O
comunismo parece coisa antiga, que talvez subsista, com seus ideais,
apenas em Cuba. Estive recentemente na China e, embora a retórica do
regime fale em comunismo, sua prática está a mil léguas deste. De todo
modo, ele marcou o século XX e deixou sua marca na sociedade atual. Vale
a pena perguntar por que, no poder, ele foi ditatorial e totalitário,
enquanto, na oposição, contribuía para os direitos trabalhistas, os
direitos sociais e mesmo a democracia. Esse é o grande paradoxo do
comunismo.
Nisto, ele se distingue do
fascismo. É verdade que ambos, no poder, instituíram Estados policiais,
campos de concentração e mataram milhões, sobretudo no período que vai
de 1917, data da Revolução Russa, a 1953, quando morreu Stálin. Mas o
fascismo, na oposição, já usava da extrema violência. Na Itália, dava
óleo de rícino a beber aos inimigos. Na Alemanha, tomava as ruas com
militantes bandidos. Não há diferença entre o fascismo na oposição e no
governo: vejam a truculência dos nazistas gregos, hoje. Estão na
oposição e já fazem mal; imaginem no governo.
Já o comunismo, na oposição,
defendia direitos. É possível que essa diferença entre ele e o fascismo
esteja no discurso, no texto, na doutrina de cada um. A doutrina
comunista é bela. Muitos de seus críticos reconhecem isso - bela, dizem,
mas irrealizável, utópica. Aliás, segundo alguns, o comunismo teria
gerado o mal justamente porque propôs um bem inatingível. Não
conseguindo implantar o mundo perfeito, utilizou a violência na
tentativa de alcançá-lo. Como não extirpasse do ser humano a vontade de
lucrar, de ter mais, tentou arrancar esse traço de caráter à força. Daí
que, como tantos visionários antes e depois, ao longo dos tempos, o
comunismo tenha se tornado cruel exatamente porque pretendia ser bom.
Não admitiu uma bondade que não fosse a sua, ou melhor, não admitiu uma
humanidade que não fosse boa como a sua.
O comunismo permitiu humanizar o capitalismo
Pode ser esta a explicação para
os males do comunismo. Talvez! Mas permanece o fato de que ele delineou
uma utopia - também no sentido bom, e original, da palavra. Já os
fascistas jamais propuseram uma sociedade justa para a humanidade. O que
propuseram, e continuam propondo na voz dos vários movimentos
semifascistas que hoje há na Europa, como a Frente Nacional na França,
foi uma sociedade supostamente vantajosa (o que não quer dizer
moralmente boa) para um único grupo étnico. Os fascistas são, por
definição, ultranacionalistas e xenófobos. Odeiam o estrangeiro, o
diferente, o divergente.
O fascismo é o egoísmo tornado
política. Detesta quem não é como ele. O próprio compatriota, ele só
aceita se for um clone seu. Toda diferença será castigada.
O comunismo foi
internacionalista. Entendia que as fronteiras nacionais foram
construídas pelas classes dominantes. Pretendia uma sociedade justa, não
apenas para os alemães ou italianos, mas para todos os seres humanos.
No discurso comunista, há uma ética. No fascista, não.
Assim, quando os fascistas de
antes e de hoje empregam a força física contra as pessoas de quem não
gostam, apenas aplicam na prática a sua doutrina. Não há divergência
entre o que dizem e o que fazem. Ações e palavras andam juntas. Eles
prometem expulsar quem não é de seu país, reprimir quem diverge dos
costumes dominantes - por exemplo, homossexuais e feministas -, eliminar
quem pertence a uma raça dita inferior. Já em Mein Kampf (1925), Hitler
já contava o que faria quinze ou vinte anos depois. Já os comunistas,
no poder, quando agiram como os fascistas, estavam dizendo uma coisa e
fazendo outra. Proclamavam a igualdade dos povos, mesmo quando submetiam
várias outras nacionalidades à russa. Pregavam a liberdade, enquanto
colocavam milhões a trabalhar como escravos. Isso não foi mera
hipocrisia, embora em alguns casos clínicos, como o de Stálin, fosse
pior que ela. Foi algo que pertenceu à essência do comunismo no poder.
Agora, por que o comunismo, na
oposição, foi mais fiel a seus ideais do que quando esteve no poder? Por
que ele foi melhor desobedecendo do que mandando? É verdade que falo
aqui em linhas gerais. Mesmo no poder, houve comunistas leais aos ideais
de humanismo que aparecem na doutrina - o húngaro Imre Nagy, o eslovaco
Dubcek. Mesmo na oposição, houve comunistas que mataram dissidentes ou
simples suspeitos, como Elza Fernandes, a adolescente morta em 1936 por
ordem do Partidão. Mas, em linhas gerais, na oposição os comunistas
defendiam as liberdades, e no poder as suprimiam. Terá sido justamente
por causa do discurso deles? Seriam mais fiéis às promessas de Marx
quando eram profetas desarmados do que armados? Terão sido melhores os
comunistas com a pena do que com o fuzil, escrevendo e subvertendo do
que decretando e impondo?
O comunismo talvez tenha sido a
melhor oposição que o capitalismo pôde ter. É até provável que comunismo
e capitalismo precisassem um do outro - ou que uma sociedade, para ser
boa, precisasse dos dois. Isso resultou no que houve de melhor no século
passado - os trinta anos gloriosos, após a II Guerra Mundial, quando o
mundo (ou pelo menos o mundo então rico) mais se desenvolveu, econômica e
socialmente. Mas esse duo só funcionava bem quando o capitalismo estava
no poder, o comunismo na oposição. Sem esses opositores, os
capitalistas teriam sangrado as classes sociais a fundo, como fizeram em
tantas partes, inclusive no Brasil da ditadura. Sem o capital no poder,
o comunismo seria só um totalitarismo a mais. É curioso esse equilíbrio
de poderes, um em cima, outro em baixo. Curiosamente, pode ser que o
comunismo - de oposição - faça falta, em nossos dias.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
FONTE : VALOR ECONÔMICO
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