segunda-feira, 4 de abril de 2011

Reinaldo Santos Neves entrevistado por Panela Literária

Reinaldo sem fronteiras

Reinaldo Santos Neves, único escritor brasileiro, até agora, a ambientar romances na Idade Média, confirma seu pioneirismo ao lançar A folha de hera – Romance bilíngue

por Donna Oliveira

A grandeza simples do escritor Reinaldo Santos Neves impressiona, assim como o faz a obra que lançou este mês, A folha de Hera – Romance bilíngue, escrita em inglês arcaico e português e publicada pela Secretaria de Estado da Cultura – Secult, e com o selo da Biblioteca Pública do Espírito Santo – BPES. O livro, inicialmente concebido como uma tradução para o inglês de seu romance A Crônica de Malemort (1978), tanto cresceu que se transformou não só em outro, com novos personagens e episódios estendidos, mas numa trilogia, sendo publicado agora o primeiro volume. Tal façanha arranca sorriso de menino em Reinaldo. Não é para menos. Ele, como se autoexige, foge à repetição e inova ao trazer para olhos leitores um romance bilíngue, conceitualmente diferente de livro bilíngue.

É assim: o romance se apresenta como outro romance, The Alfield Manuscript, de um autor americano chamado Alan Dorsey Stevenson, que por sua vez simula ser a edição crítica de um manuscrito fictício datado de 1516, que contém a suposta tradução para a língua inglesa, feita em 1483, de uma crônica francesa datada de 1372. É um autor brasileiro, Reynaldo Santos Neves com “y”, quem traduz para o português o romance do autor americano, inédito nos Estados Unidos, e publica a primeira edição dessa confusão toda no formato bilíngue. O tal Reynaldo com “y” é, portanto, também um personagem de Reinaldo com ”i”, o verdadeiro criador dessas falsas atribuições. A folha de hera é feito de dois planos, basicamente. O primeiro plano é o do autor verdadeiro que escreveu tudo. O segundo é o do autor americano do romance e, também, do tradutor brasileiro. Tais argumentos justificam que a parte ficcional do livro seja bilíngue (o que cunha o subtítulo “romance bilíngue”), e não as partes reais, como o prefácio e a dedicatória emocionada ao pai, Guilherme Santos Neves.

No fim de janeiro, na fase final de edição do livro, Reinaldo recebeu o Panela Literária na BPES, onde é escritor residente, para bater um papo sobre a concepção de A folha de Hera. Como bons falantes, a conversa não ficou só nisso e é sobre tradição literária, obsessões, mercado editorial, recepção dos leitores e estudiosos, ânimos e desânimos, Jorge Luis Borges e rememorações de vida e infância que você também lê abaixo. Uma verdadeira viagem por dentro da cabeça do escritor que desembaraça palavras e expõe silêncios.

Quer uma dica? Não desista da entrevista no meio do caminho. Sabe como é, papo entre amigos é longo, como toda boa conversa deve ser.

Panela: Como surgiu a ideia do romance bilíngue?

Reinaldo: Foi aos poucos. O projeto era só traduzir Malemort (A crônica de Malemort, 1978) pro inglês. Nem pensei em traduzir de volta, então, não sabia qual seria o resultado. Não passou pela minha cabeça que eu teria que traduzir, depois, de volta pro português. Mas a tradução criou um romance diferente. Maior e diferente. Ele é quase quatro vezes maior que o texto original no português. Aí surgiu a ideia de traduzir de volta. Foi uma coisa, assim, natural. Mas também sem pensar em publicar depois.

Panela: O português do livro foi uma tradução do inglês?

Reinaldo: Foi a tradução da tradução. Da tradução inglesa e do texto original em português. Ele cresceu e se tornou outro livro. Os personagens foram, é… ampliados. Os episódios foram ampliados. Novos personagens entraram. Uma porção de coisa que não tem no livro original.

Panela: É preciso ler A crônica de Malemort, antes, pra entender A folha de Hera?

Reinaldo: Não. Não precisa. Toda história que tá em Malemort está n’A folha de Hera. Só que ampliado. É interessante, talvez, pra quem queira estudar, né? Como é que era e como ficou.

Panela: Tem notícia de outro autor brasileiro que tenha produzido em português e inglês arcaicos, assim?

Reinaldo: Não. É pioneiro. É uma coisa interessante porque, em 78, quando foi publicado o livro (A crônica de Malemort), inclusive eu fiz questão, ele saiu como o primeiro romance brasileiro ambientando na Idade Média, independente do uso da linguagem arcaica. Mesmo que tivesse sido uma linguagem moderna, teria sido o primeiro romance de autor brasileiro ambientado na Idade Média. Quando escrevi A longa história (2007) e lancei, foi o segundo livro de autor brasileiro ambientado na Idade Média. Ninguém!, ninguém se aventurou nesse tempo todo, entende? Foi em 78. Em 30 anos ninguém quis saber da Idade Média. É uma resistência às nossas origens europeias. Sei lá, não sei que merda é essa.

Panela: Não será medo de dominar…

Reinaldo: Não sei. É falta de interesse. Tem gente que vai ao período colonial, ao século 17 etc., mas tem. A Idade Média tá fora do Brasil. É anterior à descoberta do Brasil. Não sei se isso desinteressa o pessoal, entende? São as nossas origens, cara. Eu não me sinto menos brasileiro se eu for às origens europeias, pô. Nós falamos uma língua europeia. Nossa cultura é vastamente europeia. Qual o problema você ir à Europa fazer alguma coisa com base no que tá lá? Até porque é importante, eu acho, que não apenas os europeus falem sobre a Idade Média. Porque você, como diz Borges, que é um europeu exilado, tem uma outra visão. Tenho certeza que a minha visão da Idade Média é diferente da de qualquer europeu. Assim como a dos europeus, entre si, é diferente um do outro. Mas, acho que a minha ainda tem esse viés de quem tá de fora mesmo, apesar de estar ligado pela cultura etc., mas tá de fora. Mas ninguém quer saber.

Panela: Como é que foi esse trabalho de pesquisa?

Reinaldo: O mesmo que fiz em português, com uma grande diferença: quando fiz em português não tinha internet. Quando fiz em português só tinha fontes impressas. Algumas fontes importantes que podia ter usado eu não usei porque não tinha! E não tinha como conseguir. A internet abriu um caminho, uma biblioteca. O que eu tive pra ler de texto medieval na internet não tá no gibi. Livros, assim, de 500 páginas. Tudo lá. E tudo do jeito que eles escreveram. Porque eu não queria nada atualizado, nada modernizado. Queria do jeito deles, entendeu? E tá lá! A Universidade de Michigan que colocou esses corpos de textos medievais na internet, e está enriquecendo cada vez mais. Eu tinha alguns textos impressos, também. Isso está nas fontes. Livros, assim, de 2.500 páginas. Eu li aquela merda toda, anotei tudo pra usar. Eu sou obsessivo. Eu, sei lá, fico angustiado querendo olhar tudo. Eu tive que reduzir o livro. O livro era maior do que está porque eu ia acrescentando informação. Então, a pesquisa foi a mesma. Desde Malemort é de mão dupla. Só tem no romance aquilo que encontrei nas fontes, ao mesmo tempo não tem tudo que eu encontrei nas fontes porque tem certas coisas que não convinha trazer pro leitor de hoje. Ia prejudicar a leitura, entende? Então, é uma versão de português arcaico peneirada, filtrada.

Panela: Desde quando trabalha em A folha de Hera: Romance bilíngue?

Reinaldo: Bom, comecei em 95, por aí. Eu considero 15 anos de trabalho. Não o tempo todo. Eu fiz mais coisas.

Panela: E quando você começou a trabalhar focado?

Reinaldo: Esse último ano foi todo nele.

Panela: Desde que veio para a BPES?

Reinaldo: Eu não comecei imediatamente a trabalhar, não, porque eu nem sabia, quando vim pra cá como escritor residente, que eu ia pegar esse livro. Tem um ano e meio que tô aqui como escritor residente. Os primeiros seis meses eu fiquei fazendo as outras coisas que eu precisava fazer e já imaginando um possível projeto pra começar aqui. Houve ideias. Ideias até fornecidas por livros aqui da biblioteca. Eu pautava aqui. Só que nenhuma delas me animou pra começar, entende? Eu não tava, assim… não sei, nenhuma delas me instigou. Eu tinha um outro projeto, também, que não tinha nada a ver com aqui, tenho ainda, continuo tendo, mas também não achava que era hora de começar esse projeto. Aí, resolvi então: por que que não finalizo esse troço que taí, na garganta? Vou aproveitar esse tempo que tenho aqui e acabar com esse troço. Eu pretendia, me iludia, que ia conseguir acabar de terminar o troço inteiro na minha residência. Até recentemente eu tava trabalhando pro livro inteiro. Quando eu percebi que era impossível terminar, eu dividi o livro em três. Isso foi uma estratégia, também, pra eu me concentrar numa coisa só, uma parte só e conseguir ter um produto pra mostrar, entende? Porque é importante, pra mim, apresentar essa proposta que eu acho inovadora o mais rápido possível. E, em termos de proposta, tanto faz um volume como três porque esse primeiro volume já mostra a proposta.

Panela: Como é sua rotina de escritor residente?

Reinaldo: Atualmente estou aqui como escritor residente e trabalhando em outras coisas também. A minha rotina como escritor mesmo, residente, eu chego aqui, geralmente, às 7h30 da manhã, aí começo a trabalhar. Simples. Saio pro almoço, pode ser mais cedo ou mais tarde, depois continuo a trabalhar. Eu não vou muito tarde pra casa, normalmente, por causa do trânsito, mesmo indo de ônibus, é um saco! Eu trabalho acho umas sete horas por dia.

Panela: Quanto tempo vai durar sua residência?

Reinaldo: Nós prorrogamos para mais um ano. Quando eu terminar isso aí, eu não volto pra Ufes, não. Me aposento. Já tenho todos os requisitos. Há uns três, quatro anos já podia ter me aposentado.

Panela: Intertextualidade e ironia são características marcantes na sua obra. Você disse em nossa entrevista passada que estava usando menos a intertextualidade.

Reinaldo: Intertextualidade pode ser de várias maneiras. Não só em termos de texto, mas até em termos de assunto, mesmo, entende? A própria Kitty (Kitty aos 22: Divertimento, 2006), por exemplo, é intertextual no momento em que ela recupera o mito de Cinderela. Não é o texto de Cinderela, é um mito, uma história que tá sendo contada de forma diferente. Também é intertextual. Eu acho que é quase impossível escrever um bom romance, uma boa obra, sem você, em outras palavras, ir à tradição. Tem autores que acham que eles são o início de tudo. Pelo menos para a própria obra. Acho que não querem reproduzir nada. Esses autores, geralmente, escrevem livros muito pobres, porque você dialogar com a tradição enriquece o seu livro. Enriquece. Borges achava que era impossível mesmo àquele cara “quero começar do zero”. Pô, e o que tá na cabeça dele que ele nem sabe que leu, acaba passando pro livro? Mas o trabalho consciente é melhor. Aí você controla melhor, trabalha melhor do que o inconsciente. Por isso que eu acho muita pobreza literária é por causa da recusa dos autores de, vamos dizer assim, pagar o pedágio à tradição. Eu não trabalho sem a tradição, exceto Reino dos Medas (1971). Reino dos Medas não tem isso. Acho que eu queria falar só das minhas angústias de adolescente. Não dá. Dali pra frente, quase tudo, os meus contos também, eles têm uma carga muito pesada de dívida, não dívida, melhor dizendo, com a tradição. É sempre novo quando você trabalha com a tradição, entende? Você sempre renova a tradição, você não repete a tradição. É sempre o novo. Coisa nova.

Panela: Como você trabalhou com a intertextualidade e a ironia nesse livro?

Reinaldo: A ironia aí ela está, lógico, nas entrelinhas. O texto em si é irônico do ponto de vista do leitor. Do narrador não é, não. Aquele narrador não poderia ser irônico, ele não sabe o que é a ironia. Não tem muito humor. Embora algumas situações sejam até engraçadas. Ele é um monge medieval. Ele escreve com aquela preocupação com o pecado, não sei o quê mais. Então ele é duro, vamos dizer assim. Mas, acaba sendo irônico, porque você que tá lendo vê a ironia da coisa. E, aliás, tem muita ironia dramática, também, que é outro tipo de ironia.

Panela: O que é a ironia dramática?

Reinaldo: A ironia dramática é, por exemplo, aquelas coisas quando uma pessoa diz, um personagem diz, um exemplo grosseiro: “essa vai ser minha última viagem”, ou seja, “depois vou me aposentar”. Aí viaja, o navio afunda e ele morre. Isso é ironia dramática, né? Porque é o drama que mostra a ironia daquilo que ele falou. Ele não falou ironicamente. Ele achava que ia voltar. Eu gosto de trabalhar com essas coisas, entende? Gosto muito de trabalhar com essas coisas. Quer dizer, a própria trama engana o personagem. Os oráculos eram extremamente irônicos nesse ponto, porque você fazia uma leitura da profecia, uma leitura pessoal e, às vezes por causa de uma vírgula a leitura certa era outra. Quantos exemplos se tem disso! A literatura está cheia disso. Você lembra de MacBeth? Isso é ironia dramática. E mais: é uma das coisas mais bonitas que se tem em arte, na literatura. É isso.

Panela: Em A folha de Hera tem a personagem Kathryn. Em sua obra há varias Catarinas. Conta dessa obsessão.

Reinaldo: Na verdade ela foi inconsciente, mesmo. Até o momento que começamos a conversar sobre isso, Nelson (Martinelli Filho, escritor que estuda a obra de Reinaldo) e eu, acho que não havia tido consciência que havia tanta Catarina nos meus romances e nos meus textos, entende? Aí eu achei que devia ser um padrão. Gostei da ideia de ter sempre uma Catarina nos meus romances. Então, essa virou uma Catarina, também.

Panela: Mas não tem um sentido lógico?

Reinaldo: Ah, o que tem de lógico aí é que eu tô sendo fiel ao meu imaginário. Fui ninado por meu pai com a cantiga a Nau Catarineta. De certa forma eu tô… a minha lógica é essa, entende? É uma coisa importante no meu imaginário. Meu pai… ele dedicou a mim um texto que ele escreveu sobre esse romance português fazendo referência ao fato de que era uma efetiva cantiga de ninar. Eu devia ter três anos, na época. Então é muito forte, né?, na minha cabeça essa história toda. A minha lógica é essa. É sentimental.

Panela: A folha de Hera é seu livro mais reinaldiano?

Reinaldo: O que que você chama de reinaldiano?

Panela: Esses elementos de construção como as Catarinas, a ironia e a intertextualidade, entre outros, que são marcantes na sua obra.

Reinaldo: Não sei. Eu não sei porque acho que, no final das contas, apesar de os romances serem muito diferentes uns dos outros, acho que pelo fato de eu trabalhar a tradição, acaba sendo uma abordagem básica e única.

Panela: Reinaldiana?

Reinaldo: É. Mesmo os contos, por exemplo. Os 20 contos que eu tenho pra publicar são, todos eles, abordando temas ligados a escritores, a livros, leitura, entende? Essas coisas todas. Quer dizer, aí o que eu aproveito como tema? Coisas da literatura que são importantes pra mim. Todo tipo de coisa. Aquele conto que foi publicado na revista Bravo! (Mistério na Montanha) deu o começo. Eu não tava prevendo escrever nada. Eu sonhei. Tive aquele sonho e escrevi o conto.

Panela: Igual como sonhou a história de Kitty?

Reinaldo: Igual kitty. E aí, eu não sei mais por que me abriu, entende? Em poucos meses eu tinha escrito uns cinco ou seis. E, ao longo de uns três ou quatro anos, eu escrevi os outros. Criou esse círculo temático que usa aquilo que eu gosto na literatura como tema de cada um dos textos. As histórias são diferentes, é lógico. Eu li uma citação de Heródoto, “comércio mudo”, que achei fantástica! Eu disse: “pô, cara, esse é um tema pra uma história”. Agora, que história? Aí comecei a “que história vou contar com esse tema?”. Sabe o que eu acabei escrevendo? Uma história de Sherlock Holmes. Fiz uma história nos dias de Sherlock Holmes, com mistério e tudo, inspirado nesse texto. É literatura. É tradição. Gente, a tradição é riquíssima, cara! Não falta o que reescrever em termos de tradição. Não sei pra quê as pessoas ficam tirando da cabeça, umas pobrezas de espírito, entende? Qualquer coisa lá de trás dá pra reaproveitar e fazer coisa muito boa. Por isso que sou fã, escravo da tradição.

Panela: Sua obra é marcada pelas falsas atribuições. Você tem necessidade de sempre trabalhar com essas construções em que fatos fictícios parecem reais?

Reinaldo: São sempre soluções. Elas são adotadas como soluções. Eu percebo que naquele projeto aquilo é uma solução, não aleatoriamente, entende? Foi uma solução, por exemplo, n’A Ceia Dominicana (2008).

Panela: O escritor argentino Jorge Luis Borges é constantemente citado por você, até mesmo na sua obra. Qual a importância de Borges pra você?

Reinaldo: Borges eu comecei a ler um pouco mais tarde. Não sou daqueles que descobriram Borges cedo. Bom, essa questão das falsas atribuições eu gostei muito. Não é numerosa a obra dele que utiliza falsas atribuições, mas mesmo assim ele utilizou de uma forma inovadora, eu acho. Criou o subgênero – ou o que seja – de falso resumo, falsa resenha. Ele inventava o autor, a obra e fazia um comentário. É diferente de mim. Ele achava que a gente não devia escrever livros volumosos. Era imaginar o livro e fazer um comentário a respeito. Só que eu escrevi também o livro imaginário. Foi escrito. Mas de qualquer forma ele é um aval pras coisas que eu faço. Pra ele não tem… se você é argentino não tem que escrever só sobre argentino. Ele tem um texto sobre isso dos anos 30. Ouvia-se que seriam criticados os autores que não escreviam sobre a Argentina. Aí que ele cunhou essa expressão: “nós somos europeus no exílio”. Não podemos renegar as nossas origens, né? Então eu me identifico muito com isso, com ele. Eu também acredito nisso. E eu escrevi sobre as coisas brasílicas, vamos dizer, também. A Ceia Dominicana é folclore brasileiro puro, só que com um pé lá atrás porque lá atrás estão as origens do folclore brasileiro, também, em determinados aspectos. Você tem muita coisa do folclore que vem do índio, que vem do negro, entendeu? Mas a maior parte vem de Roma, de Portugal, essas coisas. Então, eu me identifico com ele, com isso. E, ele gostava muito de (Robert Louis) Stevenson. Eu sinto a mesma coisa. Eu acho que ele deve sentir. Stevenson não é um grande autor, mas tem alguma mágica nele pra quem ler criança, pelo menos foi o caso de Borges, que é o meu caso. Fica pra vida inteira. Borges escreveu um poema sobre um personagem de Stevenson, d’A Ilha do Tesouro. Era sobre um pirata cego, e ele ficou cego depois, até. Deve ter uma ironia dramática aí. Escreveu um poema pro personagem, cara!; um pirata! É gostar muito. Aí depois vem (Antonio) Muñoz Molina, um autor espanhol, (no livro Carlota Fainberg, 2001) que o personagem principal, um professor de literatura vai num congresso não sei onde pra fazer uma exposição, uma palestra sobre esse poema de Borges. Como que as coisas se desdobram! Borges já foi à tradição. Esse (Molina) vai através de Borges até a tradição; até Stevenson. Por isso que é rica. É um romance inteiro. Lógico que têm outras coisas, mas o objetivo do cara é esse, depois ele acrescenta um final. Ele apresenta, não completo, mas mostra o personagem fazendo lá a palestra, até discutindo com uma dessas que é mais xiita que aquilo é uma merda, que aquilo não tem sentido. Qualquer tentativa de marginalizar o que for, é coisa de xiita. Não combina com literatura, com arte, entende? Não combina. E, no entanto, têm umas vertentes aí que não fazem mais que discriminar temas, personagens, autores. Ou é boa, ou não é, a literatura. E se ela tem outros interesses que não os literários, geralmente não é boa. Se você quer defender uma ideologia, uma política, ou qualquer coisa assim, você já começa perdendo. Não pode fazer literatura, na minha opinião. Literatura pela literatura, igual ars gratia artis, arte pela arte. Eles não cumprem isso não, nós sabemos. Mas, é um grande slogan. Romance engajado, pra mim, não existe. Quer dizer, não existe como romance. Existe como ideologia. Essa mesmice política e ideológica não vale nada como literatura. Está tudo morto, ninguém lê.

Panela: Stevenson, personagem de A folha de Hera, ironiza que o livro dele foi publicado em outro país, numa tradução. Isso é uma ironia ao mercado local, nacional?

Reinaldo: A ironia aí, de certa forma, salpica em mim por não conseguir editar o livro. Eu gostei muito dessa saída do Stevenson também por isso. Porque estou, através dele, fazendo o meu registro, mas literariamente. Eu compreendo que no estado de coisas – até digo isso no meu prefácio – esse tipo de livro, esse projeto aí, não é comercial, então não tem interesse por parte das editoras comerciais. Por isso eu estou, assim, não diria nem conformado, estou gostando que o livro seja distribuído gratuitamente. Pra mim o que importa é que ele esteja impresso, seja lido, possa ser lido por qualquer um, entende? E no caso, uma solução porque eu precisava que o livro estivesse inédito. Por quê? Porque senão, ele não justificaria a publicação em inglês, só a publicação da tradução. Por isso é que ele não poderia ter sido publicado. Quando criei o personagem americano, foi com solução. Explica, justifica a edição bilíngue no país hospedeiro. E eu sempre cito, é ele cita o caso de (James) Joyce, de Ulisses. Por outras razões, e não no formato bilíngue, Joyce não conseguiu publicar na Inglaterra nem nos Estados Unidos, então teve que publicar na França. Quer dizer, algum motivo que impede a publicação no país de origem e força a publicação em outro país. No caso do Stevenson, porque ele não conseguiu sensibilizar os editores, agentes literários, o diabo a quatro. Agora, de certa forma, é a minha situação. Eu não consegui. Eu mandei pra Bertrand duas versões para ver como é que eu tava. Não me deram resposta até hoje. Não sei se algum dia vou ter, mas agora não dá. Não dá mais. Também eu não vendi bem. A longa história ainda vendeu decentemente, mas A Ceia Dominicana não vendeu bem. Como é que você vai investir de novo num autor com um livro mais complicado ainda e maior, talvez, se não vai vender? Eu entendo perfeitamente. No lugar deles eu também não editaria. Daí porque surgiu essa alternativa institucional. Maravilha!

Panela: Essa questão de não vender é porque você não está no eixo Rio – São Paulo?

Inspira. Expira.

Reinaldo: O que intriga é que uma das minhas políticas como escritor é atender a dois tipos de público. Eu dou uma história interessante, pelo menos tento dar uma história interessante, mas também jogo ali dentro todo aquele aparato intertextual, não sei o quê mais, para o leitor até erudito, mesmo. Leitor que gosta dessas coisas pra escrever sobre elas. Meus livros podem ser lidos como entretenimento, mas também podem ser estudados, interpretados academicamente. Mas, eu não sei o que acontece. Mesmo depois de exposto a todos os públicos em termos de Brasil, a academia – não a Academia de Letras –, o meio acadêmico me ignora numa boa. Continuo ignorado. Eu não ouso explicar o que acontece. Eu não sei, entende? A Bertrand envia pra deus e o mundo. Não é por falta de receber os livros. A longa história teve duas boas resenhas. A Ceia não teve nenhuma. Eu não quero parecer, como eu diria, revoltado nem nada, não. É uma realidade. Eu só queria entender o que tá por trás disso, se é que há alguma coisa, entende? Porque o livro passa na cara, né?

Panela: Será que é porque você é um autor do Espírito Santo?

Reinaldo: Não sei. Não sei. Não sei. Mas veja bem, no caso d’A Ceia, que foi completamente ignorada, não ignoraram apenas a mim, são essas contradições que não entendo. Não foi apenas Reinaldo Santos Neves que foi ignorado. Foi Petrônio, também. Porque no momento em que você se propõe fazer uma releitura de um grande autor, autor que todo mundo conhece no mundo inteiro, pelo menos isso deveria servir pra interessar a academia, não é isso? Nem assim. Eles não querem saber o que que um escritor brasileiro fez de Petrônio. Eu não sei dizer.

Panela: Não seria porque você está aqui, quietinho, não promovendo seu livro lá no eixo Rio – São Paulo, não estar tornando conhecida a pessoa Reinaldo?

Reinaldo: Isso ajuda muito. Isso eu sempre soube que ajudava muito. Você vai aos mesmos lançamentos que eles, mesmas palestras, mesmos eventos. Encontra na rua, encontra no bar, encontra aonde for, né? Você faz parte. Ah, esse é o livro daquela pessoa! Eu tenho uma outra explicação, também. Não é explicação, é uma conjectura sobre a academia. Preguiça do novo. Você sabe que os acadêmicos ficam batendo na mesma tecla enquanto dá. Vão ter que pensar muito. Primeiro pra não ter que ler o tijolo. Mas aquilo ali, não. Isso eu tenho consciência. Quanto a fazer bem ou fazer mal, aí é uma questão aberta. Eu acho que tento fazer bem as coisas, mas, quem vai dizer realmente são eles. Quem vai encontrar os fatos são eles ao se debruçarem sobre o livro. Isso não está em questão. Agora, que é novidade é, pô. Eu trabalho bastante pra isso. Quem é que reescreveu Petrônio, aqui? Teve um cara aí que escreveu um livro publicado alguns anos antes do meu, mas abordando o próprio Petrônio lá em Roma, essas coisas todas. Então, uma outra proposta. No meu caso, eu trouxe Petrônio para o Brasil, mostrando as semelhanças, inclusive. Foi um diálogo muito próximo. Aproximou Petrônio. É uma tese, quase, sobre como está próximo de nós um romance como Petrônio. Ninguém quer saber de Petrônio se… o autor for um capixaba, segundo sua tese. Não sei se eles acham “não, isso aqui não pode ser bom”.

Panela: Você é referência para a maioria dos autores capixabas. Como se sente em relação a isso?

Reinaldo: Olha, eu sempre detestei e sempre deixei muito claro que detesto esse tipo de colocação. Em literatura, arte, essas coisas, é impossível você defender qualquer colocação desse tipo. Ele é o melhor músico, ele é o melhor autor, ele é o melhor seja o que for. No esporte você pode porque o cara tá correndo ali, vai chegar na frente e, matematicamente, ele fez em menos tempo. Então, ele é o melhor naquele momento. Mas em literatura não dá, cara. Tem muita gente boa, então tem muita gente melhor, em tese. Eu gosto que me valorize. Quem não gosta, né? Mas eu gosto que digam de mim que sou um dos melhores. Essa é a frase que eu gosto de ouvir, entende? Essa é a frase que eu digiro bem. A outra não significa nada. Não há substância. Há bons autores e todos eles são diferentes uns dos outros. Você não pode comparar. Então, eu realmente… como é que eu diria?, descarto esse tipo de apreciação, nem faço isso com ninguém. Se eu gosto de um autor, não digo que ele é o melhor, digo que é um dos melhores. E ainda digo “na minha opinião”, porque isso é subjetivo.

Panela: Em nossa primeira entrevista, contou do desânimo por que passou após a pouca vendagem de A Ceia Dominicana, quando até pensou em parar de publicar. Como andam os ânimos, agora?

Reinaldo: Olha, naquela época, na verdade, inclusive aqueles projetos que nasceram aqui, eu acho que em parte eu não embarquei neles por causa desse desânimo, por causa dessa falta de confiança não tanto em mim, mas nos receptores, né? Mas A folha de Hera mudou tudo porque era uma coisa que já estava começada, eu tinha uma espécie de compromisso com ele, com o romance. E, nesse momento, é lógico que a gente fica animado com o livro. Eu tô despreocupado com relação à recepção, pelo menos em termos financeiros, porque não vai ser vendido. Isso aí tira um peso. Não tem compromisso de vender. Se eu fizer o lançamento, tenho certeza que vem uma porção de gente porque é de graça. De graça até injeção na testa. De graça até romance bilíngue! Então, esse tipo de preocupação eu não tenho, e isso é muito bom. Com a Bertrand, era a Bertrand que tava investindo. E eu pensava: “o que que eu posso fazer, cara, pra ajudar?”. Por que não fiz isso, por que não fiz aquilo? Por que não fui a Paraty, ficar lá fazendo auê? Não consigo fazer essas coisas. Mas consigo ver meu livro em Paraty. Por quê? De graça, quem não vai querer? Agora, com relação à recepção mais acadêmica, mais crítica mesmo, eu me cobro. Mais uma tentativa que tô fazendo de apresentar uma coisa que é novidade pra ver como esse pessoal recebe.
*A Folha de Hera – Romance bilíngue, de Reinaldo Santos Neves. Secult/BPES, 492 páginas. Distribuído gratuitamente.

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