No
lançamento da candidatura do PMDB à Prefeitura de SP, política e
religião se invadiram numa misturança que violou o respeito próprio de
cada uma delas, afirma sociólogo
Um fantasma assombra a República
desde a sua proclamação: a religião. Um outro fantasma assombra a
religião desde que essa separação ocorreu: a República. De assombro em
assombro, vamos recuando em relação aos valores democráticos, aqueles
que asseguram as bases da consciência propriamente republicana, livre de
pressupostos e constrangimentos estranhos à política. E também em
relação aos valores propriamente religiosos, aqueles que pedem a paz do
privado para o exercício ritual da fé, que é o âmbito da liberdade
religiosa que a República assegurou. Religião deixou de ser um dever
para ser um direito, livremente assumido. Essa é a diferença, que muitos
não compreendem. Não ter religião já não é um defeito. Ter religião já
não é, necessariamente, uma virtude.
A invasão da religião pela
política partidária no último domingo, no lançamento da candidatura do
PMDB à Prefeitura de São Paulo, e a recíproca invasão da política pela
religião no mesmo ato, propõem um complicado problema. O candidato,
versado em questões de Igreja, atrelou o ato partidário da praça ao
prévio comparecimento à missa dos migrantes na Catedral, celebrada pelo
arcebispo, arrastando consigo toda a cúpula de seu partido, mesmo quem
não é católico. Uma misturança, o que a razão e a fé estranham em nome
do respeito ao que é próprio de cada qual.
Os positivistas de 1889, já
antes da Constituição de 1891, estabeleceram a separação entre o Estado e
a Igreja. Na monarquia o próprio imperador nomeava os bispos e lhes
pagava a côngrua, mandando prendê-los, se fosse o caso, como aconteceu
na chamada Questão Religiosa. Da monarquia à República laica, foi um
salto muito grande num país secularmente habituado à promiscuidade
pré-moderna de política e religião. A separação do Estado em relação à
Igreja, e a adoção do princípio de que o Estado não tem religião, de que
o exercício da fé é livre e de que todas as religiões são toleradas,
representou um imenso avanço no Brasil. A liberdade seria uma quimera se
as pessoas não fossem livres para crer ou descrer e se não pudessem
tomar decisões políticas, votar ou deixar de votar, em função unicamente
dos ditames de sua consciência e de sua decisão racional. O eleitos
representam a consciência política dos cidadãos, não a sua consciência
religiosa.
O regime republicano não impediu
que os brasileiros pudessem crer, que fossem católicos, protestantes ou
professantes de qualquer outro credo religioso. Ou ateus e descrentes.
Religião não é um atributo necessário ao bom exercício do governo. Um
presidente carola, como foi Artur Bernardes, que nos jardins do Catete
rezava ao anoitecer, quando o arcebispo dom Duarte lhe implorou que
fizesse cessar o bombardeio da cidade de São Paulo, em 1924, que matava
civis, também crianças e velhos, recusou. Mandou dizer-lhe que São Paulo
era rico e poderia reconstruir sua bela capital. Nada falou sobre as
vidas que motivaram o apelo. Sua religião não o fez mais humano nem o
fez um estadista.
A República tampouco obrigou os
brasileiros a crer nisto ou naquilo. Ou vetou o acesso de quem crê à
representação política e mesmo à Presidência da República. Desde 1889,
apenas dois presidentes da República foram protestantes: Café Filho,
presbiteriano, e Ernesto Geisel, luterano. Todos os demais foram, ao
menos nominalmente, católicos.
A decisão republicana foi boa
também para a Igreja Católica e para as diferentes religiões que se
difundiram no Brasil desde o Império. Com ela a Igreja se libertou da
tutela do Estado, ganhou completa liberdade para ser plenamente igreja,
sem sofrer interferências nas questões propriamente religiosas. O que a
República proclamou é que, assim como o Estado não se mete nos assuntos
da Igreja e das religiões, as religiões e a Igreja não se metem nos
assuntos do Estado.
Infelizmente, estamos num
progressivo recuo em relação a esse princípio fundante do nosso regime
republicano. O neopopulismo brasileiro descobriu nas igrejas e nas
religiões um verdadeiro curral de votos cativos, de gente crédula e
dócil ao apelo eleitoreiro em suposto nome da fé. Não só os evangélicos
têm sido assediados e não raro seduzidos pelas cantadas partidárias, mas
também os católicos têm tido uma disponibilidade para a sedução que não
é pequena. Já nas campanhas de Lula e do PT o uso abusivo do templo e
até do púlpito não mereceu reparos.
Tudo seria compreensível num
país atrasado como o Brasil, não fosse o avanço da ousadia não mais
sobre as greis religiosas, mas agora também sobre o sagrado. Se as
igrejas pretendiam afirmar sua identidade religiosa no plano político,
mostrando força perante os candidatos e caíram na tentação do voto de
cabresto, não se deram conta de que havia um preço a pagar. E o preço
maior não era o voto, era a sutil invasão do sagrado pela política e
pela politicagem. Foi isso que aconteceu na Sé e em sua praça no começo
da última semana, o ato partidário praticado como ato pós-eucarístico,
uma violação da essência do sagrado.
José de Souza Martins, sociólogo, professor emérito da USP, é autor de A política do Brasil Lúmpen, Místico (Contexto, 2011)
FONTE: ALIÁS / O ESTADO DE S. PAULO
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