sexta-feira, 15 de abril de 2011

Justiça com os próprios votos (Cristian Klein)

Num país onde quem tem uma toga é rei, um dos grandes avanços foi a criação do Conselho Nacional de Justiça. O CNJ surgiu como um contrapoder para quebrar a tradição de um Judiciário encastelado do resto da sociedade. Era a caixa-preta à que um dia se referiu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Único dos três poderes que não tem origem no voto popular, teria todas as razões para sofrer de crises de legitimidade. Pelo contrário. Resiste na defesa de prerrogativas vistas como privilégios, por vezes de modo que insulta a inteligência do menos educado dos brasileiros. O caso recente em que o calor da tarde foi justificativa perante o CNJ para que tribunais não trabalhem no horário normal de expediente é apenas uma destas manifestações. As férias de 60 dias são outra trincheira, cuja extinção é alvo de projetos no Congresso.

Há alguns anos, o Judiciário está na mira da sociedade. E isso é bom. Quase todos os seus problemas se resumem a um contraste no exercício de suas duas principais funções: é lento na prestação de serviços à população - como servidor - mas é diligente quando está em jogo seu papel de autoridade. É o que faz a categoria corresponder tão bem ao estamento burocrático, de DNA ibérico, descrito por Raymundo Faoro em "Os donos do poder".

Deputados criticam ativismo e propõem fim de TSE e TRE"s

Por outro lado, é importante que o Judiciário se mantenha independente e desempenhe funções que sempre exerceu a contento. Um dos efeitos mais comuns da insatisfação represada é explodir como projeto de demolição.

Prova disso é a ideia icononoclasta, que parecia apenas protesto inconsequente de um político irado com a arbitragem das eleições no Brasil, cujo potencial de atração talvez seja maior do que se poderia imaginar. Em reportagem publicada neste Valor, em fevereiro, o líder do PTB na Câmara, Jovair Arantes (GO), sugeriu a extinção da Justiça Eleitoral como principal proposta para o debate da reforma política.

Arantes dizia que a intenção era botar o "dedo na ferida". Sua maior reclamação é que a Justiça Eleitoral interfere demais nas disputas e tem levado à realização de uma espécie de terceiro turno nos tribunais. O argumento não é de todo ausente da agenda pública. A judicialização da política é sempre citada como um dos problemas da democracia - não só a da brasileira, diga-se. Mas a ideia, pela radicalidade, parecia carregar a marca da idiossincrasia inócua. Eis, contudo, que a ousadia tem mostrado sua capacidade de conquistar corações e mentes.

O líder do PDT na Câmara, Giovanni Queiroz (PA), reconhece que "a tese de Jovair" mexeu com a cabeça de muita gente no Congresso. "Temos que acabar com essa estrutura do TSE e dos TRE"s. Não há razão para que as ações não sejam julgadas pela Justiça comum. Os juízes são emprestados, não são especialistas na matéria", defende. Queiroz sugere que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) exerça as funções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e que os tribunais de justiça estaduais ou os regionais federais desempenhem o papel dos Tribunais Regionais Eleitorais (TRE"s). Qual seria a vantagem? "Menos palacetes seriam construídos. Eles agridem a miséria brasileira", diz.

O argumento de Jovair Arantes - que está preparando uma proposta de emenda constitucional sobre o assunto - é semelhante. Ele critica o custo de quase R$ 5 bilhões da Justiça Eleitoral, mesmo em ano sem eleições. Mas o ponto crucial é mesmo a interferência no processo eleitoral.

O ativismo é visto como preocupação principal pelo líder do PT na Câmara, Paulo Teixeira (SP). O deputado se diz contrário à extinção, mas defende a delimitação do poder normativo da Justiça Eleitoral. "Ela tem exercido uma regulamentação muito exacerbada", afirma. Teixeira cita como exageros a verticalização das alianças, em 2002, e a interpretação, no ano passado, de que o suplente deve pertencer ao mesmo partido do titular, contrariando critério em vigor há décadas.

Presidente do TSE, o ministro Ricardo Lewandowski nega que haja ativismo. Afirma que o tribunal só age quando provocado. "Os protagonistas são os políticos. Somos coadjuvantes, como árbitros numa partida de futebol. O que ocorre é que os jogadores estão pedindo a intervenção do juiz", diz. Lewandowski argumenta que sempre nos momentos em que a Justiça Eleitoral foi enfraquecida "houve um retrocesso", como no Estado Novo (1937-1947) e depois do golpe militar de 1964.

O presidente do TSE aponta o sistema de rodízio e os mandatos de dois anos não como desvantagem, pela falta de especialização, mas como forma de se evitar uma "ideologização" dos magistrados. Lewandowski ressalta ainda o baixo custo das eleições de 2010 - R$ 3,60 por cidadão, "o preço de um café com leite" - e a eficiência do TSE, que divulgou o resultado presidencial em 1h04.

De fato, a Justiça Eleitoral brasileira pode ser considerada modelo quando se leva em consideração situações constrangedoras vividas por democracias ditas avançadas. A eleição presidencial americana de 2000 é um exemplo. A decisão a favor de George W. Bush se deu na recontagem de votos da Flórida, governada pelo irmão do então candidato republicano, que tinha influência sobre a Justiça Eleitoral do Estado. No Reino Unido e na Suíça, o Executivo também se confunde com o Judiciário em questões eleitorais e abre margem ao favorecimento de quem está no poder. Outros países (como Rússia, Uruguai e Equador) adotam modelos híbridos que combinam funcionários públicos de carreira e nomes indicados pelos partidos políticos.

No Brasil, a Justiça Eleitoral é uma das instituições mais antigas do sistema político. Veio na esteira da Revolução de 30 e tinha como objetivo moralizar o processo eleitoral e acabar com as fraudes que marcaram a República Velha.

Nos últimos anos, no entanto, saiu do pedestal e passou a ser vista como incômoda protagonista. No ano passado, foi alvo de críticas incessantes. A oposição, ao ver o então presidente Lula fazer campanha antecipada para sua candidata, Dilma Rousseff, esperneava e acusava o TSE de ser leniente, inoperante. Já o governo reclamava de estar amarrado a regras que tolhem a política. E, assim, o trânsito da propaganda eleitoral caiu no denuncismo e na tentativa de impingir multas ao adversário. O TSE foi o juiz infeliz de um jogo feio, catimbado, cheio de faltas. Pelo jeito, não está agradando nem aos vencedores.

FONTE: VALOR ECONÔMICO (14/04/11)

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