas as partes na constituição da nova “supertele”, a Oi, vem exatamente a Portugal Telecom e abocanha a mal-nascida tele canarinha, numa conjuminação que expurga tudo que é nacional para só deixar em campo espanhóis, portugueses, americanos, italianos e mexicanos.
Tal metamorfose, obrada por um especialista na matéria, não é fruto de um estalar de dedos. Resulta de muita espionagem, coação, maquiavelismo, jogo sujo, corrupção e fraude. O delegado Protógenes Queiroz não é o cavaleiro imaculado nessa epopéia fétida. Ele é um elemento da engrenagem, embora incompetente e ególatra. Por isso é que Raimundo Pereira contrapõe o que o delegado da PF apurou ao que o próprio jornalista levantou, justapondo as duas investigações, que dão título ao livro. Pode parecer presunção e excesso de confiança do jornalista, que, assim, se torna tão personagem da história quanto o delegado. Jornalista nunca é personagem: é o reportador de fatos, o escrivão da frota, o arauto das novidades.
No entanto, é convincente o recurso metodológico que Raimundo adotou. Pode servir de lição para jornalistas que se viciaram na mera reprodução de dossiês, preparados por determinadas fontes para atender apenas às necessidades delas e não aos interesses da opinião pública. Raimundo leu os milhares de páginas da documentação oficial, mas as analisou e criticou. E não ficou no gabinete de leitura: foi aos cenários dos acontecimentos fazer verificações.
Pode-se argumentar, como fez Sérgio Rosa, que ele foi tendencioso, ouvindo mais — e, em alguns casos, só — a Daniel Dantas. Pode-se também lamentar que ele tenha dado atenção menor às participações do advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, ex-deputado federal do PT de São Paulo, e José Dirceu, o poderoso chefe da Casa Civil de Lula, que seria aliado de Dantas, cuja participação, mesmo quando já estava fora do governo, parece ter sido decisiva.
De fato, numa leitura apressada ou preventa, o livro tem o gosto de obra de encomenda, feita para salvar a pele da fonte das informações. Daniel Dantas sai bem melhor do livro de Raimundo do que de qualquer outro texto já escrito a respeito. Contudo, todas as afirmações do livro estão documentadas e demonstradas. Há provas dos dois lados da contenda, inclusive uma carta do até pouco tempo atrás todo-poderoso presidente da Previ, Sérgio Rosa, que acusa justamente Raimundo de ter trocado o chifre demoníaco de Dantas por uma auréola beatificante. Mas quem disser o contrário terá que se dar a trabalho igual ou maior do que o do jornalista.
Ao contrário da maioria do que aparece na imprensa escrita ou na internet, não há dúvida que o trabalho de Raimundo é jornalismo – e da melhor qualidade (embora, talvez pela pressa na produção do livro, haja escorregões na escrita). Pode estar errado, pode até ser tendencioso (se é desonesto, a questão deve ser bem apurada antes de virar especulação à base da dedução em tese), mas ele obriga a repensar a privatização das teles e, a partir desse tema, as mudanças que estão ocorrendo no Brasil. Sem os esquemas explicativos do passado, que se defasaram e só têm valor retrospectivo.
Se polícia, bandido e jornalistas são personagens essenciais da trama nacional, há outros que surgiram e se agigantaram ao mesmo tempo em que o país cresceu de forma acelerada, graças, sobretudo, à entrada de dezenas de bilhões de dólares, “como nunca antes”, fazendo a reserva internacional se aproximar de um registro recorde: US$ 300 bilhões. São financistas, conselheiros, agentes de informação, delegados federais e burocratas.
Alguns deles já estavam no palco. A novidade é que saíram do fundo de cena para a posição principal. E não de forma convencional: o segundo homem de Daniel Dantas, Carlos Rodemburgo, pode estar um momento em Nova York e no outro em Redenção, no sul do Pará, combatendo a invasão das enormes fazendas do Oppotunity ou negociando com financistas internacionais. E delegados de polícia, envergando ternos de corte refinado, podem circular por capitais do mundo como se fossem neo-007, sem o mesmo charme, mas com a presunção de mais carisma, como Protógenes, o primeiro policial federal a se eleger político federal, rompendo a tênue linha que ainda demarca as diferenças e os campos próprios.
O escândalo Daniel Dantas não pode permanecer nos bastidores. Tem que vir a público e ser destripado para que de suas partes surjam não as versões utilitárias e montadas, como a da TV Globo, num dos mais tristes momentos de cumplicidade aética do jornalismo brasileiro nos últimos tempos, montando um “flagrante” de corrupção, mas aquela verdade que resistir ao teste de consistência da sociedade. Não se começa uma corrida assim com a verdade. Ela é alcançada no fim. E o fim desta história ainda está muito longe.
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Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006), Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007), Memória do cotidiano (2008) e A agressão (imprensa e violência na Amazônia) (2008).
Fonte: Jornal Pessoal & Gramsci e o Brasil.
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