Muitas
vezes já observei, embora poucas vezes tenha sido entendido, que uma
ação política pode atravessar uma zona cinzenta, passar pelo purgatório,
antes de se determinar como moral ou imoral. Por isso se torna imoral o
partido que se apresenta como encarnação da pureza política. Engana ao
esconder a possibilidade de que suas atuações se tornem imorais, se no
fim do processo alguns de seus efeitos não forem corrigidos. E engana
ainda mais quando, no poder, mostrar-se tão corrupto como seu
adversário. Aumenta o risco de transformar a política numa possível
guerra civil, pois, ao acusar o adversário de essencialmente corrupto,
admite a possibilidade de que ele seja eliminado do espaço público.
Compreende-se por que os partidos políticos ideologicamente mais
consistentes deveriam cortar na carne quando seus partidários são
apanhados com a boca na botija. Cuidariam de sua imagem para não se
tornarem alvo de uma acusação destrutiva.
É bem verdade que nem sempre se
pode julgar se uma determinada ação política vem a ser moral ou imoral.
No caos urbano de São Paulo, por exemplo, a instalação do monotrilho,
benefício para toda a população que viaja, valoriza certas propriedades e
desvaloriza outras. A injustiça que afeta estas últimas pode ser
compensada por outros meios, como a redução no pagamento do Imposto
Predial e Territorial Urbano (IPTU) ou benefícios de outra ordem. Mas
enquanto essas compensações não forem feitas a ação permanece
indeterminada de seu ponto de vista moral.
A corrupção não sofre dessa
ambiguidade. Embora cada ação política sempre vise a tornar-se coletiva,
depende essencialmente de esforços individuais. Mas estes não podem
perder de vista o alvo coletivo, reunindo companheiros e criando
adversários. E quando a ação chega ao limite do conflito cria amigos e
inimigos, um passando a visar a eliminação do outro, tanto na guerra
civil como na guerra entre Estados. E nesse momento ela se torna
totalitária, sem fissuras, impedindo que o outro exista ou se manifeste.
A ação política só vem a ser
democrática se aceitar a existência do adversário. O outro faz parte de
sua sociabilidade. Funciona naquela linguagem que se desenvolve entre o
eu e o tu, mas sempre tendo no horizonte um ele que convive no espaço de
nosso discurso. Por isso a ação política no limite corre o risco da
guerra civil, quando uma parte tenta anular a outra, obrigada então a se
defender. A institucionalização da democracia se dá na prática
institucionalizante de sua história.
A decisão arma as ações num
projeto político e desenha os limites além dos quais o inimigo é posto.
As teorias decisionistas lidam com a oposição eu e tu e por isso têm
servido para justificar toda sorte de autoritarismo. Se o eu e o tu se
constituem num povo contra um inimigo comum, como admitir uma parte, um
partido, que o negaria sem pretender destruí-lo? Mas a relação eu e tu
já circula no meio de uma linguagem peculiar, de modo que a decisão se
faz tendo um ele no horizonte, como parte do povo potencialmente amiga
ou adversária. O decisionismo necessariamente não promove o
totalitarismo.
Já que toda ação convive com sua
negação, a ação política sempre permite que algum companheiro atue
desrespeitando a meta coletiva. No entanto, não pode aceitar a corrupção
como parte de seu projeto, como se fosse meio legítimo de alcançar seus
fins. Isso a impediria de se tornar verdadeiramente coletiva, pois
assim aceita uma diferença que não visa ao bem comum. Se muitos
políticos fazem caixa 2 para assegurar suas campanhas, não é por isso
que o partido como tal poderia abonar essa prática, muito menos adotá-la
para seu próprio financiamento. A corrupção privatiza uma ação que
sempre haveria de ser coletiva.
Quando um partido se imbui de
uma missão histórica, acreditando que somente ele pode cumpri-la,
termina fomentando a corrupção de seus membros. Pode até mesmo
transformá-la em condição de governabilidade. Na posição sobranceira que
lhe investe o projeto transformador, aceita que os fins justificariam
os meios. Mas com isso se torna autoritário, pois o outro, ao denunciar
sua imoralidade, se transforma num empecilho para que a revolução se
realize, conforma-se num obstáculo a ser removido por inteiro. A
revolução é uma das ações políticas mais intensas, ela acua o inimigo e
abala seu poder, mas se torna autoritária tão logo pretenda eliminá-lo
fisicamente, abrindo assim a fenda por onde se infiltra o terror. A
guerra civil torna-se inevitável quando o outro passa a ser
sistematicamente negado. Lembremos que em geral não há guerra sem
limitação de certas liberdades democráticas.
A ação política tem efeitos
muito peculiares no seu próprio modo de ser. Depois de eu ter pintado
uma parede de uma cor, que mais tarde se mostra inadequada, nada me
impede de repintá-la, pois a parede continua lá. Isso não acontece
quando preparo um alimento que, passando de seu ponto de cozimento, não
pode mais ser comido. A ação política é uma espécie de cozimento do
coletivo, que, passando do ponto, destrói a unidade social. A corrupção
política assumida não apodrece o Estado?
Há intelectuais que fazem
política como se pintassem paredes. Constatam que a ação política vem
sempre acompanhada de corrupção e, deixando de lado as peculiaridades de
cada uma de suas formas, simplesmente aderem a esta ou àquela posição
política, sem levar em conta a dinâmica da corrupção nela inscrita.
Atuam como se fossem cozinheiros que pouco se importam quando servem
alimentos ultracozidos.
Filósofo, professor emérito
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo (USP); é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e
Planejamento (CEBRAP)
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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