terça-feira, 26 de abril de 2011

Jirau, Dilma e a herança maldita (Ricardo Vélez Rodríguez)

Está a se efetivar o maior processo de entropia republicana da nossa História. O fenômeno poderia ser ilustrado com a frase, um tanto esquisita, do prefeito de São Paulo, quando falou da formação de novo partido, mais ou menos nos seguintes termos: não é uma organização nem de direita, nem de esquerda, nem de cima, nem de baixo. A frase do prefeito lembra a definição que do ser fazia o pré-socrático Heráclito de Éfeso: não é nem quente, nem frio, nem branco, nem preto, nem alto, nem baixo. Enquanto a definição heraclitiana ficou nas névoas da metafísica grega, o significado da afirmação de Gilberto Kassab é relativamente simples de ser desvendado: trata-se da ressurreição do velho "centrão", criado na era Sarney para fazer as delícias de políticos de carreira e burocratas de plantão, que não queriam largar o osso das benesses oficiais. Todo mundo com o governo, ninguém contra, que não somos de ferro!

Gravíssima situação que faz lembrar o pesadelo antevisto por Tocqueville para as democracias, efetivado pela onipotência da maioria, banida como desserviço à pátria a presença de qualquer oposição, mesmo que esta se traduza em singelos protestos veiculados pela mídia. É a síndrome chavista da "vontade geral" pura e simples, encarnada no líder e que impede que os cidadãos se expressem pela boca dos seus representantes. É a perversa tendência à anulação de qualquer signo de insatisfação da sociedade por meio da imprensa livre, protagonizada, ao longo da última década, pelo casal Kirchner, nesse tango de mau gosto de um passo para a frente e dois para trás, em que ficou enredada a democracia argentina.

Felizmente, as coisas não chegaram ainda, no Brasil, ao extremo da entropia total, dada a presença no Congresso Nacional de vozes que se erguem contra essa tendência. Mas que a força do rolo compressor oficial está em andamento, disso não há dúvida. O mostrengo mostrou as suas garras ao ensejo da recente visita do presidente americano ao Brasil, quando os policiais cariocas deram tratamento à margem da lei aos jovens que protestavam no centro do Rio, ou no atentado de que foi vítima conhecido blogueiro que se caracterizou por criticar as políticas do governo fluminense. Ensaios de intimidação e de prepotência que em nada ajudam a vida democrática e a defesa dos direitos humanos, tão badalada pela atual presidente.

Porém a sociedade brasileira, felizmente, é mais complexa do que imagina a vã sabedoria oficial. O episódio ocorrido semanas atrás no canteiro de obras da Hidrelétrica de Jirau e que se estendeu como rastilho de pólvora por outros cenários do PAC 2 está a revelar que os estrategistas do governo se esqueceram de combinar os projetos desenvolvimentistas com a própria sociedade. Pior ainda, com os trabalhadores dos canteiros. A insatisfação é clara e não poupou as lideranças peleguizadas ao redor da CUT. Estas ficaram em palpos de aranha para dar uma explicação à sociedade acerca dos violentos protestos dos operários nos canteiros administrados pelo PT e coligados. O rolo compressor não conseguiu abafar os reclamos trabalhistas. Nem conseguirá, com certeza, esconder as perdas que a economia do País terá com a indevida intervenção do governo na gestão da empresa Vale, que está sendo obrigada, com a defenestração do anterior presidente, a praticar políticas econômicas nada rentáveis e atentatórias aos interesses dos acionistas.

Caberia indagar, a esta altura dos acontecimentos, onde está a "herança maldita" de que tanto falava Lula ao longo dos seus dois mandatos-palanque. Hoje, certamente, essa herança não seria identificada com o "neoliberalismo" de Fernando Henrique Cardoso, que garantiu as privatizações (as quais desoneraram o Tesouro Nacional e aumentaram o ingresso de dinheiro nas arcas oficiais) e efetivou o saneamento das contas públicas com a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal.

A perversa herança é constituída, hoje, pelo reforço da tendência estatizante presente no coração do governo, pelas mãos do lulismo e do petismo, na versão castilhista, que, ensaiada na década passada nos pagos gaúchos, se tornou atuante em nível nacional, no atual momento, por força da identificação do núcleo duro do poder com essa tresloucada propensão. Porque a inflação está voltando, quase descontrolada, às prateleiras da economia não pela mão do saudoso controle dos gastos públicos, mas justamente turbinada pela megalomania lulista do "nunca antes na história deste país" e pelo carnaval de bolsas e subsídios oficiais pagos a eleitores pobres, ongueiros irresponsáveis, burocratas corruptos, companheiros e até a países "amigos", como se tem revelado na recente revisão dos preços da energia vendida ao Paraguai. Tanta gastança tem preço. E essa "herança maldita" afetará os bolsos de quem sempre sai perdendo na história do nosso republicanismo patrimonialista: o contribuinte.

A presidente Dilma regressou há dias da sua visita oficial à China. Tomara que a mandatária tenha aprendido as lições de realismo político do mandarinato e coloque definitivamente nos trilhos do bom senso as nossas relações internacionais, loucamente polarizadas, no ciclo lulista, pelo viés ideológico, que tudo deforma. O Brasil perdeu, no caminho dessa megalomania vácua e irresponsável, a oportunidade de conquistar, com o apoio dos grandes, a cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, bem como a liderança na Unesco e na Organização Mundial do Comércio.

A declaração final dos líderes do Bric na China, referindo-se à necessidade de renovação da ONU, foi vaga demais para as pretensões brasileiras. O Itamaraty precisa voltar ao seio da tradição do barão do Rio Branco, que fez os nossos diplomatas serem respeitados porque punham em prática políticas diuturnamente amadurecidas na análise estratégica do mundo e das necessidades do País.

Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG)

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO (25/04/11)

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