sábado, 21 de julho de 2012

13 “A guerra às drogas fracassou” (Luiz Eduardo Soares/entrevista)

Entrevista a Rachel Duarte
Com quase 60 anos de idade e com sete livros sobre segurança pública, o antropólogo Luiz Eduardo Soares se deparou com a história que lhe traria lições pessoais não esperadas. Um amigo psicanalista o aproximou de Ronald Soares, agora conhecido como o ‘economista do tráfico’. De mesmo sobrenome e com quase a mesma idade que o escritor, Ronald cumpriu pena de 24 anos de reclusão por coordenar a logística e as finanças de umas das principais redes de tráfico na rota Colômbia-Caribe-Inglaterra. Foi o maior julgamento da história da justiça inglesa e anos de inteligência policial para combater o que é impossível de combater. “Até pegar esta rede do Ronald, outras redes já se constituíram. E, quando desmontam esta, abre espaço para mais outras. É impossível controlar”, diz Luiz Eduardo Soares em entrevista ao Sul21.
O autor de Elite da Tropa, que deu origem ao filme Tropa de Elite, conversou por mais de uma hora com o Sul21 em hotel de Porto Alegre nesta semana, quando lançou o livro Tudo ou Nada, que conta a história de Ronald Soares. Rico em detalhes e curiosidades sobre o esquema do tráfico internacional, inéditas até para especialistas, o livro propõe uma viagem em busca da trajetória de vida de um homem bem sucedido que larga tudo,  mergulha no vício e se rende à ambição. “Este ambiente está bem próximo de nós. Não é um universo que deriva de pessoas com doenças psicológicas. Temos um ambiente que propicia a valorização unilateral do lucro sacrificando-se valores, de respeito a terceiros. No caso do Ronald ele se iludiu com a ideia de que não causaria danos a ninguém, que era apenas um negócio”, conta.
O romance não tem nada de ficção. Aborda uma história real de uma pessoa que encarou o cárcere na Inglaterra e no Brasil, expondo os problemas de métodos usuais para lidar com a transgressão, além do preconceito com a regulamentação das drogas e a pressão política que impede a legalização, defendida por Luiz Eduardo Soares como única medida capaz de reduzir os danos e frear a violência relacionada ao tráfico de drogas. “Eu parto de uma constatação, não se trata de uma opinião. Qualquer pessoa que se dedica a esta área, tanto profissionais como pesquisadores, sabe que a guerra às drogas fracassou. Temos que definir o melhor contexto constitucional para enfrentar o problema”, propõe.
“Conhecer bastidores do tráfico internacional foi interessante. Mas também foi história muito rica em trajeto de vida humana e existencial”
Sul21 – Porque esta história te interessou como obra literária?
Luiz Eduardo Soares – É uma história muito interessante do ponto de vista humano e do ponto de vista das transformações culturais das últimas décadas. Também para conhecimento dos bastidores do tráfico internacional de drogas. A riqueza existencial do personagem envolveu todos estes aspectos. E surpreendentemente é uma história não conhecida no Brasil, sendo que foi o julgamento mais longo da história da Inglaterra. Foram 14 meses de tribunal, condenação a 24 anos e com o condenado classificado durante seis anos como o preso mais perigoso da Inglaterra. Isto levou a Justiça inglesa a deixá-lo preso em uma cadeia de segurança máxima. Ele ficou cinco anos na solitária, o que mobilizou entidades de direitos humanos da Europa a fazer algumas campanhas, porque a solitária é uma prática inaceitável. As autoridades inglesas alegavam que ele não estava na solitária, ele estava solitário, o que seria diferente porque ele só não estava na companhia de outros presos desta ‘envergadura’. A classificação dada a ele não foi por envolver violência. Em que pese não haver tráfico de drogas sem violência em alguma ponta do processo, ele nunca pegou em armas ou matou alguém. Ele nunca foi violento, mas ele tentou fugir. Isto é considerado gravíssimo pelo sistema inglês. Por isso ele recebeu este ‘upgrade’ para cadeia máxima. Ele já representava o Cartel de Cali e foi preso em uma operação que envolvia três toneladas de cocaína. Ele fazia a logística e as finanças que traziam a cocaína da selva colombiana, pelo mar do Caribe até Londres. Conhecer estes bastidores foi interessante. Mas, além disso, como trajeto de vida humana e existencial foi uma história muito rica.
Antropólogo Luiz Eduardo Soares defende a legalização das drogas como medida de redução aos danos do tráfico | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21 – Como ele veio para a prisão de Bangu, no Brasil? Qual a diferença entre o sistema prisional brasileiro e o inglês?
Luiz Eduardo Soares - Ele foi preso em 1999 e cumpriu 12 anos em penitenciária de segurança máxima na Inglaterra. Ao final do cumprimento da pena ele conseguiu a transferência para o Brasil. Há um convênio internacional entre Brasil e Inglaterra que permite isso. Ele experimentou as duas realidades, que são muito diferentes. Um é muito asséptico e absolutamente legalista, com cumprimento rigoroso das normas inglesas. Nunca o tocaram. Sempre teve assistência médica, higiene absoluta e boa alimentação. Mas ele quase enlouqueceu lá. A clausura claustrofóbica. Sem possibilidade de visitas. Os guardas são proibidos de falar com os prisioneiros. Sempre que houver troca de palavras deve haver um terceiro guarda presente. Então o silêncio e a clausura foi violentos para quem buscava a liberdade do mar.
Sul21 – Como ele não sucumbiu?
Luiz Eduardo Soares – Ele sucumbiu. Ele chegou a ter uma queda forte durante determinado período. Foi um sofrimento psicológico terrível. Existiam práticas completamente estranhas e difíceis de compreender. A cela tinha uma escotilha que era aberta rigorosamente a cada 40 minutos. Dia e noite, todos os dias. Eles anotavam a posição física do preso. Haviam dois guardas dedicados exclusivamente a esta tarefa. Eles olhavam e anotavam o horário e escreviam em um livro de registro: “Ele está sentado, com as mãos no joelho e olhando a parede”. “14h40 – Ele está deitado e olhando para o teto”. “03h30 – ele está lendo um livro”. Isso acabou sendo tão condicionado que ele se preparava como um relógio. Ele fazia contagem regressiva para saber o tempo que sobraria de privacidade.
Sul21 – Quem era o Ronald antes de entrar no mundo do tráfico?
Luiz Eduardo Soares - Nos anos 70 ele saiu da faculdade de economia. Era um aluno inteligente e muito capaz. Era o momento de emergência do mercado de capitais, do boom econômico da ditadura, ‘o milagre econômico’ e expansão do capital financeiro. Ele era jovem, com os dotes da inteligência e agressividade para os negócios e muito ousado. Fez uma fortuna em pouquíssimos anos. Casou-se com a menina mais cobiçada entre os colegas de faculdade. Vivia um sonho de fadas. Tinha tudo. Em seis meses de casamento a mulher o traiu com o melhor amigo e ele entrou em um processo de depressão. Passou a ter uma crise existencial, porque tinha riqueza e havia se tornado uma pessoa que ele mesmo não se identificava mais. E sempre teve sonho desde a adolescência, herdada do hipismo e do mundo da contemplação, de velejar. Ele largou tudo e comprou um veleiro. Casou-se de novo e junto com um casal de amigos passou a viver no mar, cruzando oceanos. O que de início me fez pensar que significava apenas saciar aquele sonho de contemplar a natureza. Mas, aprendendo o que é o dia a dia em alto mar, vi que não era só isso. Havia também a disciplina, espartana, quase estóica, com rigor de cumprimento de turnos para controlar o barco. Ele acordava de madrugada para isso. Por 10 anos, ele passou por todos os riscos e momentos de aventuras mais difíceis. O que eu não consigo imaginar para mim, que não consigo nem meia hora em alto mar sem passar mal. (risos). E esta foi a vida dele neste período. Isto já mostra o tipo de personalidade dele. E por isso o livro se chama Tudo ou nada. Porque foi sempre assim a vida dele.
Sul21 – Como ele conseguia se manter financeiramente para viver apenas em alto mar?
Luiz Eduardo Soares – Ele se mantinha com pequenos consertos para outros barcos, organizava mergulhos e fazia pequenos serviços nos portos para apenas ganhar o suficiente para comprar mais combustível e alimentos. Durante este período a única droga deles era a maconha ou haxixe, que são drogas contemplativas. Por isso disse que se trata de um recorte cultural. Era final da década de 60, a maconha era usada para contemplação… No final do período de dez anos, há uma passagem para a cocaína, droga ligada ao trabalho competitivo e ao mercado agressivo. Esta transição da maconha para a cocaína também está relacionada à mudança cultural de uma geração jovem, que pregava a paz e o amor, respeito à natureza, convívio comunitário, para o mundo individualista competitivo, em que a necessidade de energia competitiva no trabalho se encontra com a cocaína.
“Não há ficção. Tudo é história real. Mudei apenas os nomes para preservar a privacidade dos envolvidos”
Sul21 – Onde ele adquiriu cocaína pela primeira vez? Como ele saiu de usuário para fazer o negócio com a droga?
Luiz Eduardo Soares – Foi no Caribe. Mas, primeiro teve a passagem de usuário da maconha para cocaína  - que não foi algo só dele, foi do mundo ocidental que fez esta passagem. Depois houve experiências pequenas no varejo. De ter pequenas quantias de dinheiro da venda da droga que consumia. Fazia o transporte de pequenos lotes, já que conhecia bem o mar, mas rendia pequenas quantias apenas para esticar mais a viagem. Aos poucos isto se tornou um vício e ele descobriu a heroína, que quase o matou. Já de volta ao Brasil, encontrou um velho amigo que conhecera no Caribe, que era envolvido com o tráfico internacional de drogas. Foi um encontro ao acaso. Esta cena está na parte central do livro e é muito interessante. Ele viciado, rouba o amigo para comprar heroína. O amigo ficou perplexo e viu que ele estava vivendo a dependência. O amigo tinha malas com milhões de dólares dos negócios do tráfico e ele roubou algo como mil dólares. Diante da revelação da dependência, o amigo ofereceu U$ 5 mil para ele fazer uma das duas coisas: comprar tudo em droga e morrer de overdose ou comprar uma passagem para África do Sul, onde o irmão do amigo venceu a dependência. Ele sabia onde tratar e prometeu curá-lo. Ronald, como bom brasileiro, pensou e acabou fazendo as duas coisas: comprou droga e a passagem. (risos) Na chegada ao aeroporto na África, jogou fora o restante da droga e encarou o doloroso tratamento. A síndrome de abstinência de heroína é uma das dores mais terríveis. O corpo dói inteiro. Ele venceu isso em três meses. Quando está voltando para o Brasil com o mesmo amigo, ele recebe uma proposta para trabalhar com a droga. Já que ele não era mais dependente, poderia ser um profissional.
Livro "Tudo ou Nada" conta a história do economista brasileiro que foi do mar à prisão | Foto: Divulgação
Sul21 – Como tu chegaste à história de Ronald, que era inédita ao Brasil?
Luiz Eduardo Soares – Ele me procurou quando ainda estava preso em Bangu. O primo dele, psicanalista que mora em Recife e me conhecia, prestigiava minhas palestras e desenvolve uma ONG de Direitos Humanos depois da morte do irmão em um assalto. Depois de uma palestra em 2006 ele me contou do primo que estava voltando ao Brasil para cumprir o restante da pena, que queria contar a sua história e que talvez me interessasse. Eu disse que não tinha possibilidade de assumir novos projetos, estava contratado para outros naquela época.  Mas disse que seria um prazer mesmo assim. Eu encontrei o Ronald e nos demos muito bem. Como rolou uma empatia, ele sentiu confiança em mim, optou por esperar até eu me liberar para me dedicar a isso. Fomos acumulando informações e conversas. Desde 2007 passamos a nos encontrar regularmente. Levou cinco anos até eu lançar o livro. Ronald terminou a pena e ganhou a liberdade em 2011.
Sul21 – Qual a carga de ficção da história? Houve adaptações ou mudanças?
Luiz Eduardo Soares – Não. O tom é literário. Mistura romance e suspense. Mas não há ficção. Tudo é história real. Mudei apenas os nomes para preservar a privacidade dos envolvidos. Ronald Soares, por exemplo, virou Lukas Mello.
Sul21 – Como funcionam os bastidores do tráfico internacional de drogas?
Luiz Eduardo Soares – A cocaína sai da selva colombiana por um avião pequeno que decola de um campo de pouso com propina de U$ 100 mil paga aos militares que controlam a área. Eles usam o campo uma vez por semana para decolagem. As condições climáticas têm que estar favoráveis pela pouca autonomia de vôo da aeronave. As caixas de Marlboro, com capacidade de 25 quilos, são largadas em mar aberto, na fronteira entre a Colômbia e Caribe. É uma manobra bem arriscada, com risco de vida, e se perdem algumas caixas. De lá são levadas pelos barcos ao porto do Caribe.  Lá existem barcos cenográficos, que eu descrevo bem no livro. Dão ideia, vistos de cima, que tem mulheres de biquíni, tomando drinques, mas na verdade estão carregados de cocaína. São barcos planos, feitos no chão, mas pelo desenho dão a mesma ilusão dos anúncios tridimensionais em campos de futebol. Quando chegam ao barco setorial, a 200 milhas da Inglaterra, jogam ao mar todo o equipamento tecnológico de direção e navegação. Um barco que saiu de algum porto inglês, com dois casais namorando, vai em direção a eles e leva a droga para a Inglaterra. Não há nada de suspeito porque são dois casais que saem do porto e voltam como se fossem apenas passear. E o barco que fez o transporte de fato, com os homens a bordo, chega sem nenhum equipamento a bordo ou vestígio da droga, porque jogou tudo no mar na entrada do oceano inglês. Não há nem como comprovar a navegação. A droga sai quimicamente processada. Uma tonelada saiu com 85% de pureza mas, por causa das questões de temperatura para suportar a viagem, é alterada, chegando ao varejo na Inglaterra com 15% de pureza. Há uma modificação por seis do peso. Uma tonelada se converte em seis toneladas. Isto significa que no varejo, na época, 1999 – 2000 equivalia a 30 milhões de libras. Algo como U$ 43 milhões de dólares por tonelada.
Sul21 – Como o senhor explica alguém com uma carreira promissora, bem sucedida se envolver com o tráfico depois de toda a dolorida recuperação?
Luiz Eduardo Soares – Ele chegou a ficar em dúvida. Perguntou quais seriam as condições. Como ele conhecia bem o mar e tinha a experiência de economista, ele ficaria supervisionando a operação financeira e a logística da droga. Para isso ele ficaria com algo em torno de U$ 5 milhões de dólares por cada operação. Isso resolveria a vida dele. Ele que já tinha filhos e não tinha mais nada para recomeçar. Ele não pensava em viver fazendo isso. Pensou em superar as dificuldades e se aposentar rápido. Ficou fazendo durante alguns anos e, quando foi fazer a grande operação que lhe renderia o suficiente para a aposentadoria, foi para a prisão.
“O resultado da guerra às drogas foi aumento do consumo, o avanço da corrupção policial e o gasto de bilhões. Admite-se isso nos bastidores do departamento de narcóticos dos EUA”
Bruno Alencastro/Sul21
"Sendo impossível controlar, a pergunta não é devemos ou não permitir o acesso às drogas. É o mesmo que perguntar se devemos ou não permitir a lei da gravidade" | Foto: Bruno Alencastro/Sul21
Sul21 – Vendo uma pequena noção do tamanho da rede de tráfico internacional e entendendo como ele se organiza, fica difícil imaginar como combatê-lo. Como enfrentar o problema?
Luiz Eduardo Soares – O tráfico vai muito bem, obrigado. Justamente por toda essa complexidade.  A investigação para desvendar esta rede do Ronald levou muitos anos. Foi juntando partes da história, encontrando alguns agentes, depois chegando a outros. Até pegar esta, outras redes já se constituíram e quando desmontam esta, abre espaço para mais outras. É impossível controlar. O percurso de Londres que Ronald fazia, e que eu descrevo no livro, é o percurso típico de quem vive na clandestinidade. O melhor caminho entre dois pontos é o mais longo e labiríntico, é o traço mais barroco. Ao contrário da física usual. Eles iam de metrô, depois táxi, depois ônibus para fazer um trajeto curto, mas para poder driblar a segurança. O surpreendente até para o Ronald é que tudo foi filmado pela inteligência policial e ele assistiu a tudo no julgamento. O julgamento é visual e tudo pode ser descrito facilmente. Eu tive acesso e facilitou esta descrição no livro. Havia policiais de um grupo especial da polícia inglesa, composta por egressos do M-16 e outros setores de espionagem reduzidos depois da Guerra Fria. Eles tinham seis agentes acompanhando o Ronald todos os dias, a cada quatro horas. Eram 24 agentes que revezavam para ele não identificá-lo. São cenas completamente cinematográficas. Uma velhinha comprando amendoim, uma mulher abrindo uma janela, outro agente passa em um táxi e controlam todo o trânsito do Ronald e os principais agentes da rede de tráfico dele por longos anos. Eles acabam não tendo saída.
Sul21 – De que forma a regulamentação das drogas refletiria no tráfico?
Luiz Eduardo Soares - Eu parto de uma constatação para falar sobre isso. Não se trata de opinião. Qualquer pessoa que se dedica a esta área, tanto profissionais como pesquisadores, sabem que a guerra às drogas fracassou. Nos últimos 30 ou 40 anos, os EUA têm liderado o que eles mesmos chamam de guerra às drogas e controle do tráfico. O resultado disso foi o aumento do consumo, a manutenção da qualidade do preço, o avanço da corrupção policial e o gasto de bilhões de dólares. É uma constatação fácil para qualquer agente do departamento de narcóticos dos EUA, admite-se isso nos bastidores. Claro que não dirão isso publicamente, mas sabem que isso que foi feito não funcionou. Não foi falta de recursos e ou ineficiência das forças policiais americanas, inglesas ou japonesas. A razão é muito simples: é impossível controlar o tráfico a não ser no totalitarismo. Podemos regulamentar e orientar os mercados, mas não aboli-los completamente. Principalmente quando se trata do varejo individualizado. Quando são produtos que não são diretamente úteis ao consumo é diferente. Mas comércio individualizado é impossível controlar. A demanda e a oferta se encontrarão. O país que venceu a Guerra Fria demonstrando a capacidade de supressão total do mercado inventa a Guerra às Drogas. Todos sabem disso. Pessoas inteligentíssimas como o Obama evidentemente sabem disso.
O resto é política. Política no sentido da demagogia, populismo, da opinião pública conservadora, ignorante e preconceituosa. Sendo impossível controlar, a pergunta não é devemos ou não permitir o acesso às drogas. É o mesmo que perguntar se devemos ou não permitir a lei da gravidade… As pessoas que querem restrição ao acesso às drogas se horrorizam com o pensar em legalizar as drogas, como se hoje elas já não tivessem acesso. Não se trata de permissão, se trata de definir em que contexto este acesso vai se dar. Esta é a pergunta verdadeira e que muda o ângulo de observação. Temos que definir o melhor contexto constitucional para enfrentar o problema. Por exemplo, temos 18 milhões de alcoólatras no Brasil. O tabaco é outro problema. E o Brasil conseguiu reduzir o consumo do cigarro com campanhas educativas, com restrições ao consumo e aos danos. A sociedade passou a repelir o uso. Quem quiser morrer de câncer no pulmão fuma, mas fuma longe de mim. Existe o sal e o açúcar que também são drogas. A regra deve valer para todas as drogas. Não podemos permitir que inocentes morram para um cidadão ter algum tipo de droga. A cocaína causa menos de 100 mortes por ano. A média varia até 65 pessoas por ano. Homicídios dolosos 50 mil, sendo que quase metade está relacionada ao tráfico. Milhares de pessoas estão morrendo por causa da clandestinidade do comércio de drogas, compra de armas e outras dinâmicas terríveis. As mortes de cocaína tem relação com as substâncias combinadas à cocaína. Não há qualidade, a droga não é bem processada, é contaminada. O crack é um derivado da cocaína que surgiu a partir desta clandestinidade. Há todas estas corruptelas. O controle de qualidade da droga tem impacto na redução de danos. Mesmo que não consigamos conter o consumo, com a legalização fazemos com que os problemas estejam restritos a quem decide usar estas drogas. Para prevenir o uso vamos investir em educação, em saúde. Mas os outros fatores como a compra de armas, corrupção, a violência, as prisões…
Bruno Alencastro/Sul21
" Autorizam a legalização do álcool e não a maconha. É algo tão irracional que eu acredito que os historiadores olhem para isso com a mesma perplexidade que olhamos para alguns fatos do passado" | Foto: Bruno Alencastro/Sul21
Sul21 – O senhor imagina qual solução para o problema do cárcere no Brasil?
Luiz Eduardo Soares – No Brasil temos uma realidade trágica de 50 mil homicídios dolosos por ano. Somos o segundo país em número absoluto, atrás apenas da Rússia. Destes casos apenas 8% são investigados, ou seja, temos 92% de impunidade. Em contrapartida temos a terceira maior população carcerária do mundo e a taxa mais elevada de aumento desta população nos últimos cinco anos no mundo. Em meados dos anos 90 tínhamos cerca de 160 mil presos, hoje temos 540 mil fora os mandados de prisão expedidos e que não foram cumpridos e multiplicariam por quatro o tamanho da população carcerária brasileira. Quem está sendo preso? Segundo a pesquisa da professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Luciana Boiteux, a grande expansão da população carcerária nestes últimos anos está concentrada em uma determinada faixa de transgressores. São jovens, com baixa escolaridade, em geral negros, que negociavam substancias ilícitas sem armas, sem vínculos com organizações criminosas e que foram para a cadeia. Este responde ao fluxo mais veloz de cárcere do Brasil.
Sul21 – A Lei Antidrogas, na forma com que foi criada, foi à responsável por aumentar a população carcerária de pessoas com pequenas quantidades de droga, deixando os grandes responsáveis pelo tráfico impunes. O senhor acredita que o Brasil conseguirá avançar nessa legislação, assim como fez o Uruguai?
Luiz Eduardo Soares – É  preciso tirar o chapéu para o (presidente do Uruguai, José) Mujica. Olhando para o futuro do Brasil, eu não vejo nenhuma hipótese de que este avanço não aconteça. É algo tão absurdo e tão assentado no cinismo, hipocrisia, ignorância e preconceito das pessoas. Autorizam a legalização do álcool e não a maconha. É algo tão irracional na produção de efeitos que eu acredito que os historiadores olhem para isso com a mesma perplexidade que olhamos para alguns fatos do passado. Evidente que estas coisas absurdas têm que ser enfrentadas. Mas pode levar muito tempo porque a resistência de preconceitos é muito grande. Eu acredito que eu não verei isso na minha útil. Eu estou com 58 anos. Comecei a escrever sobre isso muito jovem. Logo depois da ditadura militar, no início dos anos 80, no meu primeiro livro, eu já defendia a legalização das drogas e já éramos vistos como românticos, utópicos ou mesmo pessoas perigosas por ‘defender as drogas’. Hoje há uma Comissão Global de Políticas sobre Drogas, com pessoas respeitadas como Nelson Mandela, Fernando Henrique Cardoso e que tem se reunido para discutir novas políticas e deixar de lado a Guerra às Drogas. A mídia trata do tema cotidianamente, a Marcha da Maconha deixou de ser criminalizada. Agora corre um abaixo-assinado no Brasil a favor da legalização para produção da maconha em casa e permitindo a criminalização do tráfico. Eu não assinei. Parece-me absurdo que um jovem pobre e negro venda uma substância para outro branco de classe média da mesma idade e um seja o criminoso e o outro o ‘coitado dependente’. Não faz sentido nenhum. Eu defendo a legalização onde não haja proibição, com regulamentação do negócio, informação, tributação. Sem hipocrisia e com mudança efetiva.
Sul21 – O senhor se mantém do lado da crítica radical hoje, mas já esteve do outro lado. Foi secretário nacional de Segurança do governo Lula e esteve ao lado do ex-secretário nacional de Políticas sobre Drogas, Pedro Abramovay, quando ele foi demitido por declarar as mesmas posições que o senhor. Do ponto de vista do estado, é possível ter confiança de que vamos avançar?
Luiz Eduardo Soares – Pela minha experiência de vida, eu digo que já vivemos em outro momento na história. As evoluções são lentas. Antigamente até falar em drogas já era proibido. Hoje eu falo isso onde eu vou. Eu me lembro de quando eu trabalhei com o Tarso Genro, quando ele foi prefeito de Porto Alegre, em 2001. Não existia Secretaria de Segurança e a ideia era constituí-la. Fui consultor. O trabalho foi bem sucedido. Definimos o foco do trabalho na Restinga, que era o bairro mais violento à época. Lá focamos os investimentos e zeramos os homicídios. Isto é relatado como um ‘case’ nacional. Naquela época eu estava em uma palestra e respondi sobre legalização de drogas a um repórter da Zero Hora. Foi manchete do jornal e virou debates no rádio do grupo RBS na época. As críticas eram que o carioca veio para o Rio Grande do Sul legalizar as drogas. As enquetes feitas eram se as pessoas queriam preservar suas famílias ou concordar comigo. Mas depois de duas semanas de debates intensos na imprensa daqui, uma última avaliação feita no programa do Lasier Martins as opiniões estavam quase empatadas. Foi 52% contra mim e 48% a favor. O assunto inclusive saiu da pauta. Imagino que em mais uma semana eu teria virado… (risos). Hoje falar sobre legalização das drogas já não causa o mesmo efeito na sociedade. E olha que a sociedade gaúcha é bem politizada, portanto, se trata de um bom laboratório para nos balizarmos. É uma prova de que as coisas mudaram. O Pedro (Abramovay) foi expelido do governo quando deu uma excelente entrevista sobre o tema. Mas foi lamentável da parte do governo. As posições do governo federal têm sido mesmo lamentáveis neste tema, assim como a dos políticos de maneira geral, que ficam obedientes à opinião pública conservadora para não perder votos. Mas algumas coisas já mudaram. Se estas mudanças terão força de levar para algum sentido não sabemos. Imagino que ainda falaríamos sobre isso com ironia no futuro.

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