"Lula
malufou" ou "Maluf lulou"? Eu responderia: ambas as coisas, mas Lula
age como diretor da orquestra. Porque tanto Lula quanto Maluf são
encarnações da cultura política patrimonialista, aquela identificada por
Oliveira Vianna (em Instituições Políticas Brasileiras) como "política
alimentar" e que Max Weber chamara de patrimonialismo, ou seja, aquela
forma de organização política em que o Estado emerge como hipertrofia de
um poder patriarcal original, que alarga a sua dominação doméstica
sobre territórios, pessoas e coisas extrapatrimoniais, administrando
tudo como se fosse sua propriedade. Era o que John Locke (1632-1704), na
sua juventude, quando viajou pela França na época de Luís XIV,
identificou como "o mal francês", na pequena obra intitulada De Morbo
Gallico, fazendo referência ao absolutismo do rei que falava de si
mesmo: "L"État c"est moi".
O Partido dos Trabalhadores,
como demonstrou Antônio Paim na obra Para Entender o PT (Londrina:
Instituto Humanidades, 2002), constitui, na História republicana
contemporânea, a mais completa encarnação do patrimonialismo. Lula tem
conduzido o seu partido nessa direção, afastando-o, ciosamente, dos
extremos reformista-modernizador e revolucionário e conservando-o no
patamar da estratégia de privatização do poder para enriquecimento
próprio e dos seus confrades.
É o que o PT tem feito ao longo
destes dez anos: ocupar a máquina do Estado como se fosse sua
propriedade particular, tentando cooptar os outros partidos. O mensalão
seria apenas expediente tático dessa estratégia. E a aproximação com as
tradicionais lideranças patrimonialistas (Sarney, Maluf, etc.,
identificados por Lula como "pessoas especiais") constituiria uma
decorrência natural dela. Nesse sentido, o ex-presidente da República
prestou um grande serviço para o esclarecimento da natureza alimentar da
política petista, tendo posto a nu a sua índole nitidamente
patrimonialista e cooptativa. Nessa negociação de apoios cooptados
entrou a própria Igreja Católica (mãe do PT, no início dos anos 1980,
juntamente com o novo movimento sindical), quando pareceu afastar-se do
pragmatismo lulista, que ameaçou, pela boca do ministro Gilberto
Carvalho, privilegiar os evangélicos. Brizola, na sua retórica dos
pampas, identificou a tendência às cooptações amplas do lulismo com
aquela frase que ficou famosa: "O PT é a esquerda que a direita gosta".
Trocado em miúdos, Lula tem disposição para cooptar todo mundo que
apareça no cenário político, não importando a ideologia.
Lula é animado, nessa estratégia
patrimonialista, pelo modelo ético identificado com o princípio de
"levar vantagem em tudo", que se aproxima do imperativo comportamental
totalitário ao acreditar que, nessa empreitada, "os fins justificam os
meios". Essa constitui, a meu ver, a variante destrutiva do lulopetismo,
que ignora qualquer outro imperativo ético, bem como a natureza das
instituições republicanas, em função da estratégia dominante de
conquista do poder para benefício exclusivo da agremiação partidária.
Tudo deve ser cooptado: partidos da base aliada, oposição, imprensa, bem
como os outros Poderes. O que resta de toda essa força centrípeta é o
mar de lama a transbordar no recipiente da História republicana
contemporânea. Infeliz pragmatismo que está conduzindo o Brasil à
entropia da vida política e social, aproximando-nos lastimavelmente do
caudilhismo peronista e do chavismo.
Octavio Paz caracterizou a
feição cooptativa e punitiva do Estado patrimonial mexicano na sua
clássica obra intitulada O Ogro Filantrópico (1983). Lula está deixando
registrada, nos anais dessa modalidade de Estado, uma narrativa que
poderíamos intitular O Ogro Pilantrópico, tamanha a desfaçatez com que o
guru e os seus seguidores aceitam qualquer tipo de malfeitos, conquanto
praticados em benefício da agremiação partidária e dos seus filhotes, e
ameaçam, com a mais decidida perseguição, aqueles que ousarem
contrapor-se ao projeto de dominação em andamento: a imprensa livre, a
oposição e os empresários independentes.
A economia vai mal justamente
porque, nesse terreno, impera também a cooptação, mediante a seleção
prévia dos empresários amigos que serão guindados às alturas graças às
benesses dos empréstimos oficiais subsidiados via BNDES. É a velha
prática lusitana do pombalismo em matéria econômica, que constitui o
nosso colbertismo tupiniquim. O caso Cachoeira-Delta está a revelar a
extensão dessa prática deletéria na economia brasileira. De nada
adiantam as articulações do PT e da base aliada para obedecer às ordens
da liderança petista no sentido de criar obstáculos ao comparecimento da
cúpula da empresa em questão à CPI.
A sociedade brasileira já
pressente, na inflação que regressa, o tamanho do rombo. Os excedentes
obtidos a partir da valorização das commodities que exportamos foram
utilizados pelo governo para encher os bolsos dos companheiros ou
cooptar os "movimentos sociais", deixando de fazer o dever de casa no
que tange às obras de infraestrutura, que potencializariam o nosso
desempenho comercial no mundo globalizado.
Especialistas calculam que o
montante a ser aplicado nessas obras de infraestrutura deveria situar-se
na faixa dos R$ 800 bilhões, mais ou menos a cifra que, ao longo dos
governos petistas, foi despejada pelo ralo da corrupção e da cooptação.
Resultados indesejáveis num mundo em grave crise financeira, que não
perdoa cochilos das lideranças. Aproximamo-nos, nesse desleixo, da
preguiça macunaímica do herói sem nenhum caráter que acordava, na
narrativa de Mário de Andrade, pronunciando o bom-dia das sociedades
sugadas pelo mostrengo patrimonialista: "Ai que preguiça!".
Ricardo Vélez Rodríguez, coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas "Paulino Soares de Sousa", da UFJF.
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
Nenhum comentário:
Postar um comentário