segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

RUDÁ RICCI (Entrevista)

Inclusão na era Lula deixa bomba-relógio para Dilma desativar

SOCIÓLOGO DIZ QUE DISCUSSÃO SOBRE SALÁRIO MÍNIMO É O COMEÇO DE UM LONGO PROCESSO DE NEGOCIAÇÃO DOS AJUSTES DO MODELO LULISTA

UIRÁ MACHADO

A inclusão social pelo consumo ocorrida no governo Lula trouxe para a presidente Dilma Rousseff uma "espécie de bomba-relógio", e a disputa sobre o aumento real do salário mínimo é parte desse problema, afirma o sociólogo Rudá Ricci.
Autor do livro "Lulismo -Da Era dos Movimentos Sociais à Ascensão da Nova Classe Média Brasileira", Ricci avalia que a manutenção desse processo é o "primeiro grande problema" de Dilma, mais progressista no discurso, mas, de prática, "mais conservadora que Lula".
O sociólogo diz ainda que a presidente se identifica com a classe média tradicional, enquanto Lula é a expressão da nova classe C -segmento que, para Ricci, não aponta para uma nova divisão de classes.

Folha - O primeiro grande embate de Dilma foi com as centrais sindicais. Quanto desse choque é explicado pela ausência de Lula e pelo estilo da presidente? Rudá Ricci - Trata-se de uma situação das mais complexas. O movimento sindical brasileiro é, quase todo, sindicalismo de resultados. É negociador por natureza, e não contestador. O reajuste do salário mínimo é um aríete visível e popular, mas que será utilizado para negociações mais amplas.
Mas é evidente que o perfil de Dilma, marcado pelo estilo gerencial, influencia nessa relação. Vamos perceber que um gestor público tem que ter jogo de cintura.


A queda de braço em torno do salário mínimo sugere que as centrais sindicais estão retomando pautas antigas?
Não acredito. Minha leitura é que se trata de um movimento de estudo sobre as novas diretrizes governamentais. As centrais sindicais ocuparam um espaço importante no governo, e não apenas uma parceria.


O governo Lula cooptou os movimentos sociais?
Em parte. Diria que se trata de um pacto social não explícito. No que tange ao movimento sindical, orienta-se para a construção de um modelo neocorporativo. Não se trata de uma situação clássica de cooptação, mas da convergência de interesses políticos. Não há ingênuos em nenhum dos lados.


Qual o significado simbólico da votação do mínimo?
Essa votação teve o simbolismo de mostrar quão sólida é a base governista no Congresso. Agora, os blocos parlamentares podem se movimentar com mais segurança.
Foi a ponta do iceberg de um longo processo de negociação dos ajustes do modelo lulista. Será um processo que dará muito trabalho aos operadores políticos do governo.


Já é possível fazer comparações entre Lula e Dilma no que diz respeito ao trato com os movimentos sociais?
Dilma faz um discurso mais progressista, mas adota uma prática mais conservadora que Lula.
Lula é um negociador nato e fala a linguagem da nova classe C, pragmática e, muitas vezes, cínica. Dilma é técnica e ascética como a classe média tradicional.
Não se trata apenas de um líder carismático e outro racional. Trata-se de empatia política, de qual segmento social é liderado.
Mas o Brasil ainda vive uma transição na sua composição social. A classe média tradicional perdeu seu poder de formar opinião num país com mobilidade social enrijecida. Temo que Dilma não tenha "feeling" político para entender esse momento.


Dilma recebe do lulismo alguma herança negativa?
O primeiro grande problema é como conduzirá o financiamento da inclusão social pelo consumo que o lulismo montou. Aí está parte das dificuldades de relacionamento com o mundo do trabalho.
Se a política tributária é regressiva, se a transferência de renda está com seu financiamento no limite e se o lulismo é um pacto pelo estatal-desenvolvimentismo de tipo fordista, conciliando interesses diversos, como resolver a equação?
O aumento do consumo já faz com que 60% da população esteja endividada. Criou-se uma expectativa em relação ao aumento real do salário mínimo para o ano seguinte, salvando parte do orçamento familiar.
Há uma espécie de bomba-relógio a ser desativada. Esta é a herança: a expectativa de lideranças sociais e da classe C, vorazes consumidores.


O sociólogo Jessé Souza argumenta que não é correto falar em "nova classe média". Como o sr. avalia essa questão?
A série histórica que temos no país e que segue o Critério Brasil [usado em pesquisas de opinião e de mercado para definir classes econômicas] é baseada na estratificação social fundada no poder aquisitivo. Estamos presos, para efeito de análise comparativa, a essa base.
Na análise de Jessé Souza, vejo um duplo equívoco. Primeiro, ele não percebe que se trata de uma transição na composição das classes sociais a partir da forte ascensão social dos últimos anos.
Estamos falando de mudança de ideário e hábitos no interior das classes, em especial da classe C. Isso já ocorreu outras vezes no país.
O segundo equívoco é que os conceitos de "ralé" e "batalhador" são impressionistas e partem de um juízo de valor. Batalhador sempre houve no Brasil. Assusta-me essa vertente conservadora de definir o país a partir do empenho individual.


Mas há diferenças em relação à classe média tradicional?
A nova classe C é desconfiada e tem na família seu porto seguro. Afinal, foi sua família que sofreu a pobreza. O conservadorismo aparece como elemento de negação do passado.
Essa é a expressão cultural da nova classe C, que obviamente se distingue da classe média tradicional. Mas não temos uma nova divisão de classes, apenas uma nova composição em virtude da ascensão social de momento.


Qual o peso da ascensão da nova classe média na sustentação do lulismo?
Total. O discurso de Lula, e até mesmo a sua imagem, cria forte empatia com essa nova classe média.
Lula era a afirmação desses hábitos populares que invadem o mundo das elites e chegam ao cargo máximo do poder público. Lula foi e é a expressão maior da ascensão da nova classe C.

RAIO-X RUDÁ RICCI, 48
Sociólogo, mestre em ciência política (Unicamp) e doutor em ciências sociais (Unicamp)
Diretor-geral do Instituto Cultiva e membro da Executiva Nacional do Fórum Brasil do Orçamento

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