Três lançamentos nos EUA marcam o centenário de Elizabeth Bishop, incluindo correspondência inédita, na qual revelou desconfiança em relação à qualidade de seus próprios – e poucos – poemas
‘O esnobismo governa boa parte do meu gosto’, disse em carta
Lúcia Guimarães
Os 100 anos do nascimento de Elizabeth Bishop, no dia 8, estão sendo marcados por três lançamentos de obras da poeta canadense-americana. Conferências literárias na Europa e nos Estados Unidos revisitam a obra da escritora, que viveu no Brasil. O centenário de Bishop tem o potencial de comunicar a um público maior quanto é significativa a obra da poeta e ensaísta. A frase anterior teria sido recebida com desgosto pela escritora, conhecida por sua precisão, já que “potencial”, “comunicar” e “significativa” faziam parte de uma lista negra que ela distribuía a seus alunos na Universidade Harvard. “Se quer escrever bem, evite estas palavras”, diz a página que Bishop fazia circular pela sala de aula, em 1975. A relação de 27 palavras incluía ainda “fazer sexo”, “carisma” e “relacionamento”, entre outras palavras e expressões.
Essa inusitada lista é um dos textos inéditos do livro Prose (Prosa), editado pelo amigo de Bishop, o poeta e crítico Lloyd Schwartz, que falou com exclusividade ao Estado – e fez questão de lembrar que ela “detestava inflação e hipérbole”.
Os três volumes que saem agora pela Farrar, Straus & Giroux, que editou a maior parte da sua obra, vão fazer a alegria dos admiradores restritos à dieta magra de 115 poemas que Bishop publicou. A escritora, que não discutia sua obra com ninguém, se expõe em cartas inéditas trocadas com a poeta Anne Stevenson, a primeira a escrever uma biografia de Bishop, em 1966. As cartas enviadas de Petrópolis ou do Rio começam formais, e um ano depois são assinadas assim: “Com carinho, Elizabeth”. Nelas, Bishop se mostra, como sempre, ambivalente sobre a qualidade de seus poemas. Diz que sente paixão por pintura e prefere falar mais de artistas plásticos que de poesia – “Quero voltar ao mundo como pintora, compositora ou médica”. Fala de seu amor pela música brasileira, embora critique a crescente influência americana, numa referência à bossa nova. Lamenta não ter escrito letras para canções populares. “O esnobismo governa boa parte do meu gosto”, diz em carta.
Apesar da importância de suas traduções de poetas brasileiros como Drummond e Bandeira, ela revela não se sentir motivada para traduzir. “Não acredito na empreitada e considero as traduções de poemas muito literais.” O editor de Prose, Lloyd Schwartz, discorda. “Há uma diferença entre ser literal e literária. Acho que ela está reconhecendo que o poeta nunca pode se satisfazer com a tradução.”
A aproximação do então doutorando de Harvard com a tímida e reservada professora começou no ano-novo, em 1974, quando o feriado esvaziou o campus em Cambridge e Bishop se viu sozinha no hospital, com o ombro deslocado. Schwartz escrevia sua tese de doutorado sobre a poesia dela e recebeu um telefonema constrangido da professora. Bishop precisava que alguém abrisse seu apartamento para recolher objetos pessoais. O estudante voltou todos os dias e uma semana de conversas no hospital selou a amizade.
Apesar de ter sido o coeditor da prosa de Bishop para o volume da Library of America, Schwartz disse que sua visão da obra evoluiu. “É tarefa difícil porque a própria Elizabeth nunca organizou os textos.” Ele decidiu isolar os artigos de crítica literária e reunir memórias e ficção porque ela “escreve suas memórias como se fossem ficção. Não é que ela invente os fatos mas o estilo das memórias é o de contos”.
Numa carta a Anne Stevenson, Bishop cita um poema sobre uma rua onde morou em Manhattan, e diz que, sempre que pode, usa sonhos como material. Além dos lançamentos de Prose e de Poems, um terceiro volume, Elizabeth Bishop and The New Yorker, editado por Joelle Biele, é dedicado à correspondência da escritora com a revista, que publicou seus poemas desde a década de 1930 até quando ela morreu, em 1979.
Schwartz lamenta que a New Yorker editasse os versos para publicação. Sim, Bishop era “corrigida” para se adaptar ao que ele chama de “o estilo da casa”. Mas a própria autora cuidava de reverter os poemas à forma original para publicação em livro.
O material inédito tem sabor especial para o leitor brasileiro. As observações sobre sua obra, nas cartas a Anne Stevenson, são recheadas de comentários sobre o Brasil. Quando exalta Isaac Babel, Bishop diz: “Gostaria que aparecesse algum gênio brasileiro escrevendo como ele – ainda que o Brasil esteja mais próximo de Chekhov.”
Uma seção de 85 páginas sob o título Brasil recupera o livro encomendado pela Time Life World Library, cujo texto foi tão mutilado que Bishop rejeitou a versão da editora. “Ela não era jornalista e aceitou a encomenda porque precisava”, lembra Schwartz. O editor, além de restaurar os textos que ele considera uma crônica do País que se modernizava, conseguiu encontrar o último capítulo do livro, censurado pelo grupo Time Life e considerado perdido. Nele, Bishop afirma que os EUA têm muito a aprender com o Brasil, especialmente nas relações raciais. Ela conclui – num tom sentimental que não se permitia em versos – dizendo que, apesar da marcha irreversível para o desenvolvimento industrial, o Brasil ainda é um país onde “o homem-humano, por mais pobre que seja, ainda é mais importante do que o homem-produtor, o homem-consumidor ou o homem-político”. E exalta a doçura e a paciência dos brasileiros: “Poderia haver uma revolução aqui a cada mês, mas eles nunca tiveram o governo que merecem e eu me pergunto quanto tempo vai se passar até conseguirem um.”
A seção sobre o Brasil contém generalizações, mas passagens como as do ensaio Uma Nova Capital, Aldous Huxley e Alguns Índios, de 1958, primam pela incomparável atenção com o detalhe que colocou Elizabeth Bishop na companhia dos grandes poetas da língua inglesa. Ao chegar à poeirenta capital em construção, lamentou a “insipidez democrática” do nome Brasília. Na página ou na paisagem, ela esperava apenas arte.
Fonte: O Estado de S.Paulo (06/02/2011)
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