Passados dois meses do governo Dilma, já é possível uma primeira avaliação, evidentemente preliminar, da nova presidente e de suas medidas. Uma primeira constatação se impõe: ela age com luz própria, abandonando discretamente, mas seguramente, o papel de criatura que lhe estava reservado. As suas diferenças em relação ao governo anterior são visíveis e podem ser classificadas em dois grandes grupos, um de estilo e forma, outro de conteúdo propriamente dito.
No que diz respeito ao primeiro, convém ressaltar as suas raras aparições púbicas, dedicando-se à gestão, o que é certamente a primeira função de um governante. Não mais temos as aparições cotidianas do ex-presidente Lula, que confundia a arte de governar com um palanque eleitoral constante. Esse traço se acentuou nos últimos anos e semanas de seu mandato, como se a ansiedade de ter de deixar o poder lhe atingisse ainda mais. Muitas de suas declarações eram incoerentes e contraditórias. Agora, a mudança de estilo é total, pois a presidente Dilma pesa suas aparições públicas e transmite mensagens por seus assessores e ministros, resguardando a sua própria imagem. Evita conflitos e não traz as brigas para si.
Entende que sua tarefa básica - a de ser a administração - passa por despachos e controle dos ministros, equacionando outro grande problema, o de ministros que agiam em seus domínios próprios como se fossem senhores feudais. Observa-se que os novos (e velhos) ministros agem diferentemente, evitando declarações que destoem do que consideram as concepções da presidente. Na ausência delas, a cautela passou a ser uma virtude.
No que diz respeito ao segundo grupo, há mudanças de conteúdo em curso, embora a nova presidente aja com prudência, para não descontentar o seu mentor. É bem verdade que a mudança de estilo pode ser uma simples mudança de forma, mas ela pode sinalizar também para questões substanciais. Citaria duas que merecem atenção: relações exteriores e ajuste fiscal.
Um dos pontos mais criticados, para não dizer mais detestáveis, do governo anterior foi a conivência com as piores ditaduras do planeta, num desprezo manifesto para com a questão dos direitos humanos. As brincadeiras de péssimo gosto com opositores cubanos e iranianos, alguns à beira da morte, foram o ápice de um processo que em muito contribuiu para macular a imagem externa do País. Hoje, ironicamente, os "amigos" e "irmãos" do presidente Lula estão caindo num salutar efeito dominó nos países árabes e muçulmanos, com seus povos se insurgindo contra seus respectivos tiranos, alguns sanguinários do pior tipo, como Kadafi na Líbia. Quem criticava era porque não entendia nada da política externa brasileira. Os resultados estão à vista, basta perguntar aos povos árabes. Felizmente, a nova presidente não está sendo vítima do oportunismo, pois se levantou contra o apedrejamento das mulheres no Irã, sinalizando concretamente, antes dos levantes árabes, que haveria uma inflexão da política externa brasileira em matéria de direitos humanos.
Outro ponto que merece ser destacado é a sua preocupação com o ajuste fiscal, o que se traduz pelo corte anunciado de R$ 50 bilhões e por uma postura firme na negociação e aprovação do novo salário mínimo. É bem verdade que o corte anunciado não foi ainda detalhado nem se sabe se o atual governo continuará a maquiar suas contas via financiamentos ao BNDES por meio de recursos do Tesouro e outras medidas semelhantes. No entanto, um crédito deve ser dado à nova presidente.
Sobre a negociação do valor do salário mínimo e sua regra de concessão, o novo governo foi firme com centrais sindicais que, no governo anterior, tinham se acostumado a ditar políticas, sendo recebidas no tapete vermelho. Ao não verem mais o tapete estendido, rebelaram-se e alguns dirigentes sindicais chegaram às raias da má educação, num comportamento absolutamente condenável. Alguns não souberam entender a mudança que, no entanto, a médio prazo lhes é muito favorável. O PT agiu com absoluta responsabilidade, atuando como um partido de governo, que não faz oposição a si mesmo. Não houve aqui esquizofrenia, com o partido adotando uma política de responsabilidade fiscal, independentemente de que esta corresponda ou não às suas bandeiras históricas.
Contudo, os tucanos e a oposição em geral deram um triste espetáculo de irresponsabilidade, com prejuízos também institucionais. O que o governo e o PT fizeram foi seguir uma marca do governo Fernando Henrique de responsabilidade fiscal. As oposições, entretanto, que no poder seguiram essa mesma linha, agora, por razões meramente eleitorais, adotaram uma postura infantil, sendo contra para serem simplesmente do contra, nada avançando de substantivo. Não foram politicamente responsáveis. Se tivessem sido, teriam votado com o governo, aperfeiçoando o mecanismo de reajuste, aceitando o valor proposto e abrindo um novo caminho de negociação que tem como valor maior o bem do País.
Se tivessem sido responsáveis, teriam contribuído para um novo panorama institucional. Do ponto de vista das ideias, diria que teriam aberto um campo de "social-democratização", com o PT identificando-se mais com essa concepção e os tucanos agindo consoante concepções que dizem defender. Haveria uma saudável inflexão de ambos os lados. O ganho de um campo por assim dizer "social-democrata", por exemplo, se traduziria por menores concessões que o próprio governo, na ausência de colaboração das oposições, é obrigado a fazer ao fisiologismo e à corrupção. Se houvesse um diálogo baseado em ideias e em efetivas medidas para governar, os grupos que vicejam na defesa de interesses os mais pequenos e mesquinhos não teriam como prosperar. Urge que um novo campo político se instaure entre nós, que reúna partidos da situação e da oposição, visando a criar um ambiente salutar, cujo maior proveito seja o bem público. E a oposição é também por isso responsável.
Professor de Filosofia/UfRGS
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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