sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Risco de dar um passo para trás (Alberto Carlos Almeida)

Há reformas que levam o nome de reformas. Existem muitos exemplos dessa modalidade de mudança na agenda de privatizações do governo Fernando Henrique. FHC disse que iria fazer reformas e as fez. Há também aquelas reformas que são profundas, mas não levam o nome de reformas. Foi assim com a aprovação da reeleição. O instituto da reeleição, já está muito bem provado por vários estudos acadêmicos, fez com que nossos governantes se tornassem mais responsáveis do ponto de vista fiscal. O PT passou por uma enorme reforma interna, que não levou esse nome, mas teve um formidável impacto no funcionamento do sistema político brasileiro. O PT no governo, já no primeiro mandato de Lula, se reformou inteiramente, deixou de ser um partido obrista e radical para ser um moderado partido social-democrata.

Estamos agora diante de propostas de reforma que são, na realidade, antirreformas. Elas significam mais um passo para trás do que para frente. São várias as propostas na direção de mexer naquilo que vem funcionando razoavelmente bem nos últimos anos. Uma dessas é a ideia não testada do distritão. Aliás, que nome infeliz! Distritão rima com mensalão. O tal distritão não é adotado em nenhum país do mundo. Se não me falha a memória, foi o nosso sistema no Brasil Império, quando não tínhamos partidos políticos. A proposta básica é que os Estados sejam distritos eleitorais e os candidatos mais votados sejam eleitos deputados. Feito isso, de fato poderemos abolir os partidos políticos. Se um Estado elege 50 deputados estaduais, teremos 50 minigovernadores que para ser eleitos dependeram apenas de seu esforço.

A minha principal crítica a propostas dessa natureza é uma crítica tipicamente conservadora, inspirada em Edmund Burke, o grande pensador conservador que escreveu o famoso livro "Reflexões sobre a Revolução em França". O argumento conservador é muito simples. Nós, individualmente, quando cuidamos de nossa vida, tendemos a ser conservadores. Tomem-se as nossas relações pessoais e de amizade. No decorrer dos anos elas mudam, porém de maneira incremental. Nós não trocamos de um ano para o outro todo o nosso conjunto de amigos e conhecidos. Isso não é feito porque causaria uma enorme disrupção, de consequências imprevisíveis, em nossa vida. Mais ainda, caso quiséssemos voltar atrás, seria muito mais difícil do que se a mudança tivesse sido incremental.

Como somos conservadores e prudentes quando o que está em jogo é cada um de nós, o que dizer então quando se trata de coisas que têm impacto sobre a vida de milhões de pessoas. As instituições políticas, em particular as de representação, têm um enorme impacto sobre a vida de 135 milhões de eleitores brasileiros habilitados a votar. Mexer em tais instituições é mexer com a vida de todas essas pessoas. A ideia de reformar inteiramente um sistema eleitoral, abandonando o já testado sistema proporcional e adotando o distrital (com ou sem distritão) é resultado do espírito de inovação. É resultado não de um saber coletivo e social, mas de um saber egoísta e intelectual.

Alguns intelectuais leram alguns livros e aprenderam que há países que adotam o sistema distrital. Além disso, tais intelectuais pressupõem que o sistema brasileiro funciona mal. Nem sequer investigaram quais são as críticas em seus respectivos países ao sistema distrital. Há atualmente na Grã-Bretanha, que deu origem ao sistema distrital, uma grande discussão para que haja algum tipo de voto proporcional. Ou seja, tais intelectuais querem adotar aquilo que os seus criadores estão pensando em modificar. Continuando o raciocínio, tais defensores do voto distrital idealizam positivamente o que acontece nos países que adotam esse sistema e idealizam negativamente o que acontece no Brasil com o voto proporcional. Aí é fácil concluir que nós precisamos adotar o sistema distrital.

É preciso deixar as idealizações de lado. Elas levam com muita frequência a propostas mirabolantes que desconsideram o saber prático já acumulado nas instituições existentes. É preciso admitir que há alguma boa razão para o Brasil adotar o sistema proporcional, senão ele não seria tão longevo em nosso país. Aliás, cabem aqui os parênteses: o que realmente importa na discussão sobre a reforma de nosso sistema eleitoral é se queremos um sistema proporcional, tal como é hoje, ou se queremos um sistema não proporcional, o que é o caso do distrital. Devemos saber as consequências dos dois sistemas. Quando se adota o sistema distrital, caminha-se para uma disputa somente entre dois grandes partidos. É comum também que o partido mais votado, caso fique com 40% dos votos, eleja 55% ou mais dos deputados. Se quisermos isso, então devemos modificar nosso atual sistema.

Mais interessante ainda foi o que aconteceu com a maior parte dos países do mundo. É extremamente comum que um país inicie sua jornada pelo mundo democrático com o voto distrital, mas depois de alguns anos reforme o sistema caminhando para o sistema proporcional. Ou seja, abandonar o distrital e adotar o proporcional é muito comum. Não se pode afirmar o mesmo da trajetória inversa. São muito raros os casos de países que tinham sistemas proporcionais e passaram para o sistema distrital. O motivo é simples: como há uma grande redução do número de partidos importantes, há um poderoso veto a uma reforma nessa direção. É justamente isso que estamos vendo no Brasil. Caso o nosso sistema se transforme no distrital, devemos dar adeus o quanto antes ao PDT, PSB, PC do B, PV, PPS e muitos outros partidos que têm poucos deputados. O distritão provavelmente teria o mesmo efeito.

O mais interessante é analisar a lista de países que adotam o sistema distrital. Na sua forma pura, os países que o adotam são Grã-Bretanha, Estados Unidos, Canadá, Índia, Paquistão, Bangladesh, Nepal, Malaui e Zâmbia. Desnecessário mostrar que há uma forte correlação entre influência anglo-saxã e adoção do sistema distrital puro. Os outros países que adotam esse sistema com algumas variações são França, Mali, Austrália, Tailândia e Filipinas. No total, 14 países optaram, baseados em sua história, seus costumes, suas influências coloniais, pelo sistema distrital.

A lista de países que optaram pelo sistema proporcional é muito mais longa. Além do Brasil, ela conta com África do Sul, Argentina, Áustria, Bélgica, Bulgária, Colômbia, Costa Rica, Dinamarca, Espanha, Finlândia, Grécia, Holanda, Israel, Madagascar, Moçambique, Noruega, Paraguai, Peru, Polônia, Portugal, República Tcheca, Suécia, Suíça, Turquia, Uruguai e Irlanda. São 27 países. Quase o dobro da primeira lista os países de voto distrital.

O mais interessante diz respeito aos países que adotam os sistemas batizados de mistos, isto é, combinam características do sistema eleitoral distrital e do proporcional. São 13: Coreia do Sul, Equador, Japão, Rússia, Taiwan, Ucrânia, Alemanha, Bolívia, Hungria, Itália, México, Nova Zelândia e Venezuela. A Nova Zelândia, apesar da influência anglo-saxã, abandonou o sistema distrital puro que adotava no passado.

A Alemanha é sempre mencionada no Brasil como um grande exemplo de sistema eleitoral. Há aí mais uma idealização. Em que pese o nome de sistema misto, no sistema alemão a proporção ou número de cadeiras no parlamento que vai para cada partido é definido pela regra da representação proporcional. Os nomes de quem ocupa as cadeiras são distribuídos 50% para políticos eleitos em distritos e 50% para políticos eleitos na lista partidária. Isso significa que o sistema eleitoral alemão é, em seu espírito, um sistema proporcional, repito, o tamanho de cada partido é definido pela regra proporcional.

Os argumentos a favor da representação proporcional que adotamos são os seguintes: é o sistema que vem sendo utilizado no Brasil em todos os períodos democráticos que vivemos, ele está baseado na nossa experiência social e na demanda de nossos representados e representantes e, ainda que tenha muitos defeitos, a sua mera longevidade indica que tem alguma funcionalidade no nosso contexto. Além disso, a maioria das democracias utiliza o sistema proporcional. Mais ainda, é comum que um país mude do sistema distrital para o proporcional, mas não o inverso. Isso também diz alguma coisa: a pressão por proporcionalidade é sempre mais forte do que pelo seu oposto.

O argumento a favor do sistema distrital, com distritinho ou distritão, se resume a afirmar (mas não necessariamente a provar empiricamente) que o nosso é ruim, que ele é um desastre e que precisa ser modificado para algo realmente diferente. Convenhamos, trata-se de um argumento muito fraco. Melhor do que uma proposta mirabolante para nosso contexto histórico e social é simplesmente fazer mudanças incrementais em nosso sistema: proibir coligações, criar algum tipo de cláusula de barreira e até mesmo fazer uma lista fechada permitindo ao eleitor alterar a ordem da lista. Essas seriam propostas realistas que provavelmente resultariam em uma efetiva melhora de nossa representação. Caso isso não acontecesse, teríamos como voltar atrás sem grandes consequências negativas para o sistema. O mesmo não se pode dizer, infelizmente, do sistema distrital.

Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" e "O Dedo na Ferida: Menos Imposto, Mais Consumo".

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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