Quando fui convidado a dirigir a Funarte, na gestão de Gilberto Gil, nem por um segundo pensei em aceitar. Não tenho vocação para funções administrativas, me perco nos emaranhados técnico-burocráticos, e minhas ambições e desejos só se reconhecem na escrita, no ensino e na música. Não tenho nenhuma intimidade com os complicados lances da gestão pública. O fato chamativo para mim, ao voltar ao assunto, é que a passagem do bastão da cultura do governo Lula para o governo Dilma tem produzido fagulhas, faíscas, fumaça e princípios de incêndio. Nem sempre é fácil saber exatamente onde está o fogo. Entre o realinhamento mais ortodoxo das demandas internas do PT, depois de um estado de exceção política dado pela escolha heterodoxa de Gil, e a definição de um perfil próprio da ministra Ana de Hollanda, que ainda está em andamento, questões controvertidas e, mais que isso, recalcadas, vieram à tona.
É curioso que o espectro dos anos 60 tenha voltado a pairar sobre o panorama. Gil ele mesmo já era um sinal disso, inseparável dos grandes temas culturais disparados pela música popular do período. Na simbologia da escolha de Ana de Hollanda conta certamente, além do fato de ser mulher, e do seu currículo de esquerda, a mística do nome Buarque de Hollanda. O seu vínculo com a defesa do formato já estabelecido para o direito autoral contra as inovações propostas por Gil e Juca veio, de quebra, como um indicador sintomático das tensões latentes entre o MinC anterior e setores musicais organizados em torno da defesa do formato atual do Ecad e do combate sem tréguas à pirataria (que tem não poucas analogias com as contradições do combate às drogas).
Caetano Veloso tornou-se também um protagonista da discussão ao chamar as posições contrárias para uma explicitação mais precisa dos seus pontos de vista, oferecendo-se como possível mediador e, no processo, acabando por identificar-se mais com os críticos das inovações internéticas do que com seus defensores. Caetano passa do princípio liberal da livre expressão para o princípio liberal da livre competição, assegurado historicamente ao proprietário de matrizes na época da “repetição” (“Ninguém toca em um centavo dos meus direitos”). Por um motivo a ser esclarecido, no entanto, os defensores corporativos da universalidade dos direitos autorais veem a livre flexibilização, por aqueles autores que assim o queiram, e para o universo de suas próprias obras, como uma ameaça à universalidade daqueles direitos. Esse é um foco gerador de mal entendidos e de fantasmas que o estado atual da discussão terá que ultrapassar.
Na última semana a imprensa conseguiu finalmente o que tenta há muitos anos: desencadear a troca de farpas explícitas entre Gilberto Gil e Caetano Veloso. Segundo a “Folha de S. Paulo”, Gil quer que Caetano saia da posição dos que falam do assunto sem ir aos pontos reais em jogo na abertura a novas opções de vínculo autoral. Caetano responde que Gil tem uma visão algo deslumbrada da internet, e diz temer, nas ilusões do processo, a implosão do Ecad, a instituição arrecadadora em música, à maneira do que aconteceu com a Embrafilme no período Collor. (Eu gostaria de saber onde Caetano localiza exatamente esse temor de um semelhante desmanche.)
A complexidade da cena inclui ainda outro personagem significativo. Ocupando a direção do respeitado monastério da pesquisa histórico-literária que é a Casa de Rui Barbosa, Emir Sader reclama para esta uma posição de intervenção ativa e politizada. Contrapor-se à especialização da vida intelectual retomando “as grandes discussões sobre o país”, agitando o clima cultural, é uma ambição enérgica para a instituição, embora soe deslocada diante da antiga vocação documental da Casa. Sader fala em trazer para o debate as vozes da esquerda que não têm espaço na mídia, e em fomentar a reflexão sobre o Brasil à altura dos grandes momentos históricos, como o período getulista (Caio Prado, Gilberto Freyre, Mário de Andrade) e os anos 50-60 (CPC, Bossa Nova, Iseb, teatro, Darcy Ribeiro, sem citar o tropicalismo). Diferentemente dos quadros mais fisiológicos do PT cultural, assume uma posição ideológica que, sem dizer, marca posição contra a gestão anterior.
A posição política de fundo, em Gilberto Gil, em sintonia com a sua poética e presente nos Pontos de Cultura, é a de fermentar o todo. O todo é a capacidade humana de criar-se e recriar-se, capacidade a ser reconhecida democraticamente em toda parte onde ela aconteça. A visão cultural de fundo, em Emir Sader, é de contrapor ao todo (no caso, a totalidade social administrada, a mídia, o capital) uma teoria crítica capaz de evidenciar as relações de poder que o comandam. Nesse caso, trata-se de identificar as vozes capazes de exercer essa crítica e levá-la à “massa da população” inconsciente do debate.
Quanta coisa aí lembra vagamente uma complicação atualizada do debate interrompido em 1968. Só que, numa cena à la Tarantino, Emir Sader (empossado por Ana de Hollanda) aponta Gil que aponta Caetano que aponta Emir Sader. A leitura pode ser invertida: Caetano aponta Gil que aponta Emir Sader que aponta Caetano. Se prevalecer a luta de facções dentro do campo cultural, esta será a melhor alegoria do todo, engolfando consigo inclusive a nossa mais amada canção popular. Se prevalecer a vontade de esclarecer obscuridades contidas nas grandes mudanças, quem sabe não seja este, mesmo, e muito maior que todos nós, um grande momento?
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