Sem discutir o que de suas recomendações acabará sendo implantado, uma coisa se pode dizer da Comissão Especial do Senado para a reforma política. Ela deve entregar ao presidente Sarney um relatório paradoxal: mexe muito em nosso sistema político, mas pouco nos lugares certos.
É fato que muita água ainda vai passar por baixo da ponte e que o anteprojeto da Comissão Especial terá que ser apreciado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania e depois pelo Plenário do Senado, antes de ser encaminhado à Câmara. Em cada uma dessas etapas, as chances de que seja alterado são grandes, tanto que já se discute se chegará ao final semelhante ao que é hoje. Aliás, são crescentes as dúvidas sobre se, de fato, dele resultará uma reforma, tamanhas são as desconfianças que suas sugestões suscitam.
A Comissão teve tempo de menos e intenções demais. Pensando bem, debater e deliberar sobre 14 temas de elevada complexidade, em 45 dias é, claramente, uma missão impossível. Algo teria que ser sacrificado para que se cumprisse o prazo e o preço foi a profundidade. Muitas ideias foram postas na mesa, mas nenhuma pode ser considerada de maneira adequada.
Mas o pior não é isso. Mais grave que enfileirar propostas sem a necessária reflexão, o pecado da Comissão foi a falta de ousadia e de contemporaneidade. O modelo de sistema político que emerge de seu trabalho não é apenas confuso. É velho.
Se tivesse sido instaurada há 50 anos, sua agenda seria muito parecida, senão igual àquela que se propôs. Nela, não estão refletidas as mudanças pelas quais passou a sociedade brasileira nas últimas décadas. Muito menos seu traço mais significativo: o amadurecimento do eleitorado.
Nas propostas da Comissão, o tradicional paternalismo de nossas elites se manifesta a toda hora. O povo é sempre considerado incapaz de saber o que é bom para seus próprios interesses. Sem a elite para protegê-lo, um ente indefeso.
Onde isso fica mais visível é na discussão sobre a obrigatoriedade do voto. Mantê-la ou mudá-la são possibilidades igualmente defensáveis, mas o relevante foi decidir por ela com o argumento de que “ainda é cedo” para que possamos prescindir do voto obrigatório. Como se só pudéssemos rever a norma quando tivermos um povo mais culto, educado ou coisas do gênero. Como se o Brasil e sua população fossem atrasados demais para algo que quase todos concordam ser mais coerente com a democracia.
Ao invés de sacudir o ranço paternalista, a Comissão o deixou intocado. De seu trabalho, não está saindo um sistema mais arejado, mais descomplicado, mais flexível à ação do cidadão.
Se ela se sentiu tão livre que podia mudar tantas coisas, por que não foi mais longe? Por que não propôs uma reforma política sintonizada com o século XXI e não uma que poderia (ou, quem sabe, até deveria) ter acontecido há 100 anos?
Temos a sorte de ser, neste momento, um país disposto a repensar todo seu sistema político, aceitando os problemas da instabilidade e da descontinuidade institucional que daí decorrem. Mas não estamos conseguindo fazê-lo. Exemplificando: em plena revolução digital, a Comissão não dedicou um minuto de seu tempo a imaginar como a internet interativa poderia aprofundar a democracia.
Alguém ouviu alguma proposta que visasse a ampliar formas de democracia direta? Alguém sugeriu como poderíamos estimular a iniciativa popular em matéria legal (até em função da decepção com o retardo na implementação da única que parecia ter dado certo, a “Ficha Limpa”)? Houve alguma discussão do referendo como mecanismo cotidiano de consulta? Ou continuamos a achar que é algo excepcional (como esse que a Comissão pretende fazer sobre a mudança no sistema eleitoral)? Alguém teve a ousadia de lembrar que vários países estão estabelecendo formas de “recall político”, pelas quais os eleitores reavaliam se mantém um político no cargo ou se o mandam de volta para casa?
Os méritos da Comissão são muitos, mas podíamos esperar mais de seus integrantes.
Marcos Coimbra é sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi
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