quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Cabrera Infante e o avatar de Lolita

ANTONIO GONÇALVES FILHO – O Estado de S.Paulo

O prólogo de seu romance póstumo, A Ninfa Inconstante, o escritor cubano Guillermo Cabrera Infante (1929-2005) tenta explicar as razões de ter escolhido o passado para se refugiar – justamente no momento mais crítico de sua existência, o da morte próxima. A vida, conclui Cabrera Infante, “é um prêt-à-porter se “pret” for uma abreviatura de pretérito”. Pode ser. O autor estava, então, reduzido à condição de um homem com muito passado, pouco presente e nenhum futuro – parafraseando a definição de uma garota de programa num filme. É lícito, portanto, que tenha resgatado da cesta do lixo algumas páginas anotadas à mão e construído com elas um romance sobre a relação de uma ninfeta sedutora com um crítico maduro.

Cabrera Infante, claro, não poderia ter feito um remake de Lolita, até mesmo porque há uma distância entre ele e Nabokov impossível de ser ignorada – e não está em jogo o inegável talento literário do cubano, mas a forma como ele trata um caso amoroso fadado ao fiasco – com humor e frivolidade. Nabokov podia ter algo do seu personagem Humbert, que se apaixona por uma ninfeta de 12 anos, mas disfarçava bem. Cabrera Infante, ao contar a história de Estela Morris, a inconstante ninfa do título, mal pode camuflar a persona literária do autor na narrativa. Aliás, não teme que o leitor busque correspondência entre os dois, narrador e autor. Ele mesmo se encarrega disso. Ambos têm a mesma profissão quando Estela, aos 16 anos, conhece Gezinho, crítico de cinema sarcástico – Cabrera Infante foi também um grande crítico – que não perde oportunidade de tripudiar sobre a ignorância da ninfeta com chistes, alusões literárias, citações cinematográficas e digressões.

Parece evidente que, no fim da vida, Infante usou seu romance para resolver essa tensão entre o extremo racionalismo de um intelectual, dado a relativizar os sentimentos por meio de artifícios verbais, e o assumido hedonismo de um crítico cubano que viveu a noite habanera pré-revolucionária. O lascivo Gezinho, que persegue garotas por La Rampa e descobre a loura Estela no Malecón, é Infante descendo as quadras que concentravam as cafeterias e boates de Havana na época do ditador Fulgencio Batista, deposto em 1959 por Fidel Castro. O escritor, que apoiou a revolução num primeiro momento, chegou a ser adido cultural do governo revolucionário de Castro em Bruxelas, mas logo renunciou à diplomacia e a Fidel, fixando residência em Londres e só voltando à ilha em 1965 para o enterro da mãe.

Também por isso Infante poderia ter feito desse seu derradeiro livro um ajuste de contas com o castrismo, mas preferiu transferir essa tarefa para o autobiográfico Corpos Divinos (que sai em 2012 pela mesma editora). A Ninfeta Inconstante, segundo a mulher de Infante, a atriz Miriam Gómez, seria uma ponte entre Três Tristes Tigres e Havana Para Um Infante Defunto – no entanto, frágil demais para ligar essas duas obras-primas. De qualquer modo, há passagens engraçadas e diálogos cortantes no livro sobre esses dois amantes fugazes atraídos por motivos diversos. Estela, a adolescente, quer usar o crítico para matar a madrasta. Este, que não é bobo e conhece a história da solteirona Lizzie Borden (1860-1927) – seu pai e a madrasta foram mortos a machadadas e ela foi absolvida -, não se deixa convencer pela ninfeta. Mantém Estelita à deriva, não esquecendo as razões reais da sáfica Lizzie, que tinha um caso com a empregada, ao transferir alguns traços de sua personalidade para a protagonista do seu romance.

Esse pastiche faz parte do show de erudição de Infante, que ainda recorre a Swift, Sterne, Nietzsche e Dostoiévski na autocaricatura literária destinada a não ser mais que um bolero noir. Como diz Infante, há perguntas que soam como boleros, o que não é grave, segundo ele. “O grave é quando as respostas soam a boleros.” E a resposta do grande escritor cubano à crise do romance contemporâneo é diderotiana: como Sterne, ele conduz o leitor e seus personagens por veredas que unem a literatura e a filosofia, mas abandona-os na encruzilhada em que a leviandade se encontra com alta cultura. Estelita não é Lolita, parece claro. É um avatar construído às pressas e de aparência tosca
12/02/2011

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