Parte do Carnaval carioca foi parar nos recantos mais discretos e menos frequentados da história
DIZEM QUE O Carnaval do Rio renasceu. É engano.
O Carnaval matriz dos carnavais, o Carnaval das marchinhas e as marchinhas do Carnaval, os pés e as gingas e o êxtase dos foliões, e os próprios foliões, não estão mais aqui. Não é que tenham morrido.
Ninguém os viu em agonia, nem os viu mortos. Foram-se de repente, sem escândalo e sem resistir, compreensivos e conformados, como quem já não se sente à vontade no ambiente que era seu e, deslocado, sai até por delicadeza com os novos presentes, sai sem ruído e sem adeus.
Parte do Carnaval carioca foi parar nos recantos mais discretos e menos frequentados da história. As marchinhas tomaram os caminhos sinuosos e incertos da memória. Às vezes, da nostalgia.
Na ocasião, nem deu para perceber muito bem a mudança. Os ares gerais não eram favoráveis à malícia das marchinhas e a celebrações de alegria, o verde-oliva contrapondo-se ao colorido da vida, os tambores das bandas alijando os tamborins, o passo da ordem unida ferindo o chão dos passos do samba.
O Sambódromo tentou ser uma compensação. Seu bom propósito trouxe o mau resultado de uma distância a distinguir a rua do povo, transmudado de partícipe em espectador, e o samba, transformado em espetáculo alheio.
Tudo coincidente, na forma e no modo, com a era do "Brasil Grande", do "pra frente Brasil", "milagre do crescimento", a Hollywood suburbana de Joãosinho Trinta a criar o adequado e falsamente luxuoso gigantismo do novo gênero. Nada a ver com o Carnaval do Rio, nada mais da identidade carioca, tudo a gosto da TV. E não rejeite imitações.
As escolas são companhias de um espetáculo anual. O samba de escola deu lugar a um ritmo que não se sabe o que é, não tem nome, uma espécie de corrida rítmica, para empurrar a maratona que se desenrola em disparada à frente da bateria. E o velho samba no pé? É como os pisadinhos aflitos da tentativa de matar umas baratinhas penetras na sala. De vez em quando, um giro bem-vindo da moça para mostrar o outro lado da lua.
Talvez nada disso tenha importância alguma para o que sucedeu ao Carnaval do Rio. As escolas de samba, as autênticas, eram uma parte de uma só noite do Carnaval carioca. Os blocos, já na saída do trabalho sexta-feira, e depois de manhã, à tarde e à noite até a entrada da Quarta-Feira de Cinzas, os blocos eram o Carnaval carioca.
Até, ou por isso mesmo, o Bloco do Eu Sozinho. Por toda a cidade, os blocos de apenas dezenas ou pouco mais, nem sempre com sua pequena bateria, faziam a comunhão de alegria e humor que levava às últimas e melhores consequências a malícia das marchinhas e o feitiço fervente do samba. Inimitável. Carioca. Carioca da gema.
E os bailes incontáveis. Eram a rua levada aos salões. Alguns, só para quem não desceria, jamais, a pisar a calçada e a rua comuns. Os demais, pela cidade afora, nas quadras, nos galpões, a invasão de todos os espaços.
Dizem que o Carnaval do Rio renasceu trazido por um ressurgimento numeroso dos blocos. Não são blocos. São passeatas. Milhares de pessoas assardinhadas, tangidas por um trio elétrico que abaiana e desencarioca em definitivo a passeata arritmada, sem marchinha na alma e sem samba no pé.
Fica a impressão de que o importante é dizer, depois, eu fui, eu estava lá, eu saí no... Inclusão social da zona sul é assim. Vale para todas as modas.
Qual é o mal do que chamam de ressurgimento do Carnaval do Rio? Em si mesmo, nenhum. É só uma pequena parte de um todo imenso em movimento não sabe para onde. É uma fase, e, é próprio das fases, passará. Como passou o Carnaval verdadeiro, que não renasceu nem pode voltar: seu lugar na gente do Rio não existe mais.
FSP (06/03/11)
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