A nova novela do SBT, Amor e Revolução, que vai ao ar por volta das 10 da noite, causa uma primeira impressão de quase repulsa, uma primeira impressão que nos desencoraja a esperar pela segunda. É como se ela tivesse vindo para ridicularizar os jovens que, em armas, resistiram ao golpe militar de 1964. Em matéria de melodrama, os guerrilheiros mereciam coisa melhor. A novela acaba com eles. Faz com que recitem falas que soariam primárias até mesmo na boca de ativistas imberbes de um centro acadêmico do ensino médio. Sobra para eles um papel de tolos infantilizados e armados, cujos sonhos socialistas são reedições fáceis dessas campanhas publicitárias que grandes bancos veiculam na TV às vésperas do Natal. Os combates físicos entre policiais e militantes de esquerda são ainda mais constrangedores: lembram uma coreografia canhestra de balé moderno em cidade do interior. Eis enfim a primeira impressão: esses esquerdistas do SBT seriam reprovados em qualquer assembleia de verdade, não seriam aceitos nem no jardim da infância do movimento estudantil.
É uma pena, mas a gente não desiste. A gente resiste e insiste. E não desliga a TV. Conforme os capítulos avançam, a gente nota que não é por mal que a novela fala tão mal da luta armada - e aí vem a segunda impressão que nos envolve: não, não é por querer que Amor e Revolução vai apatetando a esquerda. Aquilo que foi tragédia nos anos 60 agora volta como vexame de TV, mas, a cada nova cena, a gente mantém a esperança: esse vexame virá para o bem.
Amor e Revolução é uma novela ruim pela qual vale a pena torcer. Se há algo de que o Brasil precisa é, vamos usar aqui uma palavra pernóstica, "revisitar" os bastidores e os traumas da luta armada, aí incluída a dura repressão política. A tortura precisa aparecer na TV. É bem verdade que já houve, na década passada, logo após a posse de Fernando Henrique Cardoso como presidente, não uma novela, mas uma minissérie que falou dos guerrilheiros. Foi Anos Rebeldes, na Globo. Mas, naquela minissérie, o tema da tortura recebeu um tratamento elíptico, distanciado. Agora, Amor e Revolução traz longas sequências de tortura. O problema é que elas não são bem-feitas. Ao contrário, poderiam ser chamadas de sensacionalismo melodramático: promovem o encontro estilístico entre o mau gosto e o realismo impostado, que lembra a encenação de crimes de sangue em teatro de circo mambembe. O valor estético é nenhum, mas sempre há o mérito, vá lá, de tocar no assunto. Daí a torcida para que o vexame não seja total nem totalitário.
Quanto à tortura, a novela traz mais do que cenas de ficção. Ao fim de cada capítulo, seres humanos reais, tanto aqueles que defenderam o regime militar como os que o enfrentaram e sobreviveram, dão depoimentos detalhados, em primeira pessoa. Nisso, no uso que faz de testemunhos de gente de verdade ao fim dos capítulos, o SBT apenas copia sem a menor cerimônia a fórmula que fez escola em novelas da Globo, mas, desta vez, o que temos são relatos das vítimas da tortura, num nível de profundidade e numa extensão que nunca se viu na TV brasileira.
Apenas por esses depoimentos, Amor e Revolução já teria valido. Ela ajuda o País a desvelar o tabu, a libertar dos arquivos mortos um assunto que os brasileiros têm o direito de conhecer. Isso não significa revanchismo nem pleitear a devida punição aos torturadores e a seus chefes. Trata-se simplesmente de saber o que aconteceu nas masmorras dos anos 60 e 70 - e só por isso vale torcer para que a nova novela do SBT não sucumba inteira e prematuramente à força imperiosa de seu desastre estético. Torce-se para que o tema da novela ganhe mais repercussão, apesar da própria novela. Quanto ao mais, Amor e Revolução é inestimável por levantar um tema que ainda é tabu, mas é péssima no modo de tratá-lo.
O mais terrível é que não foi por falta de recursos que ela saiu tão mal. Ao contrário, suas deficiências decorrem da combinação entre a abundância de elementos de produção - roupas, carros, cenários, luzes - e a escassez desconcertante de sensibilidade, conhecimento histórico e mesmo inteligência. Há um quê de ingenuidade tardia nessa produção, como se seus autores e diretores não soubessem que já houve, na televisão brasileira, um programa chamado Casseta & Planeta que, definitivamente, mudou o limite do que é ridículo. Às vezes, Amor e Revolução lembra o velho humorístico da Globo caçoando de novelas da própria Globo. Parece um quadro de Casseta & Planeta perdido no tempo.
O que se dá com os figurinos é um belo sintoma da ausência de esmero. Eles estão todos lá, mas, no meio da estrada de terra, não há uma mancha de poeira na farda do soldado que se engalfinha com os guerrilheiros. O colarinho do torturador nunca perde a goma. Assim, todos os trajes de todos os personagens cheiram a naftalina (além de cores, a televisão às vezes transmite cheiros). Todas as mentiras soam cômicas, e todas as verdades ganham a pompa de um embuste.
Por falta de clareza, de legitimidade e de articulação política, a esquerda armada levou a pior na vida real. Por falta de delicadeza, de pensamento crítico e de arte, a novela do SBT, apesar das intenções, vai massacrar os guerrilheiros uma segunda vez.
EUGENIO BUCCI É JORNALISTA, PROFESSOR DA ECA-USP E AUTOR DE VIDEOLOGIAS (BOITEMPO)
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