Entrevista a Rachel Duarte
Com quase 60 anos de idade e com sete livros sobre segurança pública,
o antropólogo Luiz Eduardo Soares se deparou com a história que lhe
traria lições pessoais não esperadas. Um amigo psicanalista o aproximou
de Ronald Soares, agora conhecido como o ‘economista do tráfico’. De
mesmo sobrenome e com quase a mesma idade que o escritor, Ronald cumpriu
pena de 24 anos de reclusão por coordenar a logística e as finanças de
umas das principais redes de tráfico na rota Colômbia-Caribe-Inglaterra.
Foi o maior julgamento da história da justiça inglesa e anos de
inteligência policial para combater o que é impossível de combater. “Até
pegar esta rede do Ronald, outras redes já se constituíram. E, quando
desmontam esta, abre espaço para mais outras. É impossível controlar”,
diz Luiz Eduardo Soares em entrevista ao
Sul21.
O autor de Elite da Tropa, que deu origem ao filme Tropa de Elite, conversou por mais de uma hora com o
Sul21 em hotel de Porto Alegre nesta semana, quando lançou o livro
Tudo ou Nada,
que conta a história de Ronald Soares. Rico em detalhes e curiosidades
sobre o esquema do tráfico internacional, inéditas até para
especialistas, o livro propõe uma viagem em busca da trajetória de vida
de um homem bem sucedido que larga tudo, mergulha no vício e se rende à
ambição. “Este ambiente está bem próximo de nós. Não é um universo que
deriva de pessoas com doenças psicológicas. Temos um ambiente que
propicia a valorização unilateral do lucro sacrificando-se valores, de
respeito a terceiros. No caso do Ronald ele se iludiu com a ideia de que
não causaria danos a ninguém, que era apenas um negócio”, conta.
O romance não tem nada de ficção. Aborda uma história real de uma
pessoa que encarou o cárcere na Inglaterra e no Brasil, expondo os
problemas de métodos usuais para lidar com a transgressão, além do
preconceito com a regulamentação das drogas e a pressão política que
impede a legalização, defendida por Luiz Eduardo Soares como única
medida capaz de reduzir os danos e frear a violência relacionada ao
tráfico de drogas. “Eu parto de uma constatação, não se trata de uma
opinião. Qualquer pessoa que se dedica a esta área, tanto profissionais
como pesquisadores, sabe que a guerra às drogas fracassou. Temos que
definir o melhor contexto constitucional para enfrentar o problema”,
propõe.
“Conhecer bastidores do tráfico internacional foi interessante. Mas
também foi história muito rica em trajeto de vida humana e existencial”
Sul21 – Porque esta história te interessou como obra literária?
Luiz Eduardo Soares – É uma história muito
interessante do ponto de vista humano e do ponto de vista das
transformações culturais das últimas décadas. Também para conhecimento
dos bastidores do tráfico internacional de drogas. A riqueza existencial
do personagem envolveu todos estes aspectos. E surpreendentemente é uma
história não conhecida no Brasil, sendo que foi o julgamento mais longo
da história da Inglaterra. Foram 14 meses de tribunal, condenação a 24
anos e com o condenado classificado durante seis anos como o preso mais
perigoso da Inglaterra. Isto levou a Justiça inglesa a deixá-lo preso em
uma cadeia de segurança máxima. Ele ficou cinco anos na solitária, o
que mobilizou entidades de direitos humanos da Europa a fazer algumas
campanhas, porque a solitária é uma prática inaceitável. As autoridades
inglesas alegavam que ele não estava na solitária, ele estava solitário,
o que seria diferente porque ele só não estava na companhia de outros
presos desta ‘envergadura’. A classificação dada a ele não foi por
envolver violência. Em que pese não haver tráfico de drogas sem
violência em alguma ponta do processo, ele nunca pegou em armas ou matou
alguém. Ele nunca foi violento, mas ele tentou fugir. Isto é
considerado gravíssimo pelo sistema inglês. Por isso ele recebeu este
‘upgrade’ para cadeia máxima. Ele já representava o Cartel de Cali e foi
preso em uma operação que envolvia três toneladas de cocaína. Ele fazia
a logística e as finanças que traziam a cocaína da selva colombiana,
pelo mar do Caribe até Londres. Conhecer estes bastidores foi
interessante. Mas, além disso, como trajeto de vida humana e existencial
foi uma história muito rica.
Antropólogo
Luiz Eduardo Soares defende a legalização das drogas como medida de
redução aos danos do tráfico | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21 – Como ele veio para a prisão de Bangu, no Brasil? Qual a diferença entre o sistema prisional brasileiro e o inglês?
Luiz Eduardo Soares - Ele foi preso em 1999 e
cumpriu 12 anos em penitenciária de segurança máxima na Inglaterra. Ao
final do cumprimento da pena ele conseguiu a transferência para o
Brasil. Há um convênio internacional entre Brasil e Inglaterra que
permite isso. Ele experimentou as duas realidades, que são muito
diferentes. Um é muito asséptico e absolutamente legalista, com
cumprimento rigoroso das normas inglesas. Nunca o tocaram. Sempre teve
assistência médica, higiene absoluta e boa alimentação. Mas ele quase
enlouqueceu lá. A clausura claustrofóbica. Sem possibilidade de visitas.
Os guardas são proibidos de falar com os prisioneiros. Sempre que
houver troca de palavras deve haver um terceiro guarda presente. Então o
silêncio e a clausura foi violentos para quem buscava a liberdade do
mar.
Sul21 – Como ele não sucumbiu?
Luiz Eduardo Soares – Ele sucumbiu. Ele chegou a ter
uma queda forte durante determinado período. Foi um sofrimento
psicológico terrível. Existiam práticas completamente estranhas e
difíceis de compreender. A cela tinha uma escotilha que era aberta
rigorosamente a cada 40 minutos. Dia e noite, todos os dias. Eles
anotavam a posição física do preso. Haviam dois guardas dedicados
exclusivamente a esta tarefa. Eles olhavam e anotavam o horário e
escreviam em um livro de registro: “Ele está sentado, com as mãos no
joelho e olhando a parede”. “14h40 – Ele está deitado e olhando para o
teto”. “03h30 – ele está lendo um livro”. Isso acabou sendo tão
condicionado que ele se preparava como um relógio. Ele fazia contagem
regressiva para saber o tempo que sobraria de privacidade.
Sul21 – Quem era o Ronald antes de entrar no mundo do tráfico?
Luiz Eduardo Soares - Nos anos 70 ele saiu da
faculdade de economia. Era um aluno inteligente e muito capaz. Era o
momento de emergência do mercado de capitais, do
boom econômico
da ditadura, ‘o milagre econômico’ e expansão do capital financeiro.
Ele era jovem, com os dotes da inteligência e agressividade para os
negócios e muito ousado. Fez uma fortuna em pouquíssimos anos. Casou-se
com a menina mais cobiçada entre os colegas de faculdade. Vivia um sonho
de fadas. Tinha tudo. Em seis meses de casamento a mulher o traiu com o
melhor amigo e ele entrou em um processo de depressão. Passou a ter uma
crise existencial, porque tinha riqueza e havia se tornado uma pessoa
que ele mesmo não se identificava mais. E sempre teve sonho desde a
adolescência, herdada do hipismo e do mundo da contemplação, de velejar.
Ele largou tudo e comprou um veleiro. Casou-se de novo e junto com um
casal de amigos passou a viver no mar, cruzando oceanos. O que de início
me fez pensar que significava apenas saciar aquele sonho de contemplar a
natureza. Mas, aprendendo o que é o dia a dia em alto mar, vi que não
era só isso. Havia também a disciplina, espartana, quase estóica, com
rigor de cumprimento de turnos para controlar o barco. Ele acordava de
madrugada para isso. Por 10 anos, ele passou por todos os riscos e
momentos de aventuras mais difíceis. O que eu não consigo imaginar para
mim, que não consigo nem meia hora em alto mar sem passar mal. (
risos). E esta foi a vida dele neste período. Isto já mostra o tipo de personalidade dele. E por isso o livro se chama
Tudo ou nada. Porque foi sempre assim a vida dele.
Sul21 – Como ele conseguia se manter financeiramente para viver apenas em alto mar?
Luiz Eduardo Soares – Ele se mantinha com pequenos
consertos para outros barcos, organizava mergulhos e fazia pequenos
serviços nos portos para apenas ganhar o suficiente para comprar mais
combustível e alimentos. Durante este período a única droga deles era a
maconha ou haxixe, que são drogas contemplativas. Por isso disse que se
trata de um recorte cultural. Era final da década de 60, a maconha era
usada para contemplação… No final do período de dez anos, há uma
passagem para a cocaína, droga ligada ao trabalho competitivo e ao
mercado agressivo. Esta transição da maconha para a cocaína também está
relacionada à mudança cultural de uma geração jovem, que pregava a paz e
o amor, respeito à natureza, convívio comunitário, para o mundo
individualista competitivo, em que a necessidade de energia competitiva
no trabalho se encontra com a cocaína.
“Não há ficção. Tudo é história real. Mudei apenas os nomes para preservar a privacidade dos envolvidos”
Sul21 – Onde ele adquiriu cocaína pela primeira vez? Como ele saiu de usuário para fazer o negócio com a droga?
Luiz Eduardo Soares – Foi no Caribe. Mas, primeiro
teve a passagem de usuário da maconha para cocaína - que não foi algo
só dele, foi do mundo ocidental que fez esta passagem. Depois houve
experiências pequenas no varejo. De ter pequenas quantias de dinheiro da
venda da droga que consumia. Fazia o transporte de pequenos lotes, já
que conhecia bem o mar, mas rendia pequenas quantias apenas para esticar
mais a viagem. Aos poucos isto se tornou um vício e ele descobriu a
heroína, que quase o matou. Já de volta ao Brasil, encontrou um velho
amigo que conhecera no Caribe, que era envolvido com o tráfico
internacional de drogas. Foi um encontro ao acaso. Esta cena está na
parte central do livro e é muito interessante. Ele viciado, rouba o
amigo para comprar heroína. O amigo ficou perplexo e viu que ele estava
vivendo a dependência. O amigo tinha malas com milhões de dólares dos
negócios do tráfico e ele roubou algo como mil dólares. Diante da
revelação da dependência, o amigo ofereceu U$ 5 mil para ele fazer uma
das duas coisas: comprar tudo em droga e morrer de overdose ou comprar
uma passagem para África do Sul, onde o irmão do amigo venceu a
dependência. Ele sabia onde tratar e prometeu curá-lo. Ronald, como bom
brasileiro, pensou e acabou fazendo as duas coisas: comprou droga e a
passagem. (
risos) Na chegada ao aeroporto na África, jogou fora
o restante da droga e encarou o doloroso tratamento. A síndrome de
abstinência de heroína é uma das dores mais terríveis. O corpo dói
inteiro. Ele venceu isso em três meses. Quando está voltando para o
Brasil com o mesmo amigo, ele recebe uma proposta para trabalhar com a
droga. Já que ele não era mais dependente, poderia ser um profissional.
Livro "Tudo ou Nada" conta a história do economista brasileiro que foi do mar à prisão | Foto: Divulgação
Sul21 – Como tu chegaste à história de Ronald, que era inédita ao Brasil?
Luiz Eduardo Soares – Ele me procurou quando ainda
estava preso em Bangu. O primo dele, psicanalista que mora em Recife e
me conhecia, prestigiava minhas palestras e desenvolve uma ONG de
Direitos Humanos depois da morte do irmão em um assalto. Depois de uma
palestra em 2006 ele me contou do primo que estava voltando ao Brasil
para cumprir o restante da pena, que queria contar a sua história e que
talvez me interessasse. Eu disse que não tinha possibilidade de assumir
novos projetos, estava contratado para outros naquela época. Mas disse
que seria um prazer mesmo assim. Eu encontrei o Ronald e nos demos muito
bem. Como rolou uma empatia, ele sentiu confiança em mim, optou por
esperar até eu me liberar para me dedicar a isso. Fomos acumulando
informações e conversas. Desde 2007 passamos a nos encontrar
regularmente. Levou cinco anos até eu lançar o livro. Ronald terminou a
pena e ganhou a liberdade em 2011.
Sul21 – Qual a carga de ficção da história? Houve adaptações ou mudanças?
Luiz Eduardo Soares – Não. O tom é literário.
Mistura romance e suspense. Mas não há ficção. Tudo é história real.
Mudei apenas os nomes para preservar a privacidade dos envolvidos.
Ronald Soares, por exemplo, virou Lukas Mello.
Sul21 – Como funcionam os bastidores do tráfico internacional de drogas?
Luiz Eduardo Soares – A cocaína sai da selva
colombiana por um avião pequeno que decola de um campo de pouso com
propina de U$ 100 mil paga aos militares que controlam a área. Eles usam
o campo uma vez por semana para decolagem. As condições climáticas têm
que estar favoráveis pela pouca autonomia de vôo da aeronave. As caixas
de Marlboro, com capacidade de 25 quilos, são largadas em mar aberto, na
fronteira entre a Colômbia e Caribe. É uma manobra bem arriscada, com
risco de vida, e se perdem algumas caixas. De lá são levadas pelos
barcos ao porto do Caribe. Lá existem barcos cenográficos, que eu
descrevo bem no livro. Dão ideia, vistos de cima, que tem mulheres de
biquíni, tomando drinques, mas na verdade estão carregados de cocaína.
São barcos planos, feitos no chão, mas pelo desenho dão a mesma ilusão
dos anúncios tridimensionais em campos de futebol. Quando chegam ao
barco setorial, a 200 milhas da Inglaterra, jogam ao mar todo o
equipamento tecnológico de direção e navegação. Um barco que saiu de
algum porto inglês, com dois casais namorando, vai em direção a eles e
leva a droga para a Inglaterra. Não há nada de suspeito porque são dois
casais que saem do porto e voltam como se fossem apenas passear. E o
barco que fez o transporte de fato, com os homens a bordo, chega sem
nenhum equipamento a bordo ou vestígio da droga, porque jogou tudo no
mar na entrada do oceano inglês. Não há nem como comprovar a navegação. A
droga sai quimicamente processada. Uma tonelada saiu com 85% de pureza
mas, por causa das questões de temperatura para suportar a viagem, é
alterada, chegando ao varejo na Inglaterra com 15% de pureza. Há uma
modificação por seis do peso. Uma tonelada se converte em seis
toneladas. Isto significa que no varejo, na época, 1999 – 2000 equivalia
a 30 milhões de libras. Algo como U$ 43 milhões de dólares por
tonelada.
Sul21 – Como o senhor explica alguém com uma carreira
promissora, bem sucedida se envolver com o tráfico depois de toda a
dolorida recuperação?
Luiz Eduardo Soares – Ele chegou a ficar em dúvida.
Perguntou quais seriam as condições. Como ele conhecia bem o mar e tinha
a experiência de economista, ele ficaria supervisionando a operação
financeira e a logística da droga. Para isso ele ficaria com algo em
torno de U$ 5 milhões de dólares por cada operação. Isso resolveria a
vida dele. Ele que já tinha filhos e não tinha mais nada para recomeçar.
Ele não pensava em viver fazendo isso. Pensou em superar as
dificuldades e se aposentar rápido. Ficou fazendo durante alguns anos e,
quando foi fazer a grande operação que lhe renderia o suficiente para a
aposentadoria, foi para a prisão.
“O resultado da guerra às drogas foi aumento do consumo, o avanço da
corrupção policial e o gasto de bilhões. Admite-se isso nos bastidores
do departamento de narcóticos dos EUA”
"Sendo
impossível controlar, a pergunta não é devemos ou não permitir o acesso
às drogas. É o mesmo que perguntar se devemos ou não permitir a lei da
gravidade" | Foto: Bruno Alencastro/Sul21
Sul21 – Vendo uma pequena noção do tamanho da rede de tráfico
internacional e entendendo como ele se organiza, fica difícil imaginar
como combatê-lo. Como enfrentar o problema?
Luiz Eduardo Soares – O tráfico vai muito bem,
obrigado. Justamente por toda essa complexidade. A investigação para
desvendar esta rede do Ronald levou muitos anos. Foi juntando partes da
história, encontrando alguns agentes, depois chegando a outros. Até
pegar esta, outras redes já se constituíram e quando desmontam esta,
abre espaço para mais outras. É impossível controlar. O percurso de
Londres que Ronald fazia, e que eu descrevo no livro, é o percurso
típico de quem vive na clandestinidade. O melhor caminho entre dois
pontos é o mais longo e labiríntico, é o traço mais barroco. Ao
contrário da física usual. Eles iam de metrô, depois táxi, depois ônibus
para fazer um trajeto curto, mas para poder driblar a segurança. O
surpreendente até para o Ronald é que tudo foi filmado pela inteligência
policial e ele assistiu a tudo no julgamento. O julgamento é visual e
tudo pode ser descrito facilmente. Eu tive acesso e facilitou esta
descrição no livro. Havia policiais de um grupo especial da polícia
inglesa, composta por egressos do M-16 e outros setores de espionagem
reduzidos depois da Guerra Fria. Eles tinham seis agentes acompanhando o
Ronald todos os dias, a cada quatro horas. Eram 24 agentes que
revezavam para ele não identificá-lo. São cenas completamente
cinematográficas. Uma velhinha comprando amendoim, uma mulher abrindo
uma janela, outro agente passa em um táxi e controlam todo o trânsito do
Ronald e os principais agentes da rede de tráfico dele por longos anos.
Eles acabam não tendo saída.
Sul21 – De que forma a regulamentação das drogas refletiria no tráfico?
Luiz Eduardo Soares - Eu parto de uma constatação
para falar sobre isso. Não se trata de opinião. Qualquer pessoa que se
dedica a esta área, tanto profissionais como pesquisadores, sabem que a
guerra às drogas fracassou. Nos últimos 30 ou 40 anos, os EUA têm
liderado o que eles mesmos chamam de guerra às drogas e controle do
tráfico. O resultado disso foi o aumento do consumo, a manutenção da
qualidade do preço, o avanço da corrupção policial e o gasto de bilhões
de dólares. É uma constatação fácil para qualquer agente do departamento
de narcóticos dos EUA, admite-se isso nos bastidores. Claro que não
dirão isso publicamente, mas sabem que isso que foi feito não funcionou.
Não foi falta de recursos e ou ineficiência das forças policiais
americanas, inglesas ou japonesas. A razão é muito simples: é impossível
controlar o tráfico a não ser no totalitarismo. Podemos regulamentar e
orientar os mercados, mas não aboli-los completamente. Principalmente
quando se trata do varejo individualizado. Quando são produtos que não
são diretamente úteis ao consumo é diferente. Mas comércio
individualizado é impossível controlar. A demanda e a oferta se
encontrarão. O país que venceu a Guerra Fria demonstrando a capacidade
de supressão total do mercado inventa a Guerra às Drogas. Todos sabem
disso. Pessoas inteligentíssimas como o Obama evidentemente sabem disso.
O resto é política. Política no sentido da demagogia, populismo, da
opinião pública conservadora, ignorante e preconceituosa. Sendo
impossível controlar, a pergunta não é devemos ou não permitir o acesso
às drogas. É o mesmo que perguntar se devemos ou não permitir a lei da
gravidade… As pessoas que querem restrição ao acesso às drogas se
horrorizam com o pensar em legalizar as drogas, como se hoje elas já não
tivessem acesso. Não se trata de permissão, se trata de definir em que
contexto este acesso vai se dar. Esta é a pergunta verdadeira e que muda
o ângulo de observação. Temos que definir o melhor contexto
constitucional para enfrentar o problema. Por exemplo, temos 18 milhões
de alcoólatras no Brasil. O tabaco é outro problema. E o Brasil
conseguiu reduzir o consumo do cigarro com campanhas educativas, com
restrições ao consumo e aos danos. A sociedade passou a repelir o uso.
Quem quiser morrer de câncer no pulmão fuma, mas fuma longe de mim.
Existe o sal e o açúcar que também são drogas. A regra deve valer para
todas as drogas. Não podemos permitir que inocentes morram para um
cidadão ter algum tipo de droga. A cocaína causa menos de 100 mortes por
ano. A média varia até 65 pessoas por ano. Homicídios dolosos 50 mil,
sendo que quase metade está relacionada ao tráfico. Milhares de pessoas
estão morrendo por causa da clandestinidade do comércio de drogas,
compra de armas e outras dinâmicas terríveis. As mortes de cocaína tem
relação com as substâncias combinadas à cocaína. Não há qualidade, a
droga não é bem processada, é contaminada. O crack é um derivado da
cocaína que surgiu a partir desta clandestinidade. Há todas estas
corruptelas. O controle de qualidade da droga tem impacto na redução de
danos. Mesmo que não consigamos conter o consumo, com a legalização
fazemos com que os problemas estejam restritos a quem decide usar estas
drogas. Para prevenir o uso vamos investir em educação, em saúde. Mas os
outros fatores como a compra de armas, corrupção, a violência, as
prisões…
"
Autorizam a legalização do álcool e não a maconha. É algo tão
irracional que eu acredito que os historiadores olhem para isso com a
mesma perplexidade que olhamos para alguns fatos do passado" | Foto:
Bruno Alencastro/Sul21
Sul21 – O senhor imagina qual solução para o problema do cárcere no Brasil?
Luiz Eduardo Soares – No Brasil temos uma realidade
trágica de 50 mil homicídios dolosos por ano. Somos o segundo país em
número absoluto, atrás apenas da Rússia. Destes casos apenas 8% são
investigados, ou seja, temos 92% de impunidade. Em contrapartida temos a
terceira maior população carcerária do mundo e a taxa mais elevada de
aumento desta população nos últimos cinco anos no mundo. Em meados dos
anos 90 tínhamos cerca de 160 mil presos, hoje temos 540 mil fora os
mandados de prisão expedidos e que não foram cumpridos e multiplicariam
por quatro o tamanho da população carcerária brasileira. Quem está sendo
preso? Segundo a pesquisa da professora da Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Luciana Boiteux, a grande
expansão da população carcerária nestes últimos anos está concentrada em
uma determinada faixa de transgressores. São jovens, com baixa
escolaridade, em geral negros, que negociavam substancias ilícitas sem
armas, sem vínculos com organizações criminosas e que foram para a
cadeia. Este responde ao fluxo mais veloz de cárcere do Brasil.
Sul21 – A Lei Antidrogas, na forma com que foi criada, foi à
responsável por aumentar a população carcerária de pessoas com pequenas
quantidades de droga, deixando os grandes responsáveis pelo tráfico
impunes. O senhor acredita que o Brasil conseguirá avançar nessa
legislação, assim como fez o Uruguai?
Luiz Eduardo Soares – É preciso tirar o chapéu para o (
presidente do Uruguai, José) Mujica. Olhando para o futuro do Brasil, eu não vejo nenhuma hipótese de que este avanço não aconteça.
É
algo tão absurdo e tão assentado no cinismo, hipocrisia, ignorância e
preconceito das pessoas. Autorizam a legalização do álcool e não a
maconha. É algo tão irracional na produção de efeitos que eu acredito
que os historiadores olhem para isso com a mesma perplexidade que
olhamos para alguns fatos do passado. Evidente que estas coisas absurdas
têm que ser enfrentadas. Mas pode levar muito tempo porque a
resistência de preconceitos é muito grande. Eu acredito que eu não verei
isso na minha útil. Eu estou com 58 anos. Comecei a escrever sobre isso
muito jovem. Logo depois da ditadura militar, no início dos anos 80, no
meu primeiro livro, eu já defendia a legalização das drogas e já éramos
vistos como românticos, utópicos ou mesmo pessoas perigosas por
‘defender as drogas’. Hoje há uma Comissão Global de Políticas sobre
Drogas, com pessoas respeitadas como Nelson Mandela, Fernando Henrique
Cardoso e que tem se reunido para discutir novas políticas e deixar de
lado a Guerra às Drogas. A mídia trata do tema cotidianamente, a Marcha
da Maconha deixou de ser criminalizada. Agora corre um abaixo-assinado
no Brasil a favor da legalização para produção da maconha em casa e
permitindo a criminalização do tráfico. Eu não assinei. Parece-me
absurdo que um jovem pobre e negro venda uma substância para outro
branco de classe média da mesma idade e um seja o criminoso e o outro o
‘coitado dependente’. Não faz sentido nenhum. Eu defendo a legalização
onde não haja proibição, com regulamentação do negócio, informação,
tributação. Sem hipocrisia e com mudança efetiva.
Sul21 – O senhor se mantém do lado da crítica radical hoje,
mas já esteve do outro lado. Foi secretário nacional de Segurança do
governo Lula e esteve ao lado do ex-secretário nacional de Políticas
sobre Drogas, Pedro Abramovay, quando ele foi demitido por declarar as
mesmas posições que o senhor. Do ponto de vista do estado, é possível
ter confiança de que vamos avançar?
Luiz Eduardo Soares – Pela minha experiência de
vida, eu digo que já vivemos em outro momento na história. As evoluções
são lentas. Antigamente até falar em drogas já era proibido. Hoje eu
falo isso onde eu vou. Eu me lembro de quando eu trabalhei com o Tarso
Genro, quando ele foi prefeito de Porto Alegre, em 2001. Não existia
Secretaria de Segurança e a ideia era constituí-la. Fui consultor. O
trabalho foi bem sucedido. Definimos o foco do trabalho na Restinga, que
era o bairro mais violento à época. Lá focamos os investimentos e
zeramos os homicídios. Isto é relatado como um ‘case’ nacional. Naquela
época eu estava em uma palestra e respondi sobre legalização de drogas a
um repórter da
Zero Hora. Foi manchete do jornal e virou
debates no rádio do grupo RBS na época. As críticas eram que o carioca
veio para o Rio Grande do Sul legalizar as drogas. As enquetes feitas
eram se as pessoas queriam preservar suas famílias ou concordar comigo.
Mas depois de duas semanas de debates intensos na imprensa daqui, uma
última avaliação feita no programa do Lasier Martins as opiniões estavam
quase empatadas. Foi 52% contra mim e 48% a favor. O assunto inclusive
saiu da pauta. Imagino que em mais uma semana eu teria virado… (
risos).
Hoje falar sobre legalização das drogas já não causa o mesmo efeito na
sociedade. E olha que a sociedade gaúcha é bem politizada, portanto, se
trata de um bom laboratório para nos balizarmos. É uma prova de que as
coisas mudaram. O Pedro (
Abramovay) foi expelido do governo
quando deu uma excelente entrevista sobre o tema. Mas foi lamentável da
parte do governo. As posições do governo federal têm sido mesmo
lamentáveis neste tema, assim como a dos políticos de maneira geral, que
ficam obedientes à opinião pública conservadora para não perder votos.
Mas algumas coisas já mudaram. Se estas mudanças terão força de levar
para algum sentido não sabemos. Imagino que ainda falaríamos sobre isso
com ironia no futuro.