De
toda parte surgem sinais que testemunham a existência de vida ativa na
política brasileira em busca de mudanças e de novos repertórios. Os mais
visíveis são os que apontam para o processo terminal de passagem, após
longa e penosa maturação, da nossa vetusta tradição de principado para a
República, exemplar na autonomia com que a sociedade e as suas
instituições jurídico-políticas se vêm conduzindo diante do poder
político no chamado processo do mensalão, que leva a julgamento altos
dirigentes do partido hegemônico na coalizão governamental.
Em outro registro, mas
igualmente importante, já se pode constatar, no processo em curso das
eleições municipais, que a pluralidade efetiva reinante na sociedade vem
encontrando seus caminhos ao largo do dirigismo com que a fórmula do
presidencialismo de coalizão, com seu estilo centralizador e vertical,
tem esterilizado a prática política no País.
Não à toa, tal pluralidade, como
é da tradição brasileira, se afirma melhor quando é escorada em
questões federativas, como se verifica nos Estados de Pernambuco e de
Minas Gerais, onde o PSB, um antigo esteio das candidaturas
presidenciais do PT, se apresenta na competição eleitoral, que ora se
abre, com candidaturas forjadas à margem do vértice que articula o
sistema do presidencialismo de coalizão - em Minas Gerais, em aliança
inusitada com o PSDB, partido de oposição.
No caso, são relevantes tanto o
fato de o governador Eduardo Campos (PSB-PE) como o senador Aécio Neves
(PSDB-MG) serem políticos com luz própria, netos e herdeiros de robusto
capital político - de Miguel Arraes, o primeiro, e de Tancredo Neves, o
segundo -, quanto o de serem aspirantes declarados à Presidência da
República; Aécio na próxima sucessão e Campos logo que puder.
Não importa a nomenclatura,
essas duas eleições (em Minas e em Pernambuco), atrás da singela fachada
de locais, são, a rigor, nacionais, como o será, por definição, a da
Prefeitura da capital de São Paulo, além de apontarem para o fato
sensível de que se está diante de uma troca de gerações na política
brasileira. A política - durante tanto tempo um monopólio, em estado
prático, do vértice da coalizão presidencial com o ex-presidente Lula
como o seu principal articulador - dá mostra, afinal, de que se
descentra, com a emergência de focos de formação de vontade com origem
em outros lugares que não os palácios do Planalto.
Esse descentramento, na verdade,
tem um dos seus pontos de partida na dualidade manifesta na própria
natureza da investidura presidencial da presidente Dilma Rousseff, que
apenas encarna a parte material do corpo do "rei", uma vez que sua
representação simbólica, sobretudo para o seu partido, se encontra na
pessoa do seu antecessor, posto em relação metafísica com os seus
militantes e a sua imensa legião de simpatizantes. A sucessão
presidencial, na forma como foi operada, criando a expectativa de que
caberia à presidente o exercício de um mandato-tampão, sublinhou a noção
de que entre governo e poder havia uma distância que ela não poderia,
ou deveria, encurtar.
Os males de saúde que acometeram
o ex-presidente puseram entre parênteses a promessa sebastianista do
seu retorno triunfal em 2014, assim como já dificultam a sua comunicação
com seu partido, seus quadros e simples militantes, desde sempre
dependente do seu envolvimento pessoal, mais pelo exercício de seus
reconhecidos dons carismáticos do que pela persuasão de um argumento
logicamente articulado. O partido, uma confederação de tendências
soldada por trabalhos de Hércules da sua principal liderança, à falta
destes, ao menos sem a onipresença pertinaz a que estava habituado,
ensaia movimentos de autonomia quanto a vigas mestras do lulismo, como o
da CUT em sua adesão à reforma da legislação trabalhista, que ameaça de
divisão a sólida base sindical dos dois mandatos de Lula.
Assim, se Dilma, por estilo
pessoal e vocação, começou o seu mandato com o perfil de gestora do
governo, apontada como uma estranha no ninho da política, viu-se movida à
assunção de papéis políticos, quer na remontagem do seu governo, caso
forte da indicação da engenheira Maria das Graças Foster para a
estratégica Petrobrás, uma técnica de sua estrita confiança, quer na
constituição do que já se pode designar como o núcleo duro do seu
comando político, a esta altura formado por quadros de sua escolha
pessoal, em geral distantes da rede paulista que antes caracterizava os
mandatos de Lula.
É da ocasião, até mesmo pela
crise econômica que ronda o País, com independência das motivações dos
atores envolvidos, que se tente encaminhar a fusão na mesma
representação dos dois corpos do "rei", a material e a simbólica,
processo a que setores do partido e muitos movimentos sociais não
deverão assistir com indiferença, já amargando a lenta passagem do tempo
enquanto não chega a hora - talvez não chegue - de devolver o cetro a
quem entendem ser o seu legítimo dono.
A ambiguidade resultante dessa
configuração dual na cadeia de comando, como seria de esperar, tem
estimulado, no Parlamento e fora dele, uma movimentação desalinhada,
especialmente no PT, quanto a tópicos importantes da política do
governo, tal como ocorre na iniciativa de parlamentares petistas a fim
de extinguir a cláusula do fator previdenciário. Nas bases, em
particular no sindicalismo dos servidores públicos e na militância dos
movimentos sociais, registram-se sinais com a mesma direção - no Rio de
Janeiro, desavindos com a direção do seu partido, militantes vão às ruas
em apoio a um candidato de oposição à coalizão governamental.
Sob esses novos augúrios, a política desmente as cassandras e se refaz para quem tem olhos para ver.
Luiz Werneck Vianna, sociólogo, professor-pesquisador da PUC-Rio
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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