Reforma política (III): observações sobre o voto distrital puro
Nos meus dois textos anteriores sobre reforma política, insisti em que nenhuma proposta deve ser encarada como panacéia. A questão é de fato muito complexa e ninguém de bom senso pode pensar que só existe um caminho para o aprimoramento das instituições.
Nas atuais circunstâncias, creio que o debate mais relevante é o relacionado ao sistema eleitoral (expressão definida nos posts precedentes). Farei hoje algumas indicações a respeito das qualidades e defeitos do sistema vigente (proporcional com lista aberta) e, mais extensamente, do “distrital puro” (majoritário uninominal). Reitero, porém, que não há sistema perfeito; todos têm aspectos positivos e negativos.
A seu favor, o sistema vigente parece-me ter dois pontos. Primeiro, o fato de já estar implantado e em operação há muito tempo. Toda reforma envolve custos, tanto financeiros e administrativos quanto de aprendizagem por parte dos usuários, ou seja, dos eleitores. Uma vantagem do sistema vigente, talvez a principal, é que essa parte já está resolvida.
Outro aspecto positivo do atual sistema é ser operado de maneira idêntica nos três níveis da federação. De fato, o procedimento utilizado para eleger os deputados federais e estaduais e os vereadores é exatamente o mesmo. Há uma isonomia total nos conceitos, na tecnologia eletrônica de votação e nos cálculos que determinam quantas cadeiras cabem aos diferentes partidos e quem são os eleitos dentro de cada um deles.
Mas aí acabam, a meu juízo, as vantagens. O princípio proporcional parece-me em si questionável, por privilegiar em excesso o objetivo de representar a diversidade das correntes de opinião e por tornar o processo político-eleitoral demasiado complexo para o eleitor de média ou baixa escolaridade.
No caso brasileiro, diversos outros fatores elevam essas duas dificuldades à enésima potência. Com a super-representação dos estados menos populosos, o próprio princípio da proporcionalidade (pedra de toque de todo o sistema) sofre grave distorção. Associado ao voto em lista aberta, este princípio produz um forte efeito de fragmentação sobre o sistema de partidos. Sem a cláusula de barreira, pior ainda.
Acrescente-se, no caso dos deputados federais, que o processo eleitoral se dá separadamente nas 27 unidades da federação, cada uma funcionando, para este fim, como um sistema político autônomo. Para um país historicamente carente de organização partidária, dificilmente alguém poderia conceber um conjunto de regras pior que o vigente.
O sistema distrital puro pode ou não se mostrar mais positivo no que se refere à organização partidária. Para refletir sobre este ponto, precisaríamos trabalhar em cima de um projeto específico e analisar suas eventuais conexões com outras regras institucionais, a exemplo do que fiz acima. Concentrar-me-ei, portanto, em outros aspectos que considero igualmente relevantes.
Primeiro, pensando em separado sobre cada um dos três níveis federativos, o distrital puro pode ser recomendado por sua simplicidade.
Tomando como exemplo as eleições para a Câmara Federal, cada estado seria dividido em tantos distritos quantas as vagas a preencher; em São Paulo, por exemplo, teríamos 70 distritos, cada um elegendo um deputado. Cada partido apresentando um (e só um) candidato por distrito, a vaga cabe àquele que obtiver a maioria simples dos votos.
Mas a simplicidade a que acima me referi é, digamos assim, “horizontal”. No sentido “vertical”, ou seja, na combinação da eleição federal com a estadual, ela deixa de existir. Serão necessários estudos técnicos e possivelmente alterações no número de deputados estaduais de cada estado com vistas a facilitar a articulação dos distritos federais com os estaduais.
Uma segunda vantagem do distrital puro parece-me ser um enorme incentivo à participação. Advirtamos que incentivo é uma coisa, participação efetiva é outra. No mundo inteiro, a participação efetiva é influenciada por numerosos fatores, e por isso variam bastante ao longo do tempo, entre regiões, entre graus educacionais etc.
Mas é certo que o sistema distrital puro reduz drasticamente o custo da informação para o eleitor, o que por si só representa um importante estímulo.
Custo de informação menor, maior incentivo a participar, portanto participação potencialmente mais alta. Nessa linha de raciocínio, podemos também dar como provável um círculo vicioso: mais participação, maior potencial de interesse pelas políticas públicas, mais vigilância e fiscalização por parte do eleitor. Maior accountability, lembrando aqui a expressão inglesa que diz tudo isso de uma vez.
Com mais informação, motivação, proximidade geográfica entre eleitor e candidato e uma eleição em geral polarizada – muito mais parecida com a de prefeito que com a de deputado no atual sistema – é plausível pensar numa melhoria substancial nas bases do sistema político.
No sistema vigente, o eleitor não se identifica muito com os partidos, pelas razões que apontei acima, e tampouco com o seu candidato individual a deputado, porque não o elegeu num pleito majoritário e em confronto direto. Esta é uma das razões (uma das…) da debilidade dos vínculos entre representantes e representados, ou seja, do desligamento do parlamentar em relação à sua base (qualquer base). Ele não se sente pressionado a prestar contas ou a justificar suas posições, o eleitor ou não as conhece ou não encontra formas de pressionar.
Em terceiro lugar, o voto distrital cria a possibilidade de se trabalhar CONTRA a eleição de determinado candidato. Esta vantagem decorre da simplicidade do mecanismo – semelhante à de uma eleição para prefeito-, da facilidade de visualizar os lados em confronto e do caráter em geral mais polarizado desse tipo de eleição. No sistema vigente, tal possibilidade obviamente não existe. Basta lembrar que a apresentação pelos partidos de suas respectivas listas de candidatos necessariamente se reduz ao desfile mais ou menos macabro de fotos e currículos pela TV que todos conhecemos. Um parlamentar conhecido como corrupto precisará, no máximo, gastar mais dinheiro para se reeleger; resistência ele não enfrentará nenhuma.
Por último, o voto distrital puro permite pensar na prática norte-americana do recall, ou voto revocatório de mandato. É a idéia de os eleitores “deselegerem” um parlamentar que a seu ver haja desonrado os compromissos assumidos.
Eu não morro de amores pelo recall; penso que é um mecanismo a ser empregado de maneira judiciosa e infreqüente, sob pena de tumultuar o sistema da representação política.
Mas não vejo possibilidade alguma de sua adoção dentro do sistema vigente. Tempos atrás, um grupo de juristas cogitou implantá-lo sem mudar a mecânica eleitoral, o que me pareceu um redondo disparate.
Nenhum comentário:
Postar um comentário