Silviano Santiago – O Estado de S.Paulo
O romance 2666, escrito pelo chileno Roberto Bolaño (1953-2003), é enorme. Traduzido e publicado no Brasil, há que franquear-lhe algum espaço. Sua leitura não cabe numa coluna. Cabe a digressão sobre traços formais do novo cosmopolitismo literário por ele representado. O mais saliente dos traços é o retorno do personagem. Dividido em cinco alentados volumes, 2666 se abre por A Parte dos Críticos. A narrativa só se engrena depois de apresentar os personagens Pelletier, Espinoza, Morini e Liz Norton, sucessivamente. Caracterizados como críticos literários, os quatro estarão especulando sobre a notável obra de Benno von Archimboldi, que os tinha enfeitiçado em suas respectivas universidades de origem: as de Paris, Madri, Turim e Londres. Carismático e furtivo, Archimboldi é, entre outros possíveis, mutação do romancista alemão B. Traven (1882-1969), de misteriosa e fascinante biografia mexicana e autor de O Tesouro da Sierra Madre, filmado por John Huston em 1948.
À metade do caminho do primeiro volume, os três universitários machos relativizam a obsessão por Archimboldi e se apaixonam por Liz Norton. Reencontram a camaradagem na imitação da viagem do escritor francês Marcel Schwob à ilha de Samoa. (Em 1901, Schwob lá fora em peregrinação ao túmulo de Robert Louis Stevenson.) Os quatro críticos viajam, então, ao México na esperança de conhecerem finalmente o jamais visto Archimboldi. Já na cidade de Santa Teresa (mix de Nogales e Juárez), aos quatro se soma Oscar Amalfitano, professor chileno ali exilado, que lhes serve de guia. O segundo volume de 2666 se chama A Parte de Amalfitano e, ao tratar deste personagem em detalhe, o retira da galeria dos menores de A Parte dos Críticos.
A vontade de compor um romance por personagem acarreta, por um lado, o desinteresse em concebê-lo como exercício curto de escrita lúdica, na esteira de Jorge Luís Borges e de epígonos como Enrique Vila-Matas. E acarreta, por outro lado, a retomada da narrativa por biografia(s) explícita(s), característica saliente e nobre da ficção inglesa setecentista de Daniel Defoe e Laurence Sterne. Em 2666, o personagem só garante o direito à trama romanesca se trouxer às costas a própria e original biografia. À semelhança de Sísifo, cada personagem tenta levar o rochedo da vida até o alto da montanha, para vê-lo rolar precipício abaixo. O detalhe torna o romance de Bolaño herdeiro do célebre final do já citado O Tesouro da Sierra Madre, de John Huston, inspirado por sua vez em Greed, de Erich von Stroheim. A originalidade da narrativa global está na soma das existências trágicas ou tragicômicas.
E não estou me referindo apenas à composição de romance por cinco personagens de primeira plana. Em 2666, à semelhança do que acontece em ficção de Honoré de Balzac ou em fala de motorista de táxi no nosso cotidiano, a multidão de personagens secundários também destila parte essencial de suas vidas. Sem ser indagado, o desconhecido que aborda o italiano Morini no Hyde Park aluga seus ouvidos com a narrativa dos lances que o levaram a ser um desempregado a mais. Atente-se, ainda, para o pintor Edwin Jones. Pela alta qualidade de seus autorretratos, ele enobrece um bairro londrino até então entregue às mãos de pobres. A gentrificação é parasita do destemor do pintor genial que, sem motivo aparente, decepa uma das mãos.
A conta do retorno do personagem ao romance do novo milênio é paga pela representação em nada baralhada e pouco caprichosa do tempo narrativo. O tempo se desenvolve pela horizontalidade. É linear-evolutivo, como em romance flaubertiano.
Fato saliente é a volta de personagem menor ao núcleo estável da narrativa, ou o momento em que um deles, o Almafitano, por exemplo, domina o segundo dos cinco volumes. Até então incompleta, a biografia do personagem menor se arredonda por nova perspectiva espaciotemporal. Ao reaparecer, o personagem menor interrompe o tempo narrativo horizontal pela sua verticalização e obriga o leitor a reconsiderar a linearidade temporal tomada de empréstimo ao romance realista-naturalista. O narrador subordina o recurso à onipresença de Deus e o nomeia como “a coincidência”.
O recurso à coincidência é teorizado pelo romance na passagem em que o pintor Edwin Jones, então enclausurado em manicômio suíço, retorna ao núcleo estável. Esclarece o texto: “A coincidência é a liberdade total a que estamos expostos pela nossa própria natureza. A coincidência não obedece a leis, é como Deus que se manifesta a cada segundo em nosso planeta. Um Deus incompreensível com gestos incompreensíveis dirigidos a suas criaturas incompreensíveis”. A coincidência alvoroça todo e qualquer leitor de literatura, em particular o cadeirante Morini. O crítico italiano viaja sozinho a Montreux. Quer saber a razão pela qual Edwin decepou a mão. Instado, o pintor automutilado a diz ao ouvido do paraplégico. As palavras não ganharão letra de imprensa. O incompreensível permanece incompreensível na própria coincidência.
Na estética romanesca, Gustave Flaubert tornou indispensável o uso da elipse. Em A Educação Sentimental (1869) o narrador não descreve as várias viagens de Frédéric Moreau. Só diz que “Ele viajou, conheceu a melancolia dos navios…”. O narrador de Bolaño é também econômico. Atente-se para a passagem em que a narrativa evita o longo diálogo entre Pelletier e Espinosa, ou o jogo de campo e contracampo, como se diz em linguagem cinematográfica. O leitor não tem acesso ao texto integral da conversa sem-fim. O narrador diz: “Os vinte minutos iniciais tiveram um tom trágico em que a palavra destino foi empregada dez vezes e a palavra amizade vinte e quatro. O nome Liz Norton foi pronunciado cinquenta vezes, nove delas em vão. A palavra Paris foi dita em sete ocasiões”. Belíssimo exemplo de elipse na transcrição de diálogo.
Pena que a morte aos 50 anos tenha roubado de Bolaño a possibilidade de aprimorar o texto de 2666. Na falta do tempo hábil para a busca da perfeição, os traços formais levantados podem às vezes se esfarinhar. Guardam a atualidade, no entanto.
Fonte: Estadão (05/02/2011)
Nenhum comentário:
Postar um comentário