sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Quinze anos sem Caio F. (Marcia Denser)

“Toda essa ciganagem, toda essa vertiginosa engrenagem, todo este furor sem rumo nem horizontes, constituem uma espécie de síntese da vida de Caio F. Quanto à sua obra, esta não morre: já ficou para a posteridade”

Neste mês de fevereiro faz 15 anos desde a morte de Caio Fernando Abreu, em fevereiro de 1996, de Aids. E assim como Truman Capote, cuja biografia escrita por Gerald Clark foi ao meu encontro no silêncio duma biblioteca pública precisamente no dia e mês de sua morte ocorrida em agosto de 1984, as Cartas de Caio F., obra organizada por Ítalo Moriconi (Rio, Aeroplano, 2002) também me reencontraram como primeiro e único livro que desencaixotei - porque mudei de casa em meados de janeiro - ambos a reivindicar sua lembrança, lutando contra a desmemória do tempo presente.

Falando em mudança, a questão do nomadismo e da geografia em Caio F. é uma constante.

Percorrendo as Cartas, nota-se que ele se muda de forma incessante: de Porto Alegre para o Rio, retorno à Porto Alegre, daí o ano passado na Europa, no “desbunde” lisérgico-juvenil dos anos 70, pulando por vários lugares, Estocolmo, Amsterdã, Paris, Londres, retorno a POA, então nova mudança para o Rio, onde não fica muito tempo, porque retorna novamente a Sampa, etc.

O sociólogo Sérgio Miceli acertou na mosca quando considerou o nomadismo – tanto horizontal, no espaço geográfico, quanto vertical, na escala social – como um dos aspectos mais marcantes dos escritores brasileiros, e a coisa vêm de longe.

Se eu dissesse que a “multiplicidade de experiências propiciada pelas várias mudanças ativam a criatividade” iria soar horrivelmente acadêmico, portanto não digo ou digo me gozando de saída porque não sei se é bem assim. Em Caio F. existe a perseguição duma espécie de Passárgada ou Shangri-lá ou paraíso-em-suspenso, que poderia ocorrer sempre no próximo e em outro lugar, jamais no presente, seja onde for que ele estivesse.

Objetivamente, para Caio F este Outro Lugar se chamava “Passo de Guanxuma”, cidade fictícia sobre a qual ele vivia planejando escrever um romance. E não teve tempo de fazê-lo. Segundo Moriconi, o “Passo” era uma projeção imaginária da sua Santiago do Boqueirão natal e é referida no romance “Limite Branco”, no conto “Uma praiazinha de areia bem clara, ali, na beira da sanga”. Na coletânea “Ovelhas Negras”, Caio incluiu um esboço do que seria o primeiro capítulo do romance sobre este paradise lost, out and nowhere, existente não no aqui e agora, mas fora e em nenhum lugar.

No entanto, a releitura das Cartas sempre me entristece, porque a morte prematura de Caio F. aos 47 anos me mostra quão longe pode ir o auto-engano. E não me perguntem por que, não quero nem vou explicar, porque eu mesma, com mais de cinquenta, acabo de sair de um outro – que me custou quatro anos e recursos impossíveis de serem repostos – como se eu tivesse todo o tempo do mundo, quando é tempo que agora já não tenho.

Um rápido flash da geografia em Caio F: “Aqui tá esquisito. Na verdade, não gosto do Rio. Este canto (o hotel em Santa Teresa onde morou em 83) é bom: pela janela vejo uma mangueira enorme, samambaias (...). Mas a cidade (o Rio), ah a cidade, que miséria. Um favelão. Detestei São Paulo também nos dias que passei aí. Achei pobre e barulhenta, um trânsito infernal. (...) Quando vou à cidade, volto irritado. Silêncio, ando obcecado por silêncio. Um silêncio que te permita ouvir o ruído do vento. E o bater do coração. E se possível isso que chamamos Deus, existindo devagarinho em cada coisa.” (Cartas, pg.66).

Então é isso: toda essa ciganagem, toda essa vertiginosa engrenagem, todo este furor sem rumo nem horizontes, constituem uma espécie de síntese da vida de Caio F. Quanto à sua obra, esta não morre: já ficou para a posteridade.

Fonte: Congresso em Foco

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