A Obra de Sartre revisita o existencialista francês
Versão atualizada do livro de István Mészáros busca revelar grandeza e antinomias do pensador
Regina Schöpke
Por mais duro que seja, é
preciso, segundo o filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre
(1905-1980), reconhecer nossa finitude e contingência, porque só assim
poderemos encarar com responsabilidade esta dura (porém necessária)
tarefa de produzir-se como homem, como espécie, como ser. De fato, a
afirmação de que "a existência precede a essência" traz em seu cerne uma
crítica profunda à metafísica tradicional e a sua ideia de "ser" como
algo dado, pronto. Este, aliás, é o grito de guerra do existencialismo
de Sartre: o homem não tem uma essência; ele a constrói no tempo e no
espaço de sua existência. É neste sentido que ele é um ser histórico:
esta é a sua essência real. Ao contrário dos outros entes, ele é livre
para produzir a si mesmo, e é o único responsável por esta criação. É
assim, pelo menos, o que pensava Sartre, que foi considerado, ainda
vivo, o maior expoente daquele movimento de ideias que tem suas raízes
no cristianismo singular e atormentado do dinamarquês Soren Kierkegaard
(1813-1855).
Sim, é impossível não ligar o
movimento existencialista à angústia e ao desespero desse pensador
nascido em Copenhague, que se via inexoravelmente só na sua relação com
Deus, com o Todo. A solidão existencial: este também é o ponto
nevrálgico do existencialismo de Sartre (para quem o mundo é
absolutamente contingente, sem um sentido superior ou mesmo intrínseco,
sem uma razão de ser maior). O mundo e nós mesmos, ele diria: tudo pode
ser ou não ser como é. Resumindo: a vida é absurda, gratuita, e a
percepção disso produz em nós a "náusea" do existir, o horror de se ver
como um nada - algo que só pode ser remediado quando tomamos nas mãos o
nosso próprio destino e criamos nossa existência.
É exatamente sobre o filósofo
parisiense tão admirado quanto odiado (e às vezes as duas coisas ao
mesmo tempo) que trata A Obra de Sartre, do húngaro István Mészáros,
cujo subtítulo é Busca da Liberdade e Desafio da História. Esse livro -
que ganha versão atualizada (saiu originalmente em 1979) - está longe de
ser um simples registro da vida e da produção do francês. Ao contrário,
ele busca revelar a grandeza, mas também as antinomias, desse pensador
que foi, simultaneamente, um admirador do marxismo stalinista e o
divulgador de uma ideia de liberdade que, no fundo, se mostrava
incompatível com um sistema que precisava de "mão forte" para ser
implantado.
Na verdade, o que vemos exposto
nessa obra densa e crítica é esta difícil conciliação, em Sartre (ou
mesmo em todo o existencialismo), entre o pensamento do singular, do
indivíduo total, com a ideia da necessidade do político e da convivência
coletiva. Mészáros mostra como esse filósofo de origem burguesa - e que
por isso, no entender do próprio Mészáros, nunca poderia deixar de ser
um burguês em seu íntimo, mesmo quando se colocava contra as tiranias de
sua classe - aliava, ao mesmo tempo, a paixão pela liberdade plena (que
não deixa, de fato, de ser um delírio cristão e capitalista) com o
desejo de uma moral que verdadeiramente ligasse os homens entre si, para
lá de sua solidão existencial. No fundo, Sartre parece ter sempre
lutado contra ele mesmo para articular o seu existencialismo com o
marxismo - o que, muitas vezes, se mostrou impossível, já que, sendo um
filósofo, ele não poderia aceitar qualquer opressão e aviltamento do
homem, fosse qual fosse o sistema político ou econômico.
Sua tarefa, como ele disse certa
vez a um jornalista (que tentava expor sua crítica à opressão dos
governos comunistas como fruto de uma contradição interna de seu
pensamento), era denunciar toda atrocidade e violência por uma questão
simples de moralidade; moralidade esta que deve estar acima até mesmo
dos ditos "fins nobres". Resumindo: nenhum sistema, nenhuma instituição
tem o direito de ferir a liberdade dos homens, embora isto seja feito o
tempo inteiro.
Pois bem, além de Kierkegaard, é
impossível não ver em Sartre a influência de Heidegger (este pensador
que também nunca conseguiu abandonar por completo a sua "batina
espiritual"). A ideia do homem que, em sua solidão máxima, é lançado
entre outros entes e que precisa tomar nas mãos o seu próprio destino;
este ser que difere dos outros por problematizar a si mesmo... Sim,
filosoficamente tudo vai bem, mas, na prática, tudo se complica, pois
somos, no mínimo, seres naturais, gostemos ou não disso, e não podemos
nos constituir sem levar em conta tudo o que está em torno de nós.
Afinal, como mostrar a importância de se produzir um elo fraterno e
igualitário entre os homens se não existem mais razões superiores, nem
mesmo imanentes, que fundamentem tal necessidade? Que diferença faria,
então, vivermos em sociedades justas ou nos tornarmos párias neste mundo
à deriva, pensado como "mudo e sem sentido"? Poucos hoje conseguem
responder a essa pergunta (tamanho o niilismo em que nos encontramos),
contudo isto só prova que a filosofia precisa continuar firme na sua
luta contra os excessos que também são cometidos pela intelectualidade
fria, conceitual. Afinal, a vida também se perde na razão pura.
Regina Schöpke é filósofa e historiadora, autora de Por uma filosofia da diferença (Edusp) e matéria em movimento (Martins)
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO / SABÁTICO
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