Nem
seria preciso a recente descoberta de um vasto esquema de fraudes,
ilícitos e cobrança de propinas no coração da Prefeitura de São Paulo
para que a corrupção voltasse ao primeiro plano. Correndo ao lado da CPI
do Cachoeira, da cassação do senador Demóstenes Torres e do vaivém que
cerca o início do julgamento dos acusados pelo mensalão de 2005, as
novas suspeitas turbinaram o problema.
O caso paulistano é escabroso,
para dizer o mínimo. Deixa patente que a corrupção tem mil tentáculos.
Não é comandada por um centro articulador claramente localizado. Sua
cabeça não está em Brasília, por exemplo. O fenômeno está disseminado,
podendo se manifestar em qualquer canto do País, e talvez seja até mais
grave quanto mais baixo se desce na estrutura político-administrativa do
Estado, em que há menos fiscalização e controle. Também não é monopólio
de nenhum grupo ou partido: todos estão sujeitos a ela e todos podem
vir a praticá-la, ativa ou passivamente. Não reconhecer isso é limitação
ideológica.
Se quisermos enfrentar a sério o
problema, vale a pena dilatar o conceito, para nele incluir, além dos
crimes financeiros, uma série de procedimentos e atos que produzem menos
frisson, mas são igualmente graves. Ou não haveria corrupção, por
exemplo, na atitude de um parlamentar que se ausenta do plenário, mas
permite que seus assessores registrem sua presença e votem em seu nome?
Não seria corrupto um servidor público que exige do usuário dos serviços
uma lista enorme de documentos e exigências só para postergar o
atendimento, ou justificar uma falha do sistema? Um policial que achaca e
humilha um suspeito só pelo prazer de vê-lo acatar sua autoridade é tão
corrupto quanto o cidadão que sonega o Imposto de Renda porque se
convenceu de que o governo usa mal o dinheiro que arrecada.
A corrupção é uma falha ética.
Anda junto com o poder (político, econômico ou ideológico), como se
fosse uma espécie de efeito colateral: onde há poder e poderosos há
sempre a probabilidade de abuso, e no abuso está a raiz da corrupção.
Nos tempos hipermodernos em que
nos encontramos, a corrupção tornou-se um problema que desafia e
surpreende. Redes, tecnologias de informação e comunicação, uso
intensivo do espaço virtual, uma mentalidade que transforma tudo em
mercadoria, oportunidade e negócio, um desejo socialmente incontido de
consumir e ostentar, tudo isso atiça a corrupção. Faz com que ela tenda a
ficar fora de controle, a ultrapassar fronteiras, a se sofisticar. O
crime organizado, o narcotráfico, os atentados ambientais, a luta
sôfrega por mercados, a facilidade com que se obtêm informações, são
muitos os combustíveis.
Mas o que a impulsiona também
ajuda a freá-la: os mesmos fluxos virtuais funcionam como vitrines de
atos escabrosos, roubando legitimidade deles e de certo modo
controlando-os. A democratização da vida social faz o poder tornar-se
mais visível e menos onipotente. Além do mais, o Estado brasileiro não é
indefeso, está institucionalizado e bem aparelhado, dispõe de
atualizados sistemas de controle internos e externos à administração
pública, que criam incentivos à accountability, ao controle da
burocracia, à isenção e à transparência. O poder público é vigiado pela
sociedade civil, pela mídia, pela opinião pública, tem seus serviços
avaliados cotidianamente pelos cidadãos. A corrupção é condenada pela
opinião pública, algumas punições ocorrem e há muitos esforços
governamentais para debelá-la.
Mesmo assim, o problema
persiste. O que sugere que ainda não conhecemos suficientemente os seus
meandros e as suas determinações.
Ainda não avaliamos, por
exemplo, a real força que o dinheiro tem na modelagem do Estado, no
exercício do poder político, no funcionamento do sistema representativo,
no processo eleitoral e no modo de fazer política. Talvez por
acreditarmos que um regime democrático esteja vacinado contra desvios e
defeitos, menosprezamos a análise das relações entre os negócios e a
democracia. Abandonamos a discussão sobre a qualidade da democracia,
tema que agora frequenta alguns núcleos acadêmicos, mas ainda não
estacionou no centro da agenda pública.
Também não conhecemos a fundo o
efeito que a falência dos partidos como sujeitos de programa, vontade e
ação tem na maré montante da corrupção. Nossos partidos não são mais
"escolas de quadros", espaços privilegiados de seleção de lideranças ou
organizadores de consensos sociais. Passaram a potencializar os defeitos
do sistema partidário, sua permissividade exagerada, sua flexibilidade e
sua falta de critério institucional. Colaboram, com ou sem intenção,
para rebaixar a qualidade da política e aproximá-la do submundo.
Esses dois fatores se combinam
perversamente em nosso "presidencialismo de coalizão", minando o que se
tem de avanço institucional em termos de controles sobre o Estado.
Por fim, precisamos acertar as
contas com os fatores culturais da corrupção. Culpar a formação nacional
ou a cultura política pelo que há de corrupção na sociedade é um mau
caminho, em especial se não se levar em conta a dinâmica social e a
construção do Estado. Não há uma maldição cultural oprimindo a
sociedade, por mais que se tenha de reconhecer que nenhum povo é livre
de moldes culturais e tradições, que aderem a seu corpo como uma segunda
pele. Cultura política é uma construção social, que acompanha o
desenvolvimento histórico. Não podemos ignorá-la, mas será um erro se a
empregarmos para naturalizar a corrupção.
Se juntarmos as pontas desse
novelo, compreenderemos que a corrupção não é uma força da natureza, mas
uma coisa dos homens. Em suma, algo que pode ser enfrentado e
combatido, ainda que não possa ser peremptoriamente eliminado.
Marco Aurélio Nogueira,
professor titular de Teoria Política e diretor do Instituto de Políticas
Públicas e Relações Internacionais da Unesp
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO (28/07/12)
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