Dilma Rousseff estava na China quando Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso, no Brasil, trocavam farpas pela imprensa. Eles voltaram a ocupar lugar central no debate político recentemente, à frente das discussões sobre as estratégias eleitorais de seus respectivos partidos, PT e PSDB.
Lula assumiu o comando das discussões sobre alianças do PT para 2012 pouco mais de três meses após deixar a Presidência da República. FHC, reabilitado por um PSDB em crise, escreveu artigo no qual recomendou à oposição priorizar a nova classe média em vez de disputar os mais pobres com o PT. Lula criticou, FHC reagiu e até levantou a hipótese de uma terceira disputa eleitoral entre eles.
A intensa atividade partidária dos ex-presidentes é criticada por analistas políticos. O Brasil vive situação inédita. Assim como FHC e Lula, os outros três ex-presidentes vivos - José Sarney (PMDB), Itamar Franco (PPS) e Fernando Collor (PTB) -, estão atuantes e ocupam papéis destacados no Senado, com ou sem influência política.
"Um ex-presidente deveria se recolher e criar o seu memorial. É o ponto máximo da carreira política, não deveria ser banalizado", afirma o historiador Marco Antonio Villa, da Universidade Federal de São Carlos. Para ele, o que explica a ação tão efetiva dos ex-presidentes é a falta de novas lideranças e ideias originais no país.
Dilma tem que dividir holofotes com antecessores
Presidente da República de 1985 a 90, Sarney preside o Senado pela terceira vez. Após desgaste sofrido na gestão passada no comando da Casa, neste mandato ele tenta patrocinar uma reforma política e mudar a tramitação de medidas provisórias. Mais recentemente, defendeu novo referendo sobre a comercialização de armas.
Collor, que assumiu a presidência em 1990 e renunciou em 92, após abertura de processo de impeachment, foi eleito senador em 2006, após derrota em 2002 na eleição para governador de Alagoas. No Senado, preside a prestigiada Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE) e usa o cargo para se posicionar sobre fatos como a crise no Egito e na Líbia e a nota da OEA pela suspensão das obras da hidrelétrica de Belo Monte.
Sucessor de Collor no Palácio do Planalto, Itamar Franco, após deixar a Presidência da República em 94, foi eleito governador de Minas Gerais em 1998. Ficou sem mandato eletivo até conquistar o Senado em 2010. Único senador do PPS, Itamar tem sido atuante na oposição, além de contestar a falta de espaço dos partidos pequenos.
"É a fase áurea, mais retumbante dos ex-presidentes que vi até hoje. Faço análise política há 30 anos e nunca vi um ciclo tão intensamente participativo. Estamos vivendo uma fase de ressurreição de ex-presidentes", diz o jornalista e consultor político Gaudêncio Torquato. Para ele, os ex-presidentes deveriam ter comportamento "menos ostensivo".
Luciano Dias e Marco Villa não defendem que os ex-presidentes vistam o pijama. Mas acham que, após chegar ao ápice da carreira política, deveriam se preservar, para desempenhar funções de "natureza mais elevada, humanitária ou de coordenação política". Para Dias, a sucessão de eleições realizadas no Brasil - o que ele chama de sistema político hipereleitoral - leva ex-presidentes a se envolverem em diferentes disputas, e, por falta de tempo, dificulta a formação de novas lideranças.
"Faltam espírito republicano, de pensar com o cérebro e não com o fígado ou o bolso. Infelizmente, a democracia brasileira ainda não chegou ao estágio de termos ex-presidentes como uma espécie de reserva moral", afirma Villa.
O fato de ex-ocupantes do Planalto atuarem na política "sem travas ou freios" pode não ser a melhor postura ética, mas faz parte da cultura política brasileira, segundo Otaciano Nogueira, professor aposentado de ciência política na Universidade de Brasília (UNB). Para ele, um ex-presidente tem direito de dar opinião como qualquer cidadão, mas espera-se dele "um pouco mais de serenidade, que não fale bobagem e não se intrometa muito no governo".
A forte presença dos ex-presidentes no cenário político revela falta de novas lideranças e ideias originais no país. Lula e FHC são os maiores ícones do PT e do PSDB. Com o vazio das cúpulas partidárias, os ex-presidentes assumem o centro da discussão política.
A desigualdade social no Brasil e a pouca tradição democrática do país são destacadas por Marcos Nobre, professor de filosofia da Unicamp, como explicação para que a produção de quadros políticos de alto nível esteja ainda "engatinhando". Por isso, diz ele, acadêmicos e líderes sindicais viram presidentes e continuam a ser importantes após deixarem o cargo.
"Não é fácil encontrar quadros capazes de fazer análise política, dar direção ideológica, comunicar com o conjunto da população. Se o país melhorar (em todos os sentidos, inclusive na sua cultura política democrática), ex-presidentes poderão talvez ser apenas ex-presidentes", afirma Nobre.
Dilma tem apoio de três dos cinco ex-presidentes. Mesmo assim, dividir os holofotes pode incomodar, como observa o cientista político Luciano Dias, da CAC Consultoria. Para ele, a "sagacidade" e a "sobrevivência" do presidencialismo americano podem ser atribuídos ao fato de o presidente ser o "centro incontestável" da vida política.
"O efeito [da exposição dos ex-presidentes no centro do debate político] é a banalização do cargo, porque o presidente de plantão começa a ter concorrentes que também foram presidentes. Diminui a visibilidade, porque ele não é mais o centro do sistema político. Dilma já tem o problema de ser cria do Lula. E, além de ser cria do Lula, ela ainda tem que lidar com o fato de que Lula segue ativo na vida partidária."
FONTE: VALOR ECONÔMICO (27/04/11)
quinta-feira, 28 de abril de 2011
A Miséria da “Oposição” no Brasil ...(Paulo Roberto de Almeida)
A Miséria da “Oposição” no Brasil Da Falta de um Projeto de Poder à Irrelevância Política?:: Paulo Roberto de Almeida
O cenário político brasileiro: A deterioração democrática
Um observador medianamente informado sobre a cena política brasileira da última década seria capaz de reconhecer a conjuntura histórica de transformação que ocorre nas forças dominantes no sistema político. Trata-se de uma evolução gradual, que um analista que trabalhe com as categorias “gramscianas” provavelmente consideraria tratar-se da emergência de um novo “bloco dominante”, tendente à hegemonia política e social. Essas novas forças estão identificadas com o PT e os partidos e movimentos a ele associados, que passaram de uma longa trajetória (1980–2002) de oposição ao sistema de poder anteriormente dominante, e que mantém, desde 2003, sua bem-sucedida consolidação majoritária. Os recursos – políticos, financeiros, humanos – para essa ascensão vieram em primeiro lugar dos sindicatos e dos movimentos sociais vinculados ao partido hegemônico nesse bloco e, depois de 2003, do próprio Estado e de uma miríade de entidades dominadas ou influenciadas por ele (empresas estatais, fundos de pensão, empresários “amigos” e os próprios militantes encastelados numa infinidade de cargos públicos).
O mesmo observador tampouco deixaria de reconhecer a oposição atual como uma oposição “miserável”, ou seja, incapaz de assumir as responsabilidades de sua condição. Com efeito, ele não teria dificuldades em constatar a gradual diluição da “oposição”, das mesmas forças que ocuparam o poder entre meados dos anos 1990 e início da década seguinte, mas que foram batidas três vezes desde então (2002, 2006 e 2010) e que arriscam serem vencidas novamente em 2014. O que surpreende no processo político brasileiro não é tanto a capacidade do governo de alinhar em torno de suas posições as forças políticas dos mais variados horizontes, sobretudo no Congresso; a surpresa é constituída, antes, pela debilidade da “oposição”, derrotada, mas ainda não destruída, e sua incapacidade de reorganizar suas tropas, de redefinir suas bandeiras de luta e de exercer sua função institucional de oferecer uma alternativa às políticas do bloco no poder.
O termo “oposição” figura, na maior parte deste ensaio, entre aspas, pois o que se apresenta hoje, fora do arco governamental, não merece, legitimamente, essa designação, seja por deficiências intrínsecas, seja por fatores objetivos vinculados ao quadro político-eleitoral do Brasil. As aspas, justamente, não se devem às derrotas, esperadas ou previsíveis, da “oposição”, mas à sua incapacidade de ser aquilo a que o processo político a relegou temporariamente: uma oposição, na plena acepção da palavra. Se, e quando, ela assumir seu papel, será eximida da presença das aspas.
Se o mesmo observador, especulando por antecipação, fosse convidado a traçar um prognóstico sobre o futuro do sistema político brasileiro e se, no mesmo movimento, ele se dedicasse a divagar sobre a trajetória provável da “oposição” nos anos à frente, talvez não hesitasse muito em prever um destino melancólico, quando não trágico, para as forças que passam por oposição ao governo do PT. Estaria ela, de fato, condenada a desaparecer do cenário político, como força alternativa viável ao atual bloco hegemônico? Teriam os supremos estrategistas petistas – muitos mais por instinto do que por estratégias bem calculadas – conseguido realizar aquilo que Gramsci pregou no cárcere mussoliniano, sem que ele ou o partido que recuperou sua herança intelectual jamais tivesse conseguido materializar na prática? Estaríamos em face de um “bloco histórico” destinado a manter hegemonia sobre o sistema político pelo futuro previsível? Se isso ocorrer, seria o mais próximo que o Brasil já chegou daquilo que muitos representantes desse bloco chamam de “pensamento único”, embora eles mesmos apliquem o termo a uma inexistente ou rarefeita tribo de “neoliberais”.
Este texto não aspira responder a todas as questões relevantes para o futuro da democracia no Brasil. Não é nosso objetivo analisar todos os componentes de um sistema político relativamente complexo em suas diferentes vertentes organizacionais e forças atuantes, mas relativamente simples quanto às linhas principais de seu ordenamento. De um lado, temos o poder econômico incontrastável de quem detém o poder – e pode, assim, “comprar”, literalmente, os apoios de que necessita para se perpetuar no poder; de outro, forças dispersas e desorganizadas que sequer se entendem sobre um diagnóstico da situação, para planejar um contra-ataque que estaria na lógica de todos os sistemas políticos democráticos: a alternância no comando do Estado. Uma constatação de ordem geral não pode, contudo, deixar de ser feita inicialmente: o sistema democrático brasileiro, que já era de baixa qualidade antes de 2003, tornou-se ainda mais deplorável no plano de seu funcionamento e no de sua responsabilidade para com os eleitores, uma vez que o bloco petista se encarregou de deteriorar ainda mais a qualidade da democracia brasileira, realizando um amálgama de todas as forças políticas oportunistas, fisiológicas e rentistas que sempre se aproximaram do centro do poder, qualquer poder.
Mas o presente texto não pretende analisar o cenário político brasileiro como um todo; trata apenas da trajetória recente da atual¬ “oposição” ao governo do PT, supostamente empenhada, desde 2003, em criar as condições para reconquistar seu eleitorado e se configurar como alternativa viável de governo, no seguimento de uma hipotética vitória eleitoral em 2014. Estabelece primeiro um diagnóstico da situação política na presente conjuntura, para examinar em seguida as tarefas da oposição num sistema político democrático. Passa, então, a analisar as principais deficiências da “oposição” brasileira, para depois formular uma série de considerações sobre uma possível estratégia de reconquista do poder pela “oposição”, visando convertê-la em oposição, simplesmente, credível e com chances de chegar ao poder. O texto conclui afirmando que o eventual sucesso de qualquer estratégia de ação da atual “oposição” depende, em grande medida, de lideranças esclarecidas, o que não parece ser o caso, atualmente, com o simulacro de oposição existente.
Outra constatação inicial, que o mesmo observador político referido ao início deste ensaio poderia fazer é que essa “oposição” presumida deixou ao relento, de fato órfão, metade do eleitorado brasileiro, a julgar pelas evidências da mais recente campanha presidencial, ao faltar com suas responsabilidades de verdadeira oposição e ao não oferecer respostas compatíveis com as demandas desses eleitores. Mas essa constatação é um desdobramento lógico da análise que agora passa ser feita.
O diagnóstico da situação política
É evidente que o atual bloco no poder – dominado majoritariamente pelo PT – conquistou legitimamente sua hegemonia política ao longo dos três últimos embates eleitorais. Ele o fez com base em hábil propaganda política, com extenso recurso à manipulação das comunicações, mas também com o apoio de uma boa organização partidária (e corporativa), ainda que recorrendo diligentemente à propaganda enganosa, eventualmente a fraudes processuais (quando não a crimes eleitorais, apenas parcialmente sancionados pela justiça do mesmo nome). Essencialmente, porém, a razão maior do sucesso foi, de forma muito explícita, o carisma político-eleitoral de sua principal liderança e figura de grande relevo no cenário político. É também evidente que essa mesma personalidade e o seu partido domesticado – mesmo se fracionado internamente – pretendem preservar a atual hegemonia pelo futuro previsível, com base nos mesmos elementos políticos, aplicando de maneira diligente as mesmas receitas que os habilitaram a dirigir o país nos últimos oito anos.
Ainda mais evidente, e visível, nesse perío¬do, foi o desaparecimento gradual e a vir¬tual inoperância daquilo que se poderia chamar, com extrema generosidade, de “oposição”; na verdade, um conglomerado de tênues lideranças políticas, fragmentado em projetos pessoais ou regionais, e totalmente incapaz de oferecer alternativas credíveis ao eleitorado que não comunga das mesmas concepções de política, de economia e de sociedade do bloco no poder. Nunca se percebeu, desde 2003, um discurso coerente da “oposição”, alternativo e em oposição ao do bloco no poder. Este tampouco tinha um discurso coerente, mas soube implementar medidas de clara receptividade popular, sobretudo nas áreas sociais, com um enorme reforço de propaganda nas supostas virtudes do governo e apoiado no evidente carisma do seu líder político. Com base em virtudes próprias e nesse grande empenho publicitário, o líder em questão praticamente deixou a condição de carisma para firmar-se como novo mito do cenário político brasileiro, provando, mais uma vez, que mentiras bem articuladas podem, sim, criar fatos políticos dotados de boa impregnação popular.
Caso a evolução dos próximos anos confirme esse mesmo cenário, pode-se ter o afastamento da “oposição” – ou o que passa por ela – do governo durante mais de duas décadas, frustrando possivelmente metade do eleitorado brasileiro – das regiões mais desenvolvidas e majoritariamente de estratos mais esclarecidos – que não se reconhece no, e até recusa o, projeto de poder do bloco petista atualmente hegemônico. A percepção que emerge da atual situação brasileira é a de que a maior parte da população – embora não suas correntes mais esclarecidas – partilha das concepções econômicas, políticas e culturais do atual bloco no poder, que demonstrou ter praticado um “gramscismo” adaptado às condições de educação política do Brasil, configurando um cenário político que apresenta desafios para a consolidação de um sistema democrático no país, na medida em que as práticas políticas mobilizadas por esse bloco representam de fato um atraso relativo do ponto de vista da ética cidadã.
Não é surpreendente que o governo mantenha a capacidade de iniciativa e a ofensiva política – por todos os meios ao seu alcance – ou que até procure dominar – igualmente por todos os meios disponíveis, inclusive alguns pouco recomendáveis – o poder legislativo, colocado como nunca antes – salvo nos períodos ditatoriais – em situação de subordinação e de dependência em relação às verbas e diretivas do Executivo. Não se pode, tampouco, esquecer os movimentos ditos “sociais” (a maioria na folha de pagamentos do Executivo) e suas correias de transmissão nos mais diversos setores, com destaque para o sindical (não só de trabalhadores, mas igualmente patronais), que desempenham um papel importante na estratégia “gramsciana” de ocupação de espaços. A rigor, trata-se de uma “ditadura do Executivo”, no sentido de que este passa a determinar o voto dos parlamentares e as ações do que passa por uma “sociedade civil organizada” – manipulada, seria o termo mais exato – na direção que mais interessa ao primeiro, embora à custa de nacos do orçamento e de farta distribuição de cargos e comissões nas mais diversas prebendas estatais (na verdade, em todos os entes dominados ou influenciados pela vontade daquele poder).
O que é surpreendente é a “oposição” colocar-se totalmente a reboque da agenda governamental, deixar-se pautar pela propaganda oficial e descurar completamente da construção de uma pauta própria de críticas e reivindicações independentes, em nome da sociedade e dos eleitores de oposição que ela deveria supostamente representar. O que surpreende, de fato, é essa renúncia a ser oposição, ou a forma confusa, errática e até patética com que a “oposição” se desempenhou nesses anos de “travessia do deserto”. O parlamento é, evidentemente, o ponto fulcral das articulações políticas. Mas se a oposição revelou-se totalmente ineficiente, e até irrelevante, na suposta “casa das leis”, ela era inexistente, literalmente, na esfera da própria sociedade, cujos espaços de manifestações e de expressão de opiniões – inclusive nos meios acadêmicos e da imprensa – estavam totalmente ocupados por adesistas, por militantes da causa ou por serviçais do bloco no poder.
As tarefas da oposição num sistema político democrático
Em situações democráticas “normais” – isto é, com possibilidades reais de alternância no poder entre duas, ou mais, correntes majoritárias – o grupo que perdeu as eleições em um dado país se recompõe politicamente – eventualmente mudando seus líderes – e se dedica a uma séria preparação para os novos embates eleitorais mais à frente. Nas democracias modernas, o poder costuma ser alternativamente investido por três grandes grupos políticos – geralmente um de tendência social-democrata, ou socialista, outro bloco centrista ou reformista moderado, e, não raro, também, um setor conservador – que vão sendo guindados ao comando do Estado ou dele afastados em função da conjuntura econômica e dos benefícios sociais que eles possam trazer à maioria da população: desemprego, inflação, segurança (imigração, por exemplo), ou até questões morais (corrupção, mentiras e fraudes políticas, etc.).
A primeira tarefa, quando um grupo ou partido é “empurrado” para a oposição, é a de elaborar um diagnóstico – se possível consensual – sobre as razões da derrota: os líderes se dedicam, então, a analisar os fatores principais do insucesso para daí retirar as lições que se impõem, no que pode ser um simples episódio eleitoral momentâneo. Se a derrota é, porém, recorrente, ao longo de dois ou mais embates eleitorais, ou mesmo “estrondosa”, o diagnóstico teria de ser amplo, alcançando inclusive as bases programáticas do partido (sua “carta” aos eleitores). Nos casos menos graves se deveria atuar sobre os fatores de oportunidade, de mensagem política e de apresentação de propostas ao público eleitor. Feito o diagnóstico, retiradas as lições, deve-se preparar o terreno para as novas etapas que se apresentarão inevitavelmente à oposição. Nos regimes presidencialistas, as eleições sempre têm datas marcadas; nos parlamentaristas, elas podem se apresentar a intervalos variados.
Normalmente, uma oposição organizada tem, entre seus membros mais relevantes e também no staff partidário, especialistas nas diversas políticas macroeconômicas e setoriais que devem compor a mensagem do partido para o seu eleitorado, tradicional e flutuante (pois a intenção é sempre a de conquistar maior apoio entre os eleitores). Esses especialistas devem fazer o seguimento das políticas correspondentes do bloco no poder, discutir suas implicações para o país e tentar oferecer suas propostas alternativas de políticas, que contemplem as expectativas de seu eleitorado e de franjas mais amplas da população.
Normalmente, esse trabalho é conduzido no parlamento, mas o partido também pode ter apoios extensivos na sociedade, como são aqueles vinculados a movimentos sindicais e de interesses setoriais. Na tradição inglesa, tem-se a prática do shadow cabinet, ou seja, um “ministério” alternativo que faz o acompanhamento das políticas em curso, elabora a crítica das medidas implementadas e faz um oferecimento público de suas próprias alternativas de política. Não é preciso ser britânico, contudo, para exercer o saudável hábito do gabinete-espelho, ou melhor, de um governo paralelo; basta organizar seus especialistas e colaboradores voluntários para lançar o debate com a sociedade. Mais até do que oferecer soluções prontas e completas, a oposição tem de saber questionar os fundamentos de cada medida governamental, refazendo os cálculos de custo-benefício, alertando para os trade-offs e os side-effects – eles sempre existem – e antecipando consequências indesejadas e o custo-oportunidade da “receita” oficial. Este é, aliás, o principal dever da oposição: ela deve estar sempre pronta a oferecer soluções alternativas, ainda que parciais, ao quinto ou mesmo ao terço da população eleitoral não suficientemente identificada a uma das forças políticas nacionais dominantes (eventualmente no poder). É essa fração do eleitorado inconstante em suas escolhas – e volúvel, portanto – que pode fazer pender a balança para um lado ou para o outro, em função de considerações de curto prazo ou ligadas à conjuntura econômica do momento.
Na prática, as coisas são mais complicadas, pois, mesmo nos partidos mais modernos e institucionalizados, muito depende dos líderes do momento, do carisma e da atração que estes possam exercer sobre o eleitorado, e também das disputas entre as lideranças desse partido; estas últimas sempre podem eventualmente descambar para o regionalismo ou o caciquismo, em ambos os casos com consequências nefastas para a imagem da oposição. Mais grave ainda é quando essa oposição perde o contato com a realidade e com as expectativas de seu próprio eleitorado, para não dizer da maioria da nação. Surgem, nesse caso, dissidências que vão para outros partidos ou constituem os seus próprios. A experiência brasileira é extremamente pródiga nesses tipos de evento, sendo conhecida pela anarquia partidária, pela dança de partidos por parte de políticos profissionais e pela criação de partidos de aluguel ou de fachada.
Em qualquer hipótese, qualquer governo – de esquerda, de direita ou de centro – suporta o inevitável desgaste da governança, já que políticas “antipopulares” sempre precisam ser implementadas em algum momento, seja para corrigir exageros de tipo social-democrático (distributivismo fiscalmente irresponsável, déficits orçamentários, desalinhamentos cambiais, etc.), seja na vertente oposta (percepções de que os centristas ou conservadores se ocupam mais dos ricos do que dos pobres), ou por razões diversas (problemas de segurança, desemprego, etc.). A própria dinâmica econômica e conjunturas ¬adversas impõem limites a quem exerce o poder.
Assim, quando o eleitorado decidir tentar outros caminhos, outras soluções, a oposição, qualquer que seja ela, precisa estar pronta para oferecer suas receitas e propor seus remédios. A oposição precisa ter um programa de governo. Para isso ela precisa ter um projeto de poder, ou seja, ter consciência do que, exatamente, precisa ser feito, dizer como pretende fazer, e demonstrar credibilidade no empreendimento. O eleitorado brasileiro, pelo menos parte dele, tentou encontrar outra via, pelo menos em duas oportunidades: a “oposição” o abandonou miseravelmente. Ela não tinha soluções e sequer um discurso a apresentar. É o que discutiremos agora.
A “oposição” brasileira e suas principais deficiências
Não é preciso ser um analista político de qualquer envergadura para constatar que a “oposição” brasileira – que, apenas para relembrar, vinha de oito anos, ou mais, de exercício do poder – falhou miseravelmente em sua missão oposicionista. Dizer que ela foi inepta, ineficiente, incompetente, patética, seria até ser generoso com as principais forças que foram agrupadas nessa classificação de “oposição”. Basta dizer que, simplesmente, não existiu uma oposição de verdade durante todo o governo Lula: as forças que deveriam, até precisavam, ser oposição, simplesmente se autoanularam para um exercício que é uma das tarefas mais legítimas em todos os regimes democráticos.
Em sua defesa, pode-se dizer que os petistas, seu líder em especial, foram extremamente competentes – descontando-se, claro, as mistificações criadas para tal efeito – na construção de uma versão peculiar do processo político, da própria história recente do Brasil, o que deixou as forças potencialmente oposicionistas num estado psicologicamente defensivo, até de “vergonha assumida”, por supostos erros e injustiças cometidas ao longo do chamado neoliberalismo do “tucanato”. As campanhas eleitorais de 2002, de 2006 e de 2010 foram construídas com base em deformações grosseiras das políticas conduzidas sob os governos anteriores, desde as simplificações enganosas sobre as privatizações, até as patriotadas sobre a soberania retórica e a submissão ao FMI, passando pelo monopólio da “bondade social”, como se tudo tivesse tido início em 2003. Poucas vezes, no cenário político brasileiro, a versão deformada da história, em vários aspectos até mentirosa, conseguiu tal impregnação no imaginário popular, a ponto de anular discursos e ações daquelas mesmas forças que deram início à estabilização econômica e criaram as condições para a fase de crescimento com distribuição e prosperidade.
Muito se deve, obviamente, às qualidades de “ilusionista” político do presidente popular, suas mistificações propagandistas, mas também às boas condições da economia internacional, durante a maior parte de seus dois mandatos, e a uma gestão razoavelmente responsável na frente econômica. Mas deve-se reconhecer, também, que a “oposição” se autoanulou durante todo esse tempo, jamais tendo conseguido articular um discurso coerente, sequer esclarecedor, sobre o cenário de mentiras criado pelo bloco no poder. Quais as razões desse suicídio político?
Todo e qualquer ato político é encarnado por personagens políticos, príncipes e conselheiros do príncipe, que se conjugam na missão de conduzir homens e partidos ao pináculo do poder, ao comando do Estado. Devemos então concluir que à “oposição” brasileira faltaram as virtudes e as qualidades que, segundo Maquiavel, devem estar presentes nas pessoas que pretendem deter esse comando. Não que o presidente do bloco no poder fosse um estadista, mas certamente se tratava de um “animal político” extremamente competente. Pode-se dizer, nesse sentido, que à “oposição” – ou o que passa por ela – faltaram “animais políticos” de verdade, pessoas que tivessem as virtudes ou a fortuna – para permanecer nos termos do florentino – para representar uma pequena chance de alternância na disputa de poder.
Incapacidade de se organizar
Por certo que se trata de uma incapacidade de se organizar, com bases reais na sociedade, para, a partir daí, conceber e exibir um discurso coerente, compatível com as aspirações de largos estratos sociais, sobretudo nas classes médias. Mais grave ainda: pode-se dizer que à “oposição” brasileira faltaram, sobretudo, ideias claras sobre como apresentar e “vender” seu programa, se é presumível que, de fato, ela pudesse ter algo assimilável a um programa para oferecer à metade da população – na verdade estratos cambiantes – que não aceita e nunca aceitou a propaganda política que lhe foi servida sob disfarce de “política nacional” pelo bloco no poder. Sem conseguir ver claro no cenário político, dividida pelo caciquismo de seus líderes regionais, a “oposição” não soube sequer explorar as inconsistências e mazelas do bloco no poder, tão evidentes aos olhos de estratos médios de eleitores basicamente comprometidos com a ética e a moralidade no trato da coisa pública.
Pode-se aventar a hipótese de que a qualidade dos homens públicos que se colocam numa oposição de princípio ao bloco no poder – não por razões puramente instrumentais, de conquista do poder pelo poder, mas quer se acreditar que por razões de filosofia política – precisaria melhorar dramaticamente para que eles possam integrar algo suscetível de ser chamado de oposição. Talvez sejam necessárias, inclusive, novas lideranças políticas, que obviamente tenham “princípios” compatíveis com uma oposição digna desse nome. Tal “reinvenção” depende de vários fatores dentre os quais podem ser citados: a reeducação dos próprios integrantes do que é hoje uma oposição de araque; a reorganização de suas bases partidárias; a revisão do seu modo de “funcionamento” no Congresso; mudanças nos parâmetros mentais que orientam o discurso político e que comandam suas ações no plano prático; transparência aos olhos dos eleitores e, sobretudo, distinção clara com “tudo isso que está aí”, atualmente, e que visivelmente não agrada ao eleitorado instruído. Tudo leva a crer que uma nova oposição precisa ser construída, ou que a atual “oposição” deva ser praticamente reinventada, para, finalmente, começar a existir. Vejamos como.
Da travessia do deserto a... mais deserto?
A oposição a ser construída – a verdadeira, não o simulacro que hoje existe – já parte de uma formidável base real e potencial. Os dados eleitorais estão disponíveis no site do TSE, mas se podem extrair algumas conclusões adicionais a partir deles. A base total do eleitorado brasileiro situava-se, em 2010, em quase 136 milhões de pessoas, provavelmente atingindo 145 milhões em 2014. A abstenção em 2010 foi excepcional, alcançando quase trinta milhões de eleitores, aos quais se juntaram 4,6 milhões que anularam seus votos e 2,5 milhões que se abstiveram de qualquer escolha. Os “excluídos” representaram, portanto, um quarto do eleitorado; pode-se, em toda a legitimidade, imaginar que eles possam ser reduzidos à metade, em condições normais de disputa política, o que, infelizmente, não ocorreu em 2010.
Imaginamos, também, que os votos dados à “oposição”, em torno de 43 milhões, sejam realmente de oposição ao presente estado de coisas, especificamente ao “Estado do PT”. Pode-se razoavelmente conceber que uma oposição – qualquer oposição – no Brasil possa reunir metade do eleitorado, admitindo-se, inclusive, que a educação política, de um lado, e o desgaste do poder petista, do outro, contribuam para uma pequena maioria potencial, numa situação em que o mito carismático ainda estará ativo e trabalhando para consolidar o poder petista.
Num regime parlamentarista, é possível compor um governo com apenas 40% de apoio popular. Regimes presidencialistas do tipo brasileiro, ou americano, contudo, convivem com maiorias diferenciadas para a representação parlamentar e para a chefia do executivo, cargo este que exige a maioria absoluta do eleitorado. Na prática, não existe, a rigor e numa abordagem prosaicamente matemática, nenhuma garantia antecipada de vitória, ou certeza de derrota, para qualquer um dos lados, na medida em que, à diferença dos sistemas parlamentaristas, contendas eleitorais em sistemas fortemente marcados por disputas pessoais apresentam-se quase como uma loteria. Um dos fatores é que os eleitores “flutuantes”, os “indiferentes” e os “desalentados” são em número suficiente para alterar a balança para qualquer um dos lados.
Porém, números são um componente talvez objetivo, mas insuficiente para determinar resultados eleitorais. Mais importante é a predisposição do eleitorado para “acolher” uma definição clara quanto aos problemas mais angustiantes da conjuntura. A situação econômica pode até ser decisiva numa escolha eleitoral; mas as percepções sobre quem conduz a política econômica e sobre como ela é conduzida pelos responsáveis também são relevantes. Questões como emprego, segurança pessoal, disponibilidade de serviços públicos – saneamento, saúde e educação, etc. – e temas pontuais, de interesse setorial ou regional podem fazer pender a balança eleitoral. Em outros termos, não existe uma determinação prévia quanto aos embates eleitorais no modelo brasileiro – como em qualquer outro, aliás – e isso significa que as chances estão abertas às forças políticas que pretendam se apresentar como oposição.
Não importam quais sejam as alternativas de políticas oferecidas ao público eleitor por uma oposição efetiva e confiável. É preciso que esta seja precisamente isso: confiável. Ora, não é surpresa para nenhum eleitor medianamente bem informado que a classe política, de maneira geral, fez tudo o que era possível para se desqualificar moralmente, para se rebaixar no plano da ética, para deteriorar completamente a instituição parlamentar e outro tanto no plano dos executivos locais, estaduais e até o federal. Qualquer que seja a qualidade da nova mensagem política de oposição, se ela um dia existir, sua credibilidade, intrínseca e extrínseca, depende essencialmente da regeneração moral de suas lideranças, que deveriam operar aquilo que os italianos – escaldados por anos e anos de corrupção política – chamam de rientro morale, ou seja, uma profunda recomposição da ética na vida política do país.
A julgar por exemplos recentes – os aumentos para os próprios parlamentares e a questão das aposentadorias escandalosas de ex-governadores são dois casos eloquentes do completo descompasso entre as expectativas da população e a atitude das “oposições” – o Brasil não está sequer próximo de uma recomposição da classe política para fora da atual degradação das instituições de representação; nisso, a suposta “oposição” não se diferencia em nada das perversões morais alimentadas pelo próprio bloco no poder. Aparentemente, a “oposição” atual ainda não está pronta a empreender essa passagem; ela não quer enfrentar sua própria regeneração moral (talvez não possa, ou não tem coragem, provavelmente não quer).
Uma vez aceita e internalizada essa decisão pela “moralização” da oposição – que se situa no centro de toda e qualquer regeneração oposicionista, cabe lembrar – começa, então, a tarefa de organizá-la em função do objetivo da reconquista do poder. Tal tarefa implica, em primeiro lugar, uma definição clara de um programa político de escopo nacional e setorial, ou seja, uma plataforma explícita que toque em todos e em cada um dos principais problemas nacionais, sobretudo na esfera institucional, no terreno econômico e nas diversas áreas de maior impacto no plano das políticas públicas (social, cultural, regional, etc.).
Não é simples montar um programa e uma plataforma de ação com tal amplitude, o que certamente exigirá seminários e grupos de trabalho em cada uma dessas vertentes abertas à ação partidária. Mas um partido, ou uma oposição, que pretenda aspirar a ser uma real alternativa de poder não pode ser econômico nem em definições programáticas, nem em propostas político-econômicas relativamente detalhadas. Basta arregaçar as mangas e colocar o cérebro para pensar.
O que fazer? Tudo depende de lideranças esclarecidas
Vendo o panorama da planície, isto é, do ponto de vista dos cidadãos eleitores, não parece haver dúvidas de que o Brasil não conta com uma classe política à altura de suas novas responsabilidades enquanto potência emergente, desejosa de assumir um papel relevante na cena internacional. O parlamento, em especial, mas também os partidos políticos e as forças que gravitam em torno deles parecem viver num mundo à parte, feito de partilha de despojos estatais, conquista de pedaços do orçamento e disputa por pequenas prebendas em todos os poros do imenso ogro estatal.
A discussão sobre temas internacionais no parlamento, e dentro dos partidos, é rara, superficial e geralmente equivocada. Quando ela ocorre, tende a focar falsos problemas que estariam, supostamente, na origem das dificuldades enfrentadas pelo Brasil: guerra cambial de alguns, concorrência desleal de outros, capitais especulativos de um lado, arrogância imperial do outro, ameaças imaginárias sobre a soberania brasileira, em alguma parte de seu imenso território, e sobre seus fabulosos recursos naturais. Poucos desses representantes políticos, contudo, comparam o Brasil a seus equivalentes em outras partes do mundo; poucos deles se dão conta de como o Brasil avança devagar, de como ele está de fato atrasado em relação às mudanças mais dinâmicas que estão ocorrendo um pouco em todas as partes.
De fato, nenhum dos problemas atuais enfrentados pelo Brasil tem a ver com impactos negativos do ambiente externo: o mundo tem sido muito “generoso” com o Brasil, oferecendo mercados e provendo investimentos de todos os tipos para sustentar seu crescimento do período recente. Todos os problemas brasileiros, sem exceção, são made in Brazil, têm raízes puramente internas e devem receber aqui sua solução; seu equacionamento passa por um conjunto de reformas que deveria estar no centro de qualquer programa credível de proposta política geral de um movimento oposicionista que aspire legitimamente conquistar o poder para implementar, a partir daí, essas reformas.
A oposição não conseguirá chegar a ocupar esse espaço alternativo de candidata ao poder se não trabalhar intensamente no diagnóstico dos problemas brasileiros, no oferecimento de respostas sólidas aos mesmos problemas, e na sua própria organização interna, colocando-se numa posição de governo “virtual”, ou potencial, com base em propostas aceitáveis para uma maioria de brasileiros, sem ceder a populismos ou à demagogia habitual nesses meios. Ou seja, a oposição precisa estar pronta para oferecer outro futuro a todos os brasileiros que não acham que a esperteza política aliada ao oportunismo propagandístico representa o horizonte real de possibilidades para o país. Existe um imenso contingente de brasileiros que não se reconhece no estado de coisas vendido atualmente como a condição normal e possível para o Brasil. Como diriam alguns sonhadores, “outro Brasil é possível”; mas para isso outra oposição é necessária, uma que se apresente como alternativa credível.
Uma das condições essenciais para que essa oposição seja construída parece ser a existência de lideranças dotadas de credibilidade intrínseca e de capacidade política para, em primeiro lugar, reformar profundamente a “oposição” atual; num segundo momento, presidir à elaboração temática e organizacional de um “governo” alternativo ao atual bloco no poder. Não existe nenhum obstáculo “técnico”, nenhuma força externa à própria “oposição”, nenhum impedimento estrutural, ou nacional, de caráter político, para que essas tarefas sejam empreendidas.
Tudo depende da disposição de figuras políticas que pretendam aspirar ao papel de alternativa ao poder atual: a “fortuna” do quadro político pode ser favorável a uma oposição renovada, como observado nas eleições de 2010. Mas o fator mais importante ainda é – ele sempre é – constituído pelas “virtudes” dos condutores de cidadãos.
• É diplomata de carreira e professor universitário, com diversos livros sobre a política externa e as relações internacionais do Brasil
FONTE: Revista Interesse Nacional Nº 13 – Abril a Junho de 2011
O cenário político brasileiro: A deterioração democrática
Um observador medianamente informado sobre a cena política brasileira da última década seria capaz de reconhecer a conjuntura histórica de transformação que ocorre nas forças dominantes no sistema político. Trata-se de uma evolução gradual, que um analista que trabalhe com as categorias “gramscianas” provavelmente consideraria tratar-se da emergência de um novo “bloco dominante”, tendente à hegemonia política e social. Essas novas forças estão identificadas com o PT e os partidos e movimentos a ele associados, que passaram de uma longa trajetória (1980–2002) de oposição ao sistema de poder anteriormente dominante, e que mantém, desde 2003, sua bem-sucedida consolidação majoritária. Os recursos – políticos, financeiros, humanos – para essa ascensão vieram em primeiro lugar dos sindicatos e dos movimentos sociais vinculados ao partido hegemônico nesse bloco e, depois de 2003, do próprio Estado e de uma miríade de entidades dominadas ou influenciadas por ele (empresas estatais, fundos de pensão, empresários “amigos” e os próprios militantes encastelados numa infinidade de cargos públicos).
O mesmo observador tampouco deixaria de reconhecer a oposição atual como uma oposição “miserável”, ou seja, incapaz de assumir as responsabilidades de sua condição. Com efeito, ele não teria dificuldades em constatar a gradual diluição da “oposição”, das mesmas forças que ocuparam o poder entre meados dos anos 1990 e início da década seguinte, mas que foram batidas três vezes desde então (2002, 2006 e 2010) e que arriscam serem vencidas novamente em 2014. O que surpreende no processo político brasileiro não é tanto a capacidade do governo de alinhar em torno de suas posições as forças políticas dos mais variados horizontes, sobretudo no Congresso; a surpresa é constituída, antes, pela debilidade da “oposição”, derrotada, mas ainda não destruída, e sua incapacidade de reorganizar suas tropas, de redefinir suas bandeiras de luta e de exercer sua função institucional de oferecer uma alternativa às políticas do bloco no poder.
O termo “oposição” figura, na maior parte deste ensaio, entre aspas, pois o que se apresenta hoje, fora do arco governamental, não merece, legitimamente, essa designação, seja por deficiências intrínsecas, seja por fatores objetivos vinculados ao quadro político-eleitoral do Brasil. As aspas, justamente, não se devem às derrotas, esperadas ou previsíveis, da “oposição”, mas à sua incapacidade de ser aquilo a que o processo político a relegou temporariamente: uma oposição, na plena acepção da palavra. Se, e quando, ela assumir seu papel, será eximida da presença das aspas.
Se o mesmo observador, especulando por antecipação, fosse convidado a traçar um prognóstico sobre o futuro do sistema político brasileiro e se, no mesmo movimento, ele se dedicasse a divagar sobre a trajetória provável da “oposição” nos anos à frente, talvez não hesitasse muito em prever um destino melancólico, quando não trágico, para as forças que passam por oposição ao governo do PT. Estaria ela, de fato, condenada a desaparecer do cenário político, como força alternativa viável ao atual bloco hegemônico? Teriam os supremos estrategistas petistas – muitos mais por instinto do que por estratégias bem calculadas – conseguido realizar aquilo que Gramsci pregou no cárcere mussoliniano, sem que ele ou o partido que recuperou sua herança intelectual jamais tivesse conseguido materializar na prática? Estaríamos em face de um “bloco histórico” destinado a manter hegemonia sobre o sistema político pelo futuro previsível? Se isso ocorrer, seria o mais próximo que o Brasil já chegou daquilo que muitos representantes desse bloco chamam de “pensamento único”, embora eles mesmos apliquem o termo a uma inexistente ou rarefeita tribo de “neoliberais”.
Este texto não aspira responder a todas as questões relevantes para o futuro da democracia no Brasil. Não é nosso objetivo analisar todos os componentes de um sistema político relativamente complexo em suas diferentes vertentes organizacionais e forças atuantes, mas relativamente simples quanto às linhas principais de seu ordenamento. De um lado, temos o poder econômico incontrastável de quem detém o poder – e pode, assim, “comprar”, literalmente, os apoios de que necessita para se perpetuar no poder; de outro, forças dispersas e desorganizadas que sequer se entendem sobre um diagnóstico da situação, para planejar um contra-ataque que estaria na lógica de todos os sistemas políticos democráticos: a alternância no comando do Estado. Uma constatação de ordem geral não pode, contudo, deixar de ser feita inicialmente: o sistema democrático brasileiro, que já era de baixa qualidade antes de 2003, tornou-se ainda mais deplorável no plano de seu funcionamento e no de sua responsabilidade para com os eleitores, uma vez que o bloco petista se encarregou de deteriorar ainda mais a qualidade da democracia brasileira, realizando um amálgama de todas as forças políticas oportunistas, fisiológicas e rentistas que sempre se aproximaram do centro do poder, qualquer poder.
Mas o presente texto não pretende analisar o cenário político brasileiro como um todo; trata apenas da trajetória recente da atual¬ “oposição” ao governo do PT, supostamente empenhada, desde 2003, em criar as condições para reconquistar seu eleitorado e se configurar como alternativa viável de governo, no seguimento de uma hipotética vitória eleitoral em 2014. Estabelece primeiro um diagnóstico da situação política na presente conjuntura, para examinar em seguida as tarefas da oposição num sistema político democrático. Passa, então, a analisar as principais deficiências da “oposição” brasileira, para depois formular uma série de considerações sobre uma possível estratégia de reconquista do poder pela “oposição”, visando convertê-la em oposição, simplesmente, credível e com chances de chegar ao poder. O texto conclui afirmando que o eventual sucesso de qualquer estratégia de ação da atual “oposição” depende, em grande medida, de lideranças esclarecidas, o que não parece ser o caso, atualmente, com o simulacro de oposição existente.
Outra constatação inicial, que o mesmo observador político referido ao início deste ensaio poderia fazer é que essa “oposição” presumida deixou ao relento, de fato órfão, metade do eleitorado brasileiro, a julgar pelas evidências da mais recente campanha presidencial, ao faltar com suas responsabilidades de verdadeira oposição e ao não oferecer respostas compatíveis com as demandas desses eleitores. Mas essa constatação é um desdobramento lógico da análise que agora passa ser feita.
O diagnóstico da situação política
É evidente que o atual bloco no poder – dominado majoritariamente pelo PT – conquistou legitimamente sua hegemonia política ao longo dos três últimos embates eleitorais. Ele o fez com base em hábil propaganda política, com extenso recurso à manipulação das comunicações, mas também com o apoio de uma boa organização partidária (e corporativa), ainda que recorrendo diligentemente à propaganda enganosa, eventualmente a fraudes processuais (quando não a crimes eleitorais, apenas parcialmente sancionados pela justiça do mesmo nome). Essencialmente, porém, a razão maior do sucesso foi, de forma muito explícita, o carisma político-eleitoral de sua principal liderança e figura de grande relevo no cenário político. É também evidente que essa mesma personalidade e o seu partido domesticado – mesmo se fracionado internamente – pretendem preservar a atual hegemonia pelo futuro previsível, com base nos mesmos elementos políticos, aplicando de maneira diligente as mesmas receitas que os habilitaram a dirigir o país nos últimos oito anos.
Ainda mais evidente, e visível, nesse perío¬do, foi o desaparecimento gradual e a vir¬tual inoperância daquilo que se poderia chamar, com extrema generosidade, de “oposição”; na verdade, um conglomerado de tênues lideranças políticas, fragmentado em projetos pessoais ou regionais, e totalmente incapaz de oferecer alternativas credíveis ao eleitorado que não comunga das mesmas concepções de política, de economia e de sociedade do bloco no poder. Nunca se percebeu, desde 2003, um discurso coerente da “oposição”, alternativo e em oposição ao do bloco no poder. Este tampouco tinha um discurso coerente, mas soube implementar medidas de clara receptividade popular, sobretudo nas áreas sociais, com um enorme reforço de propaganda nas supostas virtudes do governo e apoiado no evidente carisma do seu líder político. Com base em virtudes próprias e nesse grande empenho publicitário, o líder em questão praticamente deixou a condição de carisma para firmar-se como novo mito do cenário político brasileiro, provando, mais uma vez, que mentiras bem articuladas podem, sim, criar fatos políticos dotados de boa impregnação popular.
Caso a evolução dos próximos anos confirme esse mesmo cenário, pode-se ter o afastamento da “oposição” – ou o que passa por ela – do governo durante mais de duas décadas, frustrando possivelmente metade do eleitorado brasileiro – das regiões mais desenvolvidas e majoritariamente de estratos mais esclarecidos – que não se reconhece no, e até recusa o, projeto de poder do bloco petista atualmente hegemônico. A percepção que emerge da atual situação brasileira é a de que a maior parte da população – embora não suas correntes mais esclarecidas – partilha das concepções econômicas, políticas e culturais do atual bloco no poder, que demonstrou ter praticado um “gramscismo” adaptado às condições de educação política do Brasil, configurando um cenário político que apresenta desafios para a consolidação de um sistema democrático no país, na medida em que as práticas políticas mobilizadas por esse bloco representam de fato um atraso relativo do ponto de vista da ética cidadã.
Não é surpreendente que o governo mantenha a capacidade de iniciativa e a ofensiva política – por todos os meios ao seu alcance – ou que até procure dominar – igualmente por todos os meios disponíveis, inclusive alguns pouco recomendáveis – o poder legislativo, colocado como nunca antes – salvo nos períodos ditatoriais – em situação de subordinação e de dependência em relação às verbas e diretivas do Executivo. Não se pode, tampouco, esquecer os movimentos ditos “sociais” (a maioria na folha de pagamentos do Executivo) e suas correias de transmissão nos mais diversos setores, com destaque para o sindical (não só de trabalhadores, mas igualmente patronais), que desempenham um papel importante na estratégia “gramsciana” de ocupação de espaços. A rigor, trata-se de uma “ditadura do Executivo”, no sentido de que este passa a determinar o voto dos parlamentares e as ações do que passa por uma “sociedade civil organizada” – manipulada, seria o termo mais exato – na direção que mais interessa ao primeiro, embora à custa de nacos do orçamento e de farta distribuição de cargos e comissões nas mais diversas prebendas estatais (na verdade, em todos os entes dominados ou influenciados pela vontade daquele poder).
O que é surpreendente é a “oposição” colocar-se totalmente a reboque da agenda governamental, deixar-se pautar pela propaganda oficial e descurar completamente da construção de uma pauta própria de críticas e reivindicações independentes, em nome da sociedade e dos eleitores de oposição que ela deveria supostamente representar. O que surpreende, de fato, é essa renúncia a ser oposição, ou a forma confusa, errática e até patética com que a “oposição” se desempenhou nesses anos de “travessia do deserto”. O parlamento é, evidentemente, o ponto fulcral das articulações políticas. Mas se a oposição revelou-se totalmente ineficiente, e até irrelevante, na suposta “casa das leis”, ela era inexistente, literalmente, na esfera da própria sociedade, cujos espaços de manifestações e de expressão de opiniões – inclusive nos meios acadêmicos e da imprensa – estavam totalmente ocupados por adesistas, por militantes da causa ou por serviçais do bloco no poder.
As tarefas da oposição num sistema político democrático
Em situações democráticas “normais” – isto é, com possibilidades reais de alternância no poder entre duas, ou mais, correntes majoritárias – o grupo que perdeu as eleições em um dado país se recompõe politicamente – eventualmente mudando seus líderes – e se dedica a uma séria preparação para os novos embates eleitorais mais à frente. Nas democracias modernas, o poder costuma ser alternativamente investido por três grandes grupos políticos – geralmente um de tendência social-democrata, ou socialista, outro bloco centrista ou reformista moderado, e, não raro, também, um setor conservador – que vão sendo guindados ao comando do Estado ou dele afastados em função da conjuntura econômica e dos benefícios sociais que eles possam trazer à maioria da população: desemprego, inflação, segurança (imigração, por exemplo), ou até questões morais (corrupção, mentiras e fraudes políticas, etc.).
A primeira tarefa, quando um grupo ou partido é “empurrado” para a oposição, é a de elaborar um diagnóstico – se possível consensual – sobre as razões da derrota: os líderes se dedicam, então, a analisar os fatores principais do insucesso para daí retirar as lições que se impõem, no que pode ser um simples episódio eleitoral momentâneo. Se a derrota é, porém, recorrente, ao longo de dois ou mais embates eleitorais, ou mesmo “estrondosa”, o diagnóstico teria de ser amplo, alcançando inclusive as bases programáticas do partido (sua “carta” aos eleitores). Nos casos menos graves se deveria atuar sobre os fatores de oportunidade, de mensagem política e de apresentação de propostas ao público eleitor. Feito o diagnóstico, retiradas as lições, deve-se preparar o terreno para as novas etapas que se apresentarão inevitavelmente à oposição. Nos regimes presidencialistas, as eleições sempre têm datas marcadas; nos parlamentaristas, elas podem se apresentar a intervalos variados.
Normalmente, uma oposição organizada tem, entre seus membros mais relevantes e também no staff partidário, especialistas nas diversas políticas macroeconômicas e setoriais que devem compor a mensagem do partido para o seu eleitorado, tradicional e flutuante (pois a intenção é sempre a de conquistar maior apoio entre os eleitores). Esses especialistas devem fazer o seguimento das políticas correspondentes do bloco no poder, discutir suas implicações para o país e tentar oferecer suas propostas alternativas de políticas, que contemplem as expectativas de seu eleitorado e de franjas mais amplas da população.
Normalmente, esse trabalho é conduzido no parlamento, mas o partido também pode ter apoios extensivos na sociedade, como são aqueles vinculados a movimentos sindicais e de interesses setoriais. Na tradição inglesa, tem-se a prática do shadow cabinet, ou seja, um “ministério” alternativo que faz o acompanhamento das políticas em curso, elabora a crítica das medidas implementadas e faz um oferecimento público de suas próprias alternativas de política. Não é preciso ser britânico, contudo, para exercer o saudável hábito do gabinete-espelho, ou melhor, de um governo paralelo; basta organizar seus especialistas e colaboradores voluntários para lançar o debate com a sociedade. Mais até do que oferecer soluções prontas e completas, a oposição tem de saber questionar os fundamentos de cada medida governamental, refazendo os cálculos de custo-benefício, alertando para os trade-offs e os side-effects – eles sempre existem – e antecipando consequências indesejadas e o custo-oportunidade da “receita” oficial. Este é, aliás, o principal dever da oposição: ela deve estar sempre pronta a oferecer soluções alternativas, ainda que parciais, ao quinto ou mesmo ao terço da população eleitoral não suficientemente identificada a uma das forças políticas nacionais dominantes (eventualmente no poder). É essa fração do eleitorado inconstante em suas escolhas – e volúvel, portanto – que pode fazer pender a balança para um lado ou para o outro, em função de considerações de curto prazo ou ligadas à conjuntura econômica do momento.
Na prática, as coisas são mais complicadas, pois, mesmo nos partidos mais modernos e institucionalizados, muito depende dos líderes do momento, do carisma e da atração que estes possam exercer sobre o eleitorado, e também das disputas entre as lideranças desse partido; estas últimas sempre podem eventualmente descambar para o regionalismo ou o caciquismo, em ambos os casos com consequências nefastas para a imagem da oposição. Mais grave ainda é quando essa oposição perde o contato com a realidade e com as expectativas de seu próprio eleitorado, para não dizer da maioria da nação. Surgem, nesse caso, dissidências que vão para outros partidos ou constituem os seus próprios. A experiência brasileira é extremamente pródiga nesses tipos de evento, sendo conhecida pela anarquia partidária, pela dança de partidos por parte de políticos profissionais e pela criação de partidos de aluguel ou de fachada.
Em qualquer hipótese, qualquer governo – de esquerda, de direita ou de centro – suporta o inevitável desgaste da governança, já que políticas “antipopulares” sempre precisam ser implementadas em algum momento, seja para corrigir exageros de tipo social-democrático (distributivismo fiscalmente irresponsável, déficits orçamentários, desalinhamentos cambiais, etc.), seja na vertente oposta (percepções de que os centristas ou conservadores se ocupam mais dos ricos do que dos pobres), ou por razões diversas (problemas de segurança, desemprego, etc.). A própria dinâmica econômica e conjunturas ¬adversas impõem limites a quem exerce o poder.
Assim, quando o eleitorado decidir tentar outros caminhos, outras soluções, a oposição, qualquer que seja ela, precisa estar pronta para oferecer suas receitas e propor seus remédios. A oposição precisa ter um programa de governo. Para isso ela precisa ter um projeto de poder, ou seja, ter consciência do que, exatamente, precisa ser feito, dizer como pretende fazer, e demonstrar credibilidade no empreendimento. O eleitorado brasileiro, pelo menos parte dele, tentou encontrar outra via, pelo menos em duas oportunidades: a “oposição” o abandonou miseravelmente. Ela não tinha soluções e sequer um discurso a apresentar. É o que discutiremos agora.
A “oposição” brasileira e suas principais deficiências
Não é preciso ser um analista político de qualquer envergadura para constatar que a “oposição” brasileira – que, apenas para relembrar, vinha de oito anos, ou mais, de exercício do poder – falhou miseravelmente em sua missão oposicionista. Dizer que ela foi inepta, ineficiente, incompetente, patética, seria até ser generoso com as principais forças que foram agrupadas nessa classificação de “oposição”. Basta dizer que, simplesmente, não existiu uma oposição de verdade durante todo o governo Lula: as forças que deveriam, até precisavam, ser oposição, simplesmente se autoanularam para um exercício que é uma das tarefas mais legítimas em todos os regimes democráticos.
Em sua defesa, pode-se dizer que os petistas, seu líder em especial, foram extremamente competentes – descontando-se, claro, as mistificações criadas para tal efeito – na construção de uma versão peculiar do processo político, da própria história recente do Brasil, o que deixou as forças potencialmente oposicionistas num estado psicologicamente defensivo, até de “vergonha assumida”, por supostos erros e injustiças cometidas ao longo do chamado neoliberalismo do “tucanato”. As campanhas eleitorais de 2002, de 2006 e de 2010 foram construídas com base em deformações grosseiras das políticas conduzidas sob os governos anteriores, desde as simplificações enganosas sobre as privatizações, até as patriotadas sobre a soberania retórica e a submissão ao FMI, passando pelo monopólio da “bondade social”, como se tudo tivesse tido início em 2003. Poucas vezes, no cenário político brasileiro, a versão deformada da história, em vários aspectos até mentirosa, conseguiu tal impregnação no imaginário popular, a ponto de anular discursos e ações daquelas mesmas forças que deram início à estabilização econômica e criaram as condições para a fase de crescimento com distribuição e prosperidade.
Muito se deve, obviamente, às qualidades de “ilusionista” político do presidente popular, suas mistificações propagandistas, mas também às boas condições da economia internacional, durante a maior parte de seus dois mandatos, e a uma gestão razoavelmente responsável na frente econômica. Mas deve-se reconhecer, também, que a “oposição” se autoanulou durante todo esse tempo, jamais tendo conseguido articular um discurso coerente, sequer esclarecedor, sobre o cenário de mentiras criado pelo bloco no poder. Quais as razões desse suicídio político?
Todo e qualquer ato político é encarnado por personagens políticos, príncipes e conselheiros do príncipe, que se conjugam na missão de conduzir homens e partidos ao pináculo do poder, ao comando do Estado. Devemos então concluir que à “oposição” brasileira faltaram as virtudes e as qualidades que, segundo Maquiavel, devem estar presentes nas pessoas que pretendem deter esse comando. Não que o presidente do bloco no poder fosse um estadista, mas certamente se tratava de um “animal político” extremamente competente. Pode-se dizer, nesse sentido, que à “oposição” – ou o que passa por ela – faltaram “animais políticos” de verdade, pessoas que tivessem as virtudes ou a fortuna – para permanecer nos termos do florentino – para representar uma pequena chance de alternância na disputa de poder.
Incapacidade de se organizar
Por certo que se trata de uma incapacidade de se organizar, com bases reais na sociedade, para, a partir daí, conceber e exibir um discurso coerente, compatível com as aspirações de largos estratos sociais, sobretudo nas classes médias. Mais grave ainda: pode-se dizer que à “oposição” brasileira faltaram, sobretudo, ideias claras sobre como apresentar e “vender” seu programa, se é presumível que, de fato, ela pudesse ter algo assimilável a um programa para oferecer à metade da população – na verdade estratos cambiantes – que não aceita e nunca aceitou a propaganda política que lhe foi servida sob disfarce de “política nacional” pelo bloco no poder. Sem conseguir ver claro no cenário político, dividida pelo caciquismo de seus líderes regionais, a “oposição” não soube sequer explorar as inconsistências e mazelas do bloco no poder, tão evidentes aos olhos de estratos médios de eleitores basicamente comprometidos com a ética e a moralidade no trato da coisa pública.
Pode-se aventar a hipótese de que a qualidade dos homens públicos que se colocam numa oposição de princípio ao bloco no poder – não por razões puramente instrumentais, de conquista do poder pelo poder, mas quer se acreditar que por razões de filosofia política – precisaria melhorar dramaticamente para que eles possam integrar algo suscetível de ser chamado de oposição. Talvez sejam necessárias, inclusive, novas lideranças políticas, que obviamente tenham “princípios” compatíveis com uma oposição digna desse nome. Tal “reinvenção” depende de vários fatores dentre os quais podem ser citados: a reeducação dos próprios integrantes do que é hoje uma oposição de araque; a reorganização de suas bases partidárias; a revisão do seu modo de “funcionamento” no Congresso; mudanças nos parâmetros mentais que orientam o discurso político e que comandam suas ações no plano prático; transparência aos olhos dos eleitores e, sobretudo, distinção clara com “tudo isso que está aí”, atualmente, e que visivelmente não agrada ao eleitorado instruído. Tudo leva a crer que uma nova oposição precisa ser construída, ou que a atual “oposição” deva ser praticamente reinventada, para, finalmente, começar a existir. Vejamos como.
Da travessia do deserto a... mais deserto?
A oposição a ser construída – a verdadeira, não o simulacro que hoje existe – já parte de uma formidável base real e potencial. Os dados eleitorais estão disponíveis no site do TSE, mas se podem extrair algumas conclusões adicionais a partir deles. A base total do eleitorado brasileiro situava-se, em 2010, em quase 136 milhões de pessoas, provavelmente atingindo 145 milhões em 2014. A abstenção em 2010 foi excepcional, alcançando quase trinta milhões de eleitores, aos quais se juntaram 4,6 milhões que anularam seus votos e 2,5 milhões que se abstiveram de qualquer escolha. Os “excluídos” representaram, portanto, um quarto do eleitorado; pode-se, em toda a legitimidade, imaginar que eles possam ser reduzidos à metade, em condições normais de disputa política, o que, infelizmente, não ocorreu em 2010.
Imaginamos, também, que os votos dados à “oposição”, em torno de 43 milhões, sejam realmente de oposição ao presente estado de coisas, especificamente ao “Estado do PT”. Pode-se razoavelmente conceber que uma oposição – qualquer oposição – no Brasil possa reunir metade do eleitorado, admitindo-se, inclusive, que a educação política, de um lado, e o desgaste do poder petista, do outro, contribuam para uma pequena maioria potencial, numa situação em que o mito carismático ainda estará ativo e trabalhando para consolidar o poder petista.
Num regime parlamentarista, é possível compor um governo com apenas 40% de apoio popular. Regimes presidencialistas do tipo brasileiro, ou americano, contudo, convivem com maiorias diferenciadas para a representação parlamentar e para a chefia do executivo, cargo este que exige a maioria absoluta do eleitorado. Na prática, não existe, a rigor e numa abordagem prosaicamente matemática, nenhuma garantia antecipada de vitória, ou certeza de derrota, para qualquer um dos lados, na medida em que, à diferença dos sistemas parlamentaristas, contendas eleitorais em sistemas fortemente marcados por disputas pessoais apresentam-se quase como uma loteria. Um dos fatores é que os eleitores “flutuantes”, os “indiferentes” e os “desalentados” são em número suficiente para alterar a balança para qualquer um dos lados.
Porém, números são um componente talvez objetivo, mas insuficiente para determinar resultados eleitorais. Mais importante é a predisposição do eleitorado para “acolher” uma definição clara quanto aos problemas mais angustiantes da conjuntura. A situação econômica pode até ser decisiva numa escolha eleitoral; mas as percepções sobre quem conduz a política econômica e sobre como ela é conduzida pelos responsáveis também são relevantes. Questões como emprego, segurança pessoal, disponibilidade de serviços públicos – saneamento, saúde e educação, etc. – e temas pontuais, de interesse setorial ou regional podem fazer pender a balança eleitoral. Em outros termos, não existe uma determinação prévia quanto aos embates eleitorais no modelo brasileiro – como em qualquer outro, aliás – e isso significa que as chances estão abertas às forças políticas que pretendam se apresentar como oposição.
Não importam quais sejam as alternativas de políticas oferecidas ao público eleitor por uma oposição efetiva e confiável. É preciso que esta seja precisamente isso: confiável. Ora, não é surpresa para nenhum eleitor medianamente bem informado que a classe política, de maneira geral, fez tudo o que era possível para se desqualificar moralmente, para se rebaixar no plano da ética, para deteriorar completamente a instituição parlamentar e outro tanto no plano dos executivos locais, estaduais e até o federal. Qualquer que seja a qualidade da nova mensagem política de oposição, se ela um dia existir, sua credibilidade, intrínseca e extrínseca, depende essencialmente da regeneração moral de suas lideranças, que deveriam operar aquilo que os italianos – escaldados por anos e anos de corrupção política – chamam de rientro morale, ou seja, uma profunda recomposição da ética na vida política do país.
A julgar por exemplos recentes – os aumentos para os próprios parlamentares e a questão das aposentadorias escandalosas de ex-governadores são dois casos eloquentes do completo descompasso entre as expectativas da população e a atitude das “oposições” – o Brasil não está sequer próximo de uma recomposição da classe política para fora da atual degradação das instituições de representação; nisso, a suposta “oposição” não se diferencia em nada das perversões morais alimentadas pelo próprio bloco no poder. Aparentemente, a “oposição” atual ainda não está pronta a empreender essa passagem; ela não quer enfrentar sua própria regeneração moral (talvez não possa, ou não tem coragem, provavelmente não quer).
Uma vez aceita e internalizada essa decisão pela “moralização” da oposição – que se situa no centro de toda e qualquer regeneração oposicionista, cabe lembrar – começa, então, a tarefa de organizá-la em função do objetivo da reconquista do poder. Tal tarefa implica, em primeiro lugar, uma definição clara de um programa político de escopo nacional e setorial, ou seja, uma plataforma explícita que toque em todos e em cada um dos principais problemas nacionais, sobretudo na esfera institucional, no terreno econômico e nas diversas áreas de maior impacto no plano das políticas públicas (social, cultural, regional, etc.).
Não é simples montar um programa e uma plataforma de ação com tal amplitude, o que certamente exigirá seminários e grupos de trabalho em cada uma dessas vertentes abertas à ação partidária. Mas um partido, ou uma oposição, que pretenda aspirar a ser uma real alternativa de poder não pode ser econômico nem em definições programáticas, nem em propostas político-econômicas relativamente detalhadas. Basta arregaçar as mangas e colocar o cérebro para pensar.
O que fazer? Tudo depende de lideranças esclarecidas
Vendo o panorama da planície, isto é, do ponto de vista dos cidadãos eleitores, não parece haver dúvidas de que o Brasil não conta com uma classe política à altura de suas novas responsabilidades enquanto potência emergente, desejosa de assumir um papel relevante na cena internacional. O parlamento, em especial, mas também os partidos políticos e as forças que gravitam em torno deles parecem viver num mundo à parte, feito de partilha de despojos estatais, conquista de pedaços do orçamento e disputa por pequenas prebendas em todos os poros do imenso ogro estatal.
A discussão sobre temas internacionais no parlamento, e dentro dos partidos, é rara, superficial e geralmente equivocada. Quando ela ocorre, tende a focar falsos problemas que estariam, supostamente, na origem das dificuldades enfrentadas pelo Brasil: guerra cambial de alguns, concorrência desleal de outros, capitais especulativos de um lado, arrogância imperial do outro, ameaças imaginárias sobre a soberania brasileira, em alguma parte de seu imenso território, e sobre seus fabulosos recursos naturais. Poucos desses representantes políticos, contudo, comparam o Brasil a seus equivalentes em outras partes do mundo; poucos deles se dão conta de como o Brasil avança devagar, de como ele está de fato atrasado em relação às mudanças mais dinâmicas que estão ocorrendo um pouco em todas as partes.
De fato, nenhum dos problemas atuais enfrentados pelo Brasil tem a ver com impactos negativos do ambiente externo: o mundo tem sido muito “generoso” com o Brasil, oferecendo mercados e provendo investimentos de todos os tipos para sustentar seu crescimento do período recente. Todos os problemas brasileiros, sem exceção, são made in Brazil, têm raízes puramente internas e devem receber aqui sua solução; seu equacionamento passa por um conjunto de reformas que deveria estar no centro de qualquer programa credível de proposta política geral de um movimento oposicionista que aspire legitimamente conquistar o poder para implementar, a partir daí, essas reformas.
A oposição não conseguirá chegar a ocupar esse espaço alternativo de candidata ao poder se não trabalhar intensamente no diagnóstico dos problemas brasileiros, no oferecimento de respostas sólidas aos mesmos problemas, e na sua própria organização interna, colocando-se numa posição de governo “virtual”, ou potencial, com base em propostas aceitáveis para uma maioria de brasileiros, sem ceder a populismos ou à demagogia habitual nesses meios. Ou seja, a oposição precisa estar pronta para oferecer outro futuro a todos os brasileiros que não acham que a esperteza política aliada ao oportunismo propagandístico representa o horizonte real de possibilidades para o país. Existe um imenso contingente de brasileiros que não se reconhece no estado de coisas vendido atualmente como a condição normal e possível para o Brasil. Como diriam alguns sonhadores, “outro Brasil é possível”; mas para isso outra oposição é necessária, uma que se apresente como alternativa credível.
Uma das condições essenciais para que essa oposição seja construída parece ser a existência de lideranças dotadas de credibilidade intrínseca e de capacidade política para, em primeiro lugar, reformar profundamente a “oposição” atual; num segundo momento, presidir à elaboração temática e organizacional de um “governo” alternativo ao atual bloco no poder. Não existe nenhum obstáculo “técnico”, nenhuma força externa à própria “oposição”, nenhum impedimento estrutural, ou nacional, de caráter político, para que essas tarefas sejam empreendidas.
Tudo depende da disposição de figuras políticas que pretendam aspirar ao papel de alternativa ao poder atual: a “fortuna” do quadro político pode ser favorável a uma oposição renovada, como observado nas eleições de 2010. Mas o fator mais importante ainda é – ele sempre é – constituído pelas “virtudes” dos condutores de cidadãos.
• É diplomata de carreira e professor universitário, com diversos livros sobre a política externa e as relações internacionais do Brasil
FONTE: Revista Interesse Nacional Nº 13 – Abril a Junho de 2011
terça-feira, 26 de abril de 2011
Jirau, Dilma e a herança maldita (Ricardo Vélez Rodríguez)
Está a se efetivar o maior processo de entropia republicana da nossa História. O fenômeno poderia ser ilustrado com a frase, um tanto esquisita, do prefeito de São Paulo, quando falou da formação de novo partido, mais ou menos nos seguintes termos: não é uma organização nem de direita, nem de esquerda, nem de cima, nem de baixo. A frase do prefeito lembra a definição que do ser fazia o pré-socrático Heráclito de Éfeso: não é nem quente, nem frio, nem branco, nem preto, nem alto, nem baixo. Enquanto a definição heraclitiana ficou nas névoas da metafísica grega, o significado da afirmação de Gilberto Kassab é relativamente simples de ser desvendado: trata-se da ressurreição do velho "centrão", criado na era Sarney para fazer as delícias de políticos de carreira e burocratas de plantão, que não queriam largar o osso das benesses oficiais. Todo mundo com o governo, ninguém contra, que não somos de ferro!
Gravíssima situação que faz lembrar o pesadelo antevisto por Tocqueville para as democracias, efetivado pela onipotência da maioria, banida como desserviço à pátria a presença de qualquer oposição, mesmo que esta se traduza em singelos protestos veiculados pela mídia. É a síndrome chavista da "vontade geral" pura e simples, encarnada no líder e que impede que os cidadãos se expressem pela boca dos seus representantes. É a perversa tendência à anulação de qualquer signo de insatisfação da sociedade por meio da imprensa livre, protagonizada, ao longo da última década, pelo casal Kirchner, nesse tango de mau gosto de um passo para a frente e dois para trás, em que ficou enredada a democracia argentina.
Felizmente, as coisas não chegaram ainda, no Brasil, ao extremo da entropia total, dada a presença no Congresso Nacional de vozes que se erguem contra essa tendência. Mas que a força do rolo compressor oficial está em andamento, disso não há dúvida. O mostrengo mostrou as suas garras ao ensejo da recente visita do presidente americano ao Brasil, quando os policiais cariocas deram tratamento à margem da lei aos jovens que protestavam no centro do Rio, ou no atentado de que foi vítima conhecido blogueiro que se caracterizou por criticar as políticas do governo fluminense. Ensaios de intimidação e de prepotência que em nada ajudam a vida democrática e a defesa dos direitos humanos, tão badalada pela atual presidente.
Porém a sociedade brasileira, felizmente, é mais complexa do que imagina a vã sabedoria oficial. O episódio ocorrido semanas atrás no canteiro de obras da Hidrelétrica de Jirau e que se estendeu como rastilho de pólvora por outros cenários do PAC 2 está a revelar que os estrategistas do governo se esqueceram de combinar os projetos desenvolvimentistas com a própria sociedade. Pior ainda, com os trabalhadores dos canteiros. A insatisfação é clara e não poupou as lideranças peleguizadas ao redor da CUT. Estas ficaram em palpos de aranha para dar uma explicação à sociedade acerca dos violentos protestos dos operários nos canteiros administrados pelo PT e coligados. O rolo compressor não conseguiu abafar os reclamos trabalhistas. Nem conseguirá, com certeza, esconder as perdas que a economia do País terá com a indevida intervenção do governo na gestão da empresa Vale, que está sendo obrigada, com a defenestração do anterior presidente, a praticar políticas econômicas nada rentáveis e atentatórias aos interesses dos acionistas.
Caberia indagar, a esta altura dos acontecimentos, onde está a "herança maldita" de que tanto falava Lula ao longo dos seus dois mandatos-palanque. Hoje, certamente, essa herança não seria identificada com o "neoliberalismo" de Fernando Henrique Cardoso, que garantiu as privatizações (as quais desoneraram o Tesouro Nacional e aumentaram o ingresso de dinheiro nas arcas oficiais) e efetivou o saneamento das contas públicas com a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal.
A perversa herança é constituída, hoje, pelo reforço da tendência estatizante presente no coração do governo, pelas mãos do lulismo e do petismo, na versão castilhista, que, ensaiada na década passada nos pagos gaúchos, se tornou atuante em nível nacional, no atual momento, por força da identificação do núcleo duro do poder com essa tresloucada propensão. Porque a inflação está voltando, quase descontrolada, às prateleiras da economia não pela mão do saudoso controle dos gastos públicos, mas justamente turbinada pela megalomania lulista do "nunca antes na história deste país" e pelo carnaval de bolsas e subsídios oficiais pagos a eleitores pobres, ongueiros irresponsáveis, burocratas corruptos, companheiros e até a países "amigos", como se tem revelado na recente revisão dos preços da energia vendida ao Paraguai. Tanta gastança tem preço. E essa "herança maldita" afetará os bolsos de quem sempre sai perdendo na história do nosso republicanismo patrimonialista: o contribuinte.
A presidente Dilma regressou há dias da sua visita oficial à China. Tomara que a mandatária tenha aprendido as lições de realismo político do mandarinato e coloque definitivamente nos trilhos do bom senso as nossas relações internacionais, loucamente polarizadas, no ciclo lulista, pelo viés ideológico, que tudo deforma. O Brasil perdeu, no caminho dessa megalomania vácua e irresponsável, a oportunidade de conquistar, com o apoio dos grandes, a cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, bem como a liderança na Unesco e na Organização Mundial do Comércio.
A declaração final dos líderes do Bric na China, referindo-se à necessidade de renovação da ONU, foi vaga demais para as pretensões brasileiras. O Itamaraty precisa voltar ao seio da tradição do barão do Rio Branco, que fez os nossos diplomatas serem respeitados porque punham em prática políticas diuturnamente amadurecidas na análise estratégica do mundo e das necessidades do País.
Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG)
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO (25/04/11)
Gravíssima situação que faz lembrar o pesadelo antevisto por Tocqueville para as democracias, efetivado pela onipotência da maioria, banida como desserviço à pátria a presença de qualquer oposição, mesmo que esta se traduza em singelos protestos veiculados pela mídia. É a síndrome chavista da "vontade geral" pura e simples, encarnada no líder e que impede que os cidadãos se expressem pela boca dos seus representantes. É a perversa tendência à anulação de qualquer signo de insatisfação da sociedade por meio da imprensa livre, protagonizada, ao longo da última década, pelo casal Kirchner, nesse tango de mau gosto de um passo para a frente e dois para trás, em que ficou enredada a democracia argentina.
Felizmente, as coisas não chegaram ainda, no Brasil, ao extremo da entropia total, dada a presença no Congresso Nacional de vozes que se erguem contra essa tendência. Mas que a força do rolo compressor oficial está em andamento, disso não há dúvida. O mostrengo mostrou as suas garras ao ensejo da recente visita do presidente americano ao Brasil, quando os policiais cariocas deram tratamento à margem da lei aos jovens que protestavam no centro do Rio, ou no atentado de que foi vítima conhecido blogueiro que se caracterizou por criticar as políticas do governo fluminense. Ensaios de intimidação e de prepotência que em nada ajudam a vida democrática e a defesa dos direitos humanos, tão badalada pela atual presidente.
Porém a sociedade brasileira, felizmente, é mais complexa do que imagina a vã sabedoria oficial. O episódio ocorrido semanas atrás no canteiro de obras da Hidrelétrica de Jirau e que se estendeu como rastilho de pólvora por outros cenários do PAC 2 está a revelar que os estrategistas do governo se esqueceram de combinar os projetos desenvolvimentistas com a própria sociedade. Pior ainda, com os trabalhadores dos canteiros. A insatisfação é clara e não poupou as lideranças peleguizadas ao redor da CUT. Estas ficaram em palpos de aranha para dar uma explicação à sociedade acerca dos violentos protestos dos operários nos canteiros administrados pelo PT e coligados. O rolo compressor não conseguiu abafar os reclamos trabalhistas. Nem conseguirá, com certeza, esconder as perdas que a economia do País terá com a indevida intervenção do governo na gestão da empresa Vale, que está sendo obrigada, com a defenestração do anterior presidente, a praticar políticas econômicas nada rentáveis e atentatórias aos interesses dos acionistas.
Caberia indagar, a esta altura dos acontecimentos, onde está a "herança maldita" de que tanto falava Lula ao longo dos seus dois mandatos-palanque. Hoje, certamente, essa herança não seria identificada com o "neoliberalismo" de Fernando Henrique Cardoso, que garantiu as privatizações (as quais desoneraram o Tesouro Nacional e aumentaram o ingresso de dinheiro nas arcas oficiais) e efetivou o saneamento das contas públicas com a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal.
A perversa herança é constituída, hoje, pelo reforço da tendência estatizante presente no coração do governo, pelas mãos do lulismo e do petismo, na versão castilhista, que, ensaiada na década passada nos pagos gaúchos, se tornou atuante em nível nacional, no atual momento, por força da identificação do núcleo duro do poder com essa tresloucada propensão. Porque a inflação está voltando, quase descontrolada, às prateleiras da economia não pela mão do saudoso controle dos gastos públicos, mas justamente turbinada pela megalomania lulista do "nunca antes na história deste país" e pelo carnaval de bolsas e subsídios oficiais pagos a eleitores pobres, ongueiros irresponsáveis, burocratas corruptos, companheiros e até a países "amigos", como se tem revelado na recente revisão dos preços da energia vendida ao Paraguai. Tanta gastança tem preço. E essa "herança maldita" afetará os bolsos de quem sempre sai perdendo na história do nosso republicanismo patrimonialista: o contribuinte.
A presidente Dilma regressou há dias da sua visita oficial à China. Tomara que a mandatária tenha aprendido as lições de realismo político do mandarinato e coloque definitivamente nos trilhos do bom senso as nossas relações internacionais, loucamente polarizadas, no ciclo lulista, pelo viés ideológico, que tudo deforma. O Brasil perdeu, no caminho dessa megalomania vácua e irresponsável, a oportunidade de conquistar, com o apoio dos grandes, a cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, bem como a liderança na Unesco e na Organização Mundial do Comércio.
A declaração final dos líderes do Bric na China, referindo-se à necessidade de renovação da ONU, foi vaga demais para as pretensões brasileiras. O Itamaraty precisa voltar ao seio da tradição do barão do Rio Branco, que fez os nossos diplomatas serem respeitados porque punham em prática políticas diuturnamente amadurecidas na análise estratégica do mundo e das necessidades do País.
Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG)
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO (25/04/11)
domingo, 24 de abril de 2011
Todos Querem Um Reich de Vinte Anos (José Roberto Bonifácio)
[Versao Preliminar]
Em agosto do ano passado o cientista politico Bolivar Lamounier publicou no jornal O Estado de S. Paulo um artigo sugerindo que o Brasil corria um risco de passar por um processo de “mexicanização” (1), isto e de oligarquizacao de suas instituicoes politicas e de graves constrangimentos a competitividade eleitoral dos partidos oposicionistas. Por outro lado, certas declaracoes do ex-presidente Luis Inacio Lula da Silva no sentido de que o PT permanecera 20 anos no poder (2), ao longo da ultima semana, reacenderam a polemica. Estaria o Partido dos Trabalhadores prestes a tornar-se um novo PRI (Partido Revolucionário Institucional)?
O objetivo deste artigo e esmiuçar determinados aspectos da tese veiculada por aquele autor em nosso processo politico e institucional, bem como iluminar uma serie de implicações para a o debate politico e a maneira como isto repercutira sobre o perfil, a qualidade e a solidez da nossa democracia no futuro.
Temos motivos para temer profecias institucionais como esta, assim como outras tais como “venezuelização”, “argentinização” ou de "colombianização", não necessariamente pelo conteúdo imanente de sua mensagem. Nossos temores derivam mais do fato ubíquo na vida social de que de algum modo elas podem se auto-realizar. Uma vez que venhamos assumir uma idéia ou percepção como um risco real à nossa democracia e nos mobilizarmos coletivamente para detê-la isto nos leva, inadvertidamente, a fomentar o que alguns denominam "complexo de sublevação"(3) e outros chamam "atentado institucional" (4).
Ha motivos e evidencias para pensar que tais ameaças, reais ou imaginárias, de parte dos adeptos e seguidores do lulopetismo e dos seus adversários é que os leva a buscarem a autoperpetuação no poder, dados os baixos custos de supressão vis-à-vis os altos custos de tolerância envolvidos nesta reiterada interação entre os campos da situação com os da oposição e vice-versa.
Também já ouvimos muito falar da "arenização" (termo em voga nos anos 70, na época da transição “lenta, gradual e segura”) e também da "estadonovização" (época atual)(5) como congêneres ao que hoje chamamos "mexicanização". Parece que já temos uma longa tradição literária acerca da "técnica do golpe de Estado", de base científica ou não.
A questão que parece ser necessário discutir é que os temores institucionais vem se difundindo e se enraizando no imaginário coletivo dos intelectuais brasileiros como uma espécie de patologia desde que Lula assumiu a presidência em 2003, isto é, apenas um ano antes do quadragésimo aniversário do "atentado institucional" (a maioria hoje diz "golpe", mas há ainda quem já tenha chamado de "revolução" e há um crescente número, influenciado pela trilogia lançada pelo jornalista Élio Gaspari a partir do limiar da década passada, que intitule este evento de "contragolpe")(6) que findou a democracia de 46/64. Muitos foram os cientistas sociais que encararam a Crise do Mensalão em 2005 como uma espécie de "golpe branco" das elites políticas supostamente enciumadas com o "sucesso" do governo petista, que na época era incerto ou ao menos não tão evidente.
O que se pretende afirmar aqui é que estes temores e expectativas são simétricos tanto entre os lulistas quanto entre os não-lulistas, e a idéia do "Reich de Vinte Anos"(7) alimentada por mentalidades políticas formadas, ironicamente, durante os "anos de chumbo" (ninguém ignora que Dirceu e Serjão Motta estiveram juntos em Ibiúna naquele famoso congresso da UNE...) talvez (digamos talvez, dada a magnitude da incerteza potencialmente envolvida) não decorra tanto de um apego inato ao poder ou à riqueza, ao status adscritivo recém-adquiridos, mas do temor de um aniquilamento na rodada subseqüente. Do mesmo modo, como se atribuiu a FHC o papel de "exterminador" dos movimentos sociais na década de 90 (o que era parcialmente verdadeiro dada a transformação das expectativas gerada pelo Plano Real e pela estabilidade) hoje tal papel cabe ao “Sapo Barbudo” com relação aos partidos oposicionistas, PSDB, PPS e DEM.
A debilidade de nossas oposições na atualidade e derivada de fatores endógenos e exogenos. Primeiro, nao ha incentivos para os politicos irem contra o governo federal. Segundo, ha um passivo de fracassos e negatividades associado ao PSDB e ao DEM que o lulismo manipula muito bem e deles extrai sua razão de ser. Terceiro, o governo age decisivamente para manter desunido o centro da direita e coopta facções de ambos de maneira sistemática, de maneira a cimentar seu próprio bloco histórico e inviabilizar outros projetos de poder tanto dentro quanto fora do seu próprio campo.
Usei a expressão "cientistas sociais" acima no sentido lato para abranger uma serie de analistas e estudiosos do processo político brasileiro e internacional que desencadearam uma verdadeira onda de pânico e histeria institucional, como se estivéssemos vivendo novamente o pesadelo (ou o sonho para alguns...) dos últimos dias de Jango... E aquelas previsões geraram implicações concretas na forma de uma unificação do campo lulopetista e uma mobilização geral de todas as facções partidárias em defesa do que supunham ser um "golpe branco" (8) contra seu presidente. Não havia base fatual para aquilo dada a heterogeneidade e as divergências quase estruturais e arraigadas no campo das oposições e ainda assim o petismo comportou-se como se a ameaça fosse real.
As teses da "mexicanização" e da "estadonovização", ainda que não se pretenda exagerar seus poderes preditivos, por outro lado, tem base factual SIM na forma da distorção ou estrangulamento das bases da competição política, na forma de processos que podem durar décadas e modificar de um modo muito perene e talvez perverso nossa democracia. A similitude com a tese do "golpe branco" e dos "atentados institucionais" é do ponto de vista LÓGICO e que isto fique bem claro.
Por outro lado, não comparamos PT e PSDB enquanto partidos ou organizações, mas determinados aspectos do imaginário político do qual deriva o pensamento político e a ação estratégica de ambos, daí a referencia a ao esquecido vinculo biográfico entre Sergio Motta e a José Dirceu... Do mesmo modo, ao criticar racionalmente a tese da "mexicanização" supomos haver uma simetria fundamental com a tese do "golpe branco" nos mesmos e diversos outros, tal qual o cientista político Jairo Nicolau (9) combatera outrora.
A mesma busca anular um cenário apocalíptico mediante a simples conjuração de sua imagem nefasta. É bem verdade, que o primeiro argumento profético é coerente com uma serie de teorias que vem emergindo para explicar o atual momento político como a tese da "estadonovização" (proposta ironicamente por alguns que outrora eram propugnadores da tese do "golpe branco"... (10)) etc que vem ganhando cada vez mais adeptos, dentre os quais o próprio FHC em seu artigo mais recente (11).
O saldo da analise depõe contra um antigo dito do cientista politico e Francisco Weffort (12), o qual dizia que as esquerdas somente aprenderam a ser democráticas apos a experiência do Ato Institucional 05 (AI 5). Aquele grave episodio de encurralamento das forcas de resistência ao regime de exceção teriam deixado marcas duradouras segundo a visão do ex-ministro da Cultura do governo Fernando Henrique, mas, pelo que se observa, não teriam sido o suficiente para moldar preferências consistentemente democráticas, ao menos não na acepção destas como uma propensão deliberada ao risco envolvido no convívio entre situações e oposições ao longo de uma sucessão de períodos eleitorais incertos (13).
Enfim, o que vimos são apenas afinidades eletivas entre campos opostos e nada mais que isto de maneira que, se este paper tem ajudado as pessoas a enxergarem isto, então terão alcançado sua meta.
Notas:
(1) BOLÍVAR LAMOUNIER. A 'mexicanização' em marcha. O Estado de S.Paulo - 24/08/10.
2) Entrevista exclusiva para o "Seu Jornal" com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, presidente de honra do PT.
(3) REIS, F. W. Consolidação democrática e construção do estado: Notas Introdutórias e uma Tese. In: REIS & O’DONNELL (org.). A Democracia no Brasil: dilemas e perspectivas. São Paulo: Vértice. 1988, p. 13-14.
(4) A expressao foi cunhada por Wanderley Guilherme dos Santos e tem sido empregada significativamente em diversas das suas obras, especialmente: Sessenta e quatro: anatomia da crise - de Wanderley Guilherme dos Santos. São Paulo, Vértice, 1986; Quem Dará o Golpe no Brasil ? In Cadernos do Povo Brasileiro, PINTO, Álvaro Vieira e SILVEIRA, Ênio (organizadores), volume cinco. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, fevereiro de 1962. Disponivel em:; e Regresso. Máscaras institucionais do liberalismo oligárquico. Rio de Janeiro, Opera Nostra Ed., 1994 . Vejamos um breve levantamento destes nos paises da America Latina em LABORATÓRIO DE ESTUDOS EXPERIMENTAIS (LEEX). Datas de Atentados Institucionais para 19 países da América Latina, entre 1900 e 1997. .
(5) Luiz Werneck Vianna. País vive “Estado Novo do PT”. Especial para Gramsci e o Brasil- Julho 2007..
(6) A Ditadura Envergonhada, volume 1. Coleção As Ilusões Armadas, São Paulo: Companhia da Letras, 2002; A Ditadura Escancarada, volume 2. Coleção As Ilusões Armadas, São Paulo: Companhia da Letras, 2002; A Ditadura Derrotada, volume 3. Coleção O Sacerdote e o Feiticeiro, São Paulo: Companhia da Letras, 2003;A Ditadura Encurralada, volume 4. Coleção O Sacerdote e o Feiticeiro, São Paulo: Companhia da Letras, 2004.
(7) BEIRAO, , Nirlando, PRATA, José & TOMIOKA,Teiji. Sergio Motta: O Trator em Acao. São Paulo: Geração Editorial, 1999., pp. 113-114.
(8) Wanderley Guilherme dos Santos. O "lacerdismo" transferiu domicílio eleitoral para São Paulo. Valor Econômico do dia 2 de junho de 2005.; Maria Inês Nassif. Efeito colateral do neo-udenismo de Serra. Valor Econômico...
(9) Jairo Nicolau. Golpe branco tem fundamento fabulário.O Estado de S. Paulo, 22/06/05.
(10) Ver: Maria Cristina Fernandes."A outra Era Vargas", por Wanderley Guilherme. Valor Econômico - 25/03/2011..
(11) CARDOSO, Fernando Henrique. O Papel da Oposição. Disponivel em:.
(12) WEFFORT, Francisco. Por que democracia? 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.
(13) PRZEWORSKI, A. Amas a incerteza e serás democrático. Novos Estudos , CEBRAP,São Paulo, jul, 1984, p. 37, 38 e 41.
Obs.:José Roberto Bonifácio graduou em Ciências Sociais na Ufes. Não sei o que está aprontando no RJ, só sei que é um dos meus interlocutores preferidos nas redes sociais.
Em agosto do ano passado o cientista politico Bolivar Lamounier publicou no jornal O Estado de S. Paulo um artigo sugerindo que o Brasil corria um risco de passar por um processo de “mexicanização” (1), isto e de oligarquizacao de suas instituicoes politicas e de graves constrangimentos a competitividade eleitoral dos partidos oposicionistas. Por outro lado, certas declaracoes do ex-presidente Luis Inacio Lula da Silva no sentido de que o PT permanecera 20 anos no poder (2), ao longo da ultima semana, reacenderam a polemica. Estaria o Partido dos Trabalhadores prestes a tornar-se um novo PRI (Partido Revolucionário Institucional)?
O objetivo deste artigo e esmiuçar determinados aspectos da tese veiculada por aquele autor em nosso processo politico e institucional, bem como iluminar uma serie de implicações para a o debate politico e a maneira como isto repercutira sobre o perfil, a qualidade e a solidez da nossa democracia no futuro.
Temos motivos para temer profecias institucionais como esta, assim como outras tais como “venezuelização”, “argentinização” ou de "colombianização", não necessariamente pelo conteúdo imanente de sua mensagem. Nossos temores derivam mais do fato ubíquo na vida social de que de algum modo elas podem se auto-realizar. Uma vez que venhamos assumir uma idéia ou percepção como um risco real à nossa democracia e nos mobilizarmos coletivamente para detê-la isto nos leva, inadvertidamente, a fomentar o que alguns denominam "complexo de sublevação"(3) e outros chamam "atentado institucional" (4).
Ha motivos e evidencias para pensar que tais ameaças, reais ou imaginárias, de parte dos adeptos e seguidores do lulopetismo e dos seus adversários é que os leva a buscarem a autoperpetuação no poder, dados os baixos custos de supressão vis-à-vis os altos custos de tolerância envolvidos nesta reiterada interação entre os campos da situação com os da oposição e vice-versa.
Também já ouvimos muito falar da "arenização" (termo em voga nos anos 70, na época da transição “lenta, gradual e segura”) e também da "estadonovização" (época atual)(5) como congêneres ao que hoje chamamos "mexicanização". Parece que já temos uma longa tradição literária acerca da "técnica do golpe de Estado", de base científica ou não.
A questão que parece ser necessário discutir é que os temores institucionais vem se difundindo e se enraizando no imaginário coletivo dos intelectuais brasileiros como uma espécie de patologia desde que Lula assumiu a presidência em 2003, isto é, apenas um ano antes do quadragésimo aniversário do "atentado institucional" (a maioria hoje diz "golpe", mas há ainda quem já tenha chamado de "revolução" e há um crescente número, influenciado pela trilogia lançada pelo jornalista Élio Gaspari a partir do limiar da década passada, que intitule este evento de "contragolpe")(6) que findou a democracia de 46/64. Muitos foram os cientistas sociais que encararam a Crise do Mensalão em 2005 como uma espécie de "golpe branco" das elites políticas supostamente enciumadas com o "sucesso" do governo petista, que na época era incerto ou ao menos não tão evidente.
O que se pretende afirmar aqui é que estes temores e expectativas são simétricos tanto entre os lulistas quanto entre os não-lulistas, e a idéia do "Reich de Vinte Anos"(7) alimentada por mentalidades políticas formadas, ironicamente, durante os "anos de chumbo" (ninguém ignora que Dirceu e Serjão Motta estiveram juntos em Ibiúna naquele famoso congresso da UNE...) talvez (digamos talvez, dada a magnitude da incerteza potencialmente envolvida) não decorra tanto de um apego inato ao poder ou à riqueza, ao status adscritivo recém-adquiridos, mas do temor de um aniquilamento na rodada subseqüente. Do mesmo modo, como se atribuiu a FHC o papel de "exterminador" dos movimentos sociais na década de 90 (o que era parcialmente verdadeiro dada a transformação das expectativas gerada pelo Plano Real e pela estabilidade) hoje tal papel cabe ao “Sapo Barbudo” com relação aos partidos oposicionistas, PSDB, PPS e DEM.
A debilidade de nossas oposições na atualidade e derivada de fatores endógenos e exogenos. Primeiro, nao ha incentivos para os politicos irem contra o governo federal. Segundo, ha um passivo de fracassos e negatividades associado ao PSDB e ao DEM que o lulismo manipula muito bem e deles extrai sua razão de ser. Terceiro, o governo age decisivamente para manter desunido o centro da direita e coopta facções de ambos de maneira sistemática, de maneira a cimentar seu próprio bloco histórico e inviabilizar outros projetos de poder tanto dentro quanto fora do seu próprio campo.
Usei a expressão "cientistas sociais" acima no sentido lato para abranger uma serie de analistas e estudiosos do processo político brasileiro e internacional que desencadearam uma verdadeira onda de pânico e histeria institucional, como se estivéssemos vivendo novamente o pesadelo (ou o sonho para alguns...) dos últimos dias de Jango... E aquelas previsões geraram implicações concretas na forma de uma unificação do campo lulopetista e uma mobilização geral de todas as facções partidárias em defesa do que supunham ser um "golpe branco" (8) contra seu presidente. Não havia base fatual para aquilo dada a heterogeneidade e as divergências quase estruturais e arraigadas no campo das oposições e ainda assim o petismo comportou-se como se a ameaça fosse real.
As teses da "mexicanização" e da "estadonovização", ainda que não se pretenda exagerar seus poderes preditivos, por outro lado, tem base factual SIM na forma da distorção ou estrangulamento das bases da competição política, na forma de processos que podem durar décadas e modificar de um modo muito perene e talvez perverso nossa democracia. A similitude com a tese do "golpe branco" e dos "atentados institucionais" é do ponto de vista LÓGICO e que isto fique bem claro.
Por outro lado, não comparamos PT e PSDB enquanto partidos ou organizações, mas determinados aspectos do imaginário político do qual deriva o pensamento político e a ação estratégica de ambos, daí a referencia a ao esquecido vinculo biográfico entre Sergio Motta e a José Dirceu... Do mesmo modo, ao criticar racionalmente a tese da "mexicanização" supomos haver uma simetria fundamental com a tese do "golpe branco" nos mesmos e diversos outros, tal qual o cientista político Jairo Nicolau (9) combatera outrora.
A mesma busca anular um cenário apocalíptico mediante a simples conjuração de sua imagem nefasta. É bem verdade, que o primeiro argumento profético é coerente com uma serie de teorias que vem emergindo para explicar o atual momento político como a tese da "estadonovização" (proposta ironicamente por alguns que outrora eram propugnadores da tese do "golpe branco"... (10)) etc que vem ganhando cada vez mais adeptos, dentre os quais o próprio FHC em seu artigo mais recente (11).
O saldo da analise depõe contra um antigo dito do cientista politico e Francisco Weffort (12), o qual dizia que as esquerdas somente aprenderam a ser democráticas apos a experiência do Ato Institucional 05 (AI 5). Aquele grave episodio de encurralamento das forcas de resistência ao regime de exceção teriam deixado marcas duradouras segundo a visão do ex-ministro da Cultura do governo Fernando Henrique, mas, pelo que se observa, não teriam sido o suficiente para moldar preferências consistentemente democráticas, ao menos não na acepção destas como uma propensão deliberada ao risco envolvido no convívio entre situações e oposições ao longo de uma sucessão de períodos eleitorais incertos (13).
Enfim, o que vimos são apenas afinidades eletivas entre campos opostos e nada mais que isto de maneira que, se este paper tem ajudado as pessoas a enxergarem isto, então terão alcançado sua meta.
Notas:
(1) BOLÍVAR LAMOUNIER. A 'mexicanização' em marcha. O Estado de S.Paulo - 24/08/10.
2) Entrevista exclusiva para o "Seu Jornal" com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, presidente de honra do PT
(3) REIS, F. W. Consolidação democrática e construção do estado: Notas Introdutórias e uma Tese. In: REIS & O’DONNELL (org.). A Democracia no Brasil: dilemas e perspectivas. São Paulo: Vértice. 1988, p. 13-14.
(4) A expressao foi cunhada por Wanderley Guilherme dos Santos e tem sido empregada significativamente em diversas das suas obras, especialmente: Sessenta e quatro: anatomia da crise - de Wanderley Guilherme dos Santos. São Paulo, Vértice, 1986; Quem Dará o Golpe no Brasil ? In Cadernos do Povo Brasileiro, PINTO, Álvaro Vieira e SILVEIRA, Ênio (organizadores), volume cinco. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, fevereiro de 1962. Disponivel em:
(5) Luiz Werneck Vianna. País vive “Estado Novo do PT”. Especial para Gramsci e o Brasil- Julho 2007.
(6) A Ditadura Envergonhada, volume 1. Coleção As Ilusões Armadas, São Paulo: Companhia da Letras, 2002; A Ditadura Escancarada, volume 2. Coleção As Ilusões Armadas, São Paulo: Companhia da Letras, 2002; A Ditadura Derrotada, volume 3. Coleção O Sacerdote e o Feiticeiro, São Paulo: Companhia da Letras, 2003;A Ditadura Encurralada, volume 4. Coleção O Sacerdote e o Feiticeiro, São Paulo: Companhia da Letras, 2004.
(7) BEIRAO, , Nirlando, PRATA, José & TOMIOKA,Teiji. Sergio Motta: O Trator em Acao. São Paulo: Geração Editorial, 1999., pp. 113-114.
(8) Wanderley Guilherme dos Santos. O "lacerdismo" transferiu domicílio eleitoral para São Paulo. Valor Econômico do dia 2 de junho de 2005.
(9) Jairo Nicolau. Golpe branco tem fundamento fabulário.O Estado de S. Paulo, 22/06/05.
(10) Ver: Maria Cristina Fernandes."A outra Era Vargas", por Wanderley Guilherme. Valor Econômico - 25/03/2011.
(11) CARDOSO, Fernando Henrique. O Papel da Oposição. Disponivel em:
(12) WEFFORT, Francisco. Por que democracia? 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.
(13) PRZEWORSKI, A. Amas a incerteza e serás democrático. Novos Estudos , CEBRAP,São Paulo, jul, 1984, p. 37, 38 e 41.
Obs.:José Roberto Bonifácio graduou em Ciências Sociais na Ufes. Não sei o que está aprontando no RJ, só sei que é um dos meus interlocutores preferidos nas redes sociais.
Transição para uma economia verde (Achim Steiner)
A Rio+20 poderá marcar um ponto de virada nos assuntos globais, um momento em que a estabilidade ambiental seja transformada em realidade
A transição para uma economia verde, de baixo carbono e uso eficiente dos recursos naturais, virou uma prioridade central dos esforços internacionais em busca do desenvolvimento sustentável, em um século 21 em processo de transformação acelerada.
Governos vão se reunir novamente no próximo ano, no Brasil, 20 anos após a Cúpula da Terra do Rio-1992, em meio a uma paisagem de desafios persistentes e emergentes e contra o pano de fundo de crises recentes e atuais, que em parte são desencadeadas pela maneira como administramos os recursos naturais finitos, ou, melhor, como deixamos de administrá-los.
Uma economia verde, no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza, é um dos dois temas centrais da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável-2012, a chamada Rio+20.
O engajamento do Brasil será crucial para moldar a ambição internacional para a Rio+20, ao mesmo tempo em que destacará a experiência do próprio país, desde sua economia à base de etanol até a gestão aprimorada dos patrimônios baseados na natureza, incluindo a Amazônia.
O Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) afirma que uma economia verde é do interesse de todos os países -os ricos e os menos ricos, os desenvolvidos e os que estão em desenvolvimento, os de economia estatal ou de mercado. Recentemente, o Pnuma lançou "Uma Transição para uma Economia Verde", e fui solicitado a compartilhar as conclusões do relatório em um encontro extraordinário das comissões ambientais do Senado e da Câmara do Brasil em 26 de abril.
O relatório sugere que o investimento de 2% do PIB global por ano -ou seja, cerca de US$ 1,3 trilhão- em dez setores-chave poderia deslanchar uma transição econômica verde, desde que o investimento fosse apoiado por políticas e medidas públicas inteligentes. O financiamento poderia vir em parte do término gradual de subsídios "prejudiciais", algo perto de US$ 1 trilhão, cobrindo desde combustíveis fósseis até fertilizantes e pesca.
O estudo sobre a economia verde destaca países em que já há transições em curso, como a República da Coreia e Uganda.
Em 2011, a capacidade instalada de fotovoltaicos provavelmente será de 50 GW -o equivalente a 50 reatores nucleares-, em países que vão de Bangladesh e Marrocos a Alemanha e Emirados Árabes.
Haverá desafios -é possível que empregos sejam perdidos inicialmente no setor da pesca, para que os estoques de pescado superexplorados possam ser restaurados.
Mas, de modo global, uma economia verde gera mais empregos do que os que são perdidos nos velhos setores "marrons".
A conferência Rio+20 representa uma oportunidade de intensificar e de acelerar esses "brotos verdes".
Alguns países estão preocupados com tarifas verdes ou barreiras comerciais. Esses são riscos que precisam ser enfrentados, mas que também são inerentes aos modelos econômicos existentes em um mundo em que os países competem em um mercado global.
Vivemos em uma época de desafios múltiplos -muitos dos quais a ciência vem confirmando que são ainda mais palpáveis, reais e urgentes do que eram em 1992, incluindo as mudanças climáticas, a perda da biodiversidade e a degradação dos solos. Mas também vivemos em um mundo de oportunidades inéditas para uma mudança fundamental em relação aos caminhos econômicos, sociais e ambientais do passado.
A Rio+20 poderá ser apenas uma data a mais no calendário. Mas também poderá marcar um ponto de virada nos assuntos globais, um momento em que a promessa de emprego, igualdade e estabilidade ambiental feita 20 anos antes seja transformada de ideal em realidade para cerca de 7 bilhões de pessoas.
Tradução de CLARA ALLAIN.
ACHIM STEINER é subsecretário-geral da ONU e diretor-executivo do Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
A transição para uma economia verde, de baixo carbono e uso eficiente dos recursos naturais, virou uma prioridade central dos esforços internacionais em busca do desenvolvimento sustentável, em um século 21 em processo de transformação acelerada.
Governos vão se reunir novamente no próximo ano, no Brasil, 20 anos após a Cúpula da Terra do Rio-1992, em meio a uma paisagem de desafios persistentes e emergentes e contra o pano de fundo de crises recentes e atuais, que em parte são desencadeadas pela maneira como administramos os recursos naturais finitos, ou, melhor, como deixamos de administrá-los.
Uma economia verde, no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza, é um dos dois temas centrais da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável-2012, a chamada Rio+20.
O engajamento do Brasil será crucial para moldar a ambição internacional para a Rio+20, ao mesmo tempo em que destacará a experiência do próprio país, desde sua economia à base de etanol até a gestão aprimorada dos patrimônios baseados na natureza, incluindo a Amazônia.
O Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) afirma que uma economia verde é do interesse de todos os países -os ricos e os menos ricos, os desenvolvidos e os que estão em desenvolvimento, os de economia estatal ou de mercado. Recentemente, o Pnuma lançou "Uma Transição para uma Economia Verde", e fui solicitado a compartilhar as conclusões do relatório em um encontro extraordinário das comissões ambientais do Senado e da Câmara do Brasil em 26 de abril.
O relatório sugere que o investimento de 2% do PIB global por ano -ou seja, cerca de US$ 1,3 trilhão- em dez setores-chave poderia deslanchar uma transição econômica verde, desde que o investimento fosse apoiado por políticas e medidas públicas inteligentes. O financiamento poderia vir em parte do término gradual de subsídios "prejudiciais", algo perto de US$ 1 trilhão, cobrindo desde combustíveis fósseis até fertilizantes e pesca.
O estudo sobre a economia verde destaca países em que já há transições em curso, como a República da Coreia e Uganda.
Em 2011, a capacidade instalada de fotovoltaicos provavelmente será de 50 GW -o equivalente a 50 reatores nucleares-, em países que vão de Bangladesh e Marrocos a Alemanha e Emirados Árabes.
Haverá desafios -é possível que empregos sejam perdidos inicialmente no setor da pesca, para que os estoques de pescado superexplorados possam ser restaurados.
Mas, de modo global, uma economia verde gera mais empregos do que os que são perdidos nos velhos setores "marrons".
A conferência Rio+20 representa uma oportunidade de intensificar e de acelerar esses "brotos verdes".
Alguns países estão preocupados com tarifas verdes ou barreiras comerciais. Esses são riscos que precisam ser enfrentados, mas que também são inerentes aos modelos econômicos existentes em um mundo em que os países competem em um mercado global.
Vivemos em uma época de desafios múltiplos -muitos dos quais a ciência vem confirmando que são ainda mais palpáveis, reais e urgentes do que eram em 1992, incluindo as mudanças climáticas, a perda da biodiversidade e a degradação dos solos. Mas também vivemos em um mundo de oportunidades inéditas para uma mudança fundamental em relação aos caminhos econômicos, sociais e ambientais do passado.
A Rio+20 poderá ser apenas uma data a mais no calendário. Mas também poderá marcar um ponto de virada nos assuntos globais, um momento em que a promessa de emprego, igualdade e estabilidade ambiental feita 20 anos antes seja transformada de ideal em realidade para cerca de 7 bilhões de pessoas.
Tradução de CLARA ALLAIN.
ACHIM STEINER é subsecretário-geral da ONU e diretor-executivo do Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
Opção pelo emergente (José de Souza Martins)
Sugestão de Lula ao PT de atrair a nova classe média, como fez FHC ao PSDB, traz à tona a diferença entre povo e povão
Aécio Neves pisou na bola do PSDB, desperdiçando numa contravenção de trânsito o suposto capital político acumulado em cima do muro na recente campanha presidencial. Penalizou o partido inteiro no ato de difícil explicação, porque tocou diretamente nos sentimentos da maioria, que se ressente quando em face de atos dos que se acham mais iguais e acima das obrigações da lei e dos bons costumes. O mais inocente dos políticos dificilmente se recupera, na escala necessária, de deslizes como esse. Não foi melhor para o PSDB a debandada dos vereadores paulistanos que o deixaram nestes dias. Em princípio, não parece nada, dada a pouca relevância que o mandato municipal, seja do PSDB, seja do PT, tem tido numa conjuntura política dominada por concepções do grande poder. Os vereadores escaparam para o terreno mais seguro, que lhes é próprio, o do pequeno poder local na lógica de província.
A linha ideológica do PT de governo, oposta à do que foi o PT de oposição, vem se revelando gradativamente. Nessa semana, ganhou uma confirmação na posição de Lula, em reunião fechada de seu partido, de que o PT deve buscar alianças à direita, entre os órfãos do malufismo e do quercismo, e deve tentar atrair a "nova classe média". Uma confirmação de que Fernando Henrique Cardoso, em seu artigo sobre O Papel da Oposição, da semana anterior, acertara na mosca ao apontar um campo de possibilidades para o PSDB e, portanto, o calcanhar de aquiles do PT.
Lula repõe, assim, na agenda do País, o denso texto de FHC e as ponderações ali contidas, no sentido de que o PSDB deixe de lado a meta de disputar com o PT influência sobre os movimentos sociais, ou o povão. E se dedique à compreensão da nova classe média, a do Brasil que está mudando, e ao diálogo com ela, suas ideias e suas demandas. Na verdade, o artigo do ex-presidente vai muito além da crítica à ação política de conquista do chamado "povão". Até porque, fica ali claro, "povão" é uma concepção depreciativa da categoria política "povo". Que Lula não tenha compreendido a distinção subjacente às duas palavras de sentido oposto já é munição para o PSDB enfrentá-lo e enfrentar o PT. "Povo" é categoria relativa ao cidadão, ao sujeito democrático de direito, enquanto "povão", no subjacente populismo manipulador, é categoria antagônica ao cidadão, porque massa de manobra da demagogia de palanque. É justamente no território dessa diferença que incide, mais do que a opinião de FHC no texto mencionado, a doutrina política que ele encerra e a teoria política que contém.
O documento sublinha a centralidade que a vida cotidiana vem crescentemente tendo na política contemporânea e a reformulação do fazer política que ela implica. O terreno da prosperidade ideológica do PT tem sido justamente o do cotidiano e suas carências, cuja rentabilidade eleitoral foi multiplicada pelo acesso ao poder e aos recursos extensamente utilizados para atrelar a sociedade ao Estado e ao partido. Para isso, o PT no governo teve que abdicar progressivamente dos valores de referência que lhe haviam aberto e aplainado o caminho do poder. A diferença na proposição de FHC é que destaca a importância de incorporar o cotidiano, suas necessidades sociais e sua consciência social peculiar, a valores, fazer a articulação que remeta à dimensão histórica do projeto político, isto é, a dimensão transformadora. Portanto, uma trajetória oposta à do PT. Enquanto o PT abre mão dos valores contidos no marco propriamente histórico de sua ascensão política, o PSDB deveria situar sua ação política no marco do que é histórico e dos valores, do que é historicamente possível e necessário, do próprio ponto de vista da consciência popular. O partido como ponte entre a crua realidade das carências do dia a dia e os valores supracotidianos que dão sentido aos anseios sociais de mudança.
Enquanto o PT se deixa puxar para baixo nas concessões sem alcance histórico da consciência popular, FHC propõe que o PSDB puxe o povo para cima, para o elenco dos valores que afirmam a realidade e a possibilidade da mudança social e política. Nessa perspectiva, o cotidiano de referência do PT é o cotidiano da mera reprodução social, o da mera repetição, o das carências mínimas da sociedade. Enquanto o que FHC propõe ao PSDB é administrar a tensão histórica entre a repetição e a transformação, entre a permanência e a mudança, superando as carências mínimas em favor das possibilidades máximas do momento histórico. Pode-se dizer que enquanto a orientação do PT no poder se configurou como esquerdista, isto é, ritual e ideológica, a que desafia o PSDB é a propriamente social-democrática, isto é de esquerda, histórica e transformadora na circunstância atual.
No artigo de Cardoso, há um retorno à dialética, ou melhor, à sua explicitação, numa proposta de ruptura, e superação, com as tendências do repetitivo na política brasileira. A questão é saber se o PSDB tem condições de superar suas divisões para superar-se.
É professor emérito da USP, é autor de “A sociabilidade do homem simples” (CONTEXTO)
FONTE: ALIÁS/ O ESTADO DE S. PAULO
Aécio Neves pisou na bola do PSDB, desperdiçando numa contravenção de trânsito o suposto capital político acumulado em cima do muro na recente campanha presidencial. Penalizou o partido inteiro no ato de difícil explicação, porque tocou diretamente nos sentimentos da maioria, que se ressente quando em face de atos dos que se acham mais iguais e acima das obrigações da lei e dos bons costumes. O mais inocente dos políticos dificilmente se recupera, na escala necessária, de deslizes como esse. Não foi melhor para o PSDB a debandada dos vereadores paulistanos que o deixaram nestes dias. Em princípio, não parece nada, dada a pouca relevância que o mandato municipal, seja do PSDB, seja do PT, tem tido numa conjuntura política dominada por concepções do grande poder. Os vereadores escaparam para o terreno mais seguro, que lhes é próprio, o do pequeno poder local na lógica de província.
A linha ideológica do PT de governo, oposta à do que foi o PT de oposição, vem se revelando gradativamente. Nessa semana, ganhou uma confirmação na posição de Lula, em reunião fechada de seu partido, de que o PT deve buscar alianças à direita, entre os órfãos do malufismo e do quercismo, e deve tentar atrair a "nova classe média". Uma confirmação de que Fernando Henrique Cardoso, em seu artigo sobre O Papel da Oposição, da semana anterior, acertara na mosca ao apontar um campo de possibilidades para o PSDB e, portanto, o calcanhar de aquiles do PT.
Lula repõe, assim, na agenda do País, o denso texto de FHC e as ponderações ali contidas, no sentido de que o PSDB deixe de lado a meta de disputar com o PT influência sobre os movimentos sociais, ou o povão. E se dedique à compreensão da nova classe média, a do Brasil que está mudando, e ao diálogo com ela, suas ideias e suas demandas. Na verdade, o artigo do ex-presidente vai muito além da crítica à ação política de conquista do chamado "povão". Até porque, fica ali claro, "povão" é uma concepção depreciativa da categoria política "povo". Que Lula não tenha compreendido a distinção subjacente às duas palavras de sentido oposto já é munição para o PSDB enfrentá-lo e enfrentar o PT. "Povo" é categoria relativa ao cidadão, ao sujeito democrático de direito, enquanto "povão", no subjacente populismo manipulador, é categoria antagônica ao cidadão, porque massa de manobra da demagogia de palanque. É justamente no território dessa diferença que incide, mais do que a opinião de FHC no texto mencionado, a doutrina política que ele encerra e a teoria política que contém.
O documento sublinha a centralidade que a vida cotidiana vem crescentemente tendo na política contemporânea e a reformulação do fazer política que ela implica. O terreno da prosperidade ideológica do PT tem sido justamente o do cotidiano e suas carências, cuja rentabilidade eleitoral foi multiplicada pelo acesso ao poder e aos recursos extensamente utilizados para atrelar a sociedade ao Estado e ao partido. Para isso, o PT no governo teve que abdicar progressivamente dos valores de referência que lhe haviam aberto e aplainado o caminho do poder. A diferença na proposição de FHC é que destaca a importância de incorporar o cotidiano, suas necessidades sociais e sua consciência social peculiar, a valores, fazer a articulação que remeta à dimensão histórica do projeto político, isto é, a dimensão transformadora. Portanto, uma trajetória oposta à do PT. Enquanto o PT abre mão dos valores contidos no marco propriamente histórico de sua ascensão política, o PSDB deveria situar sua ação política no marco do que é histórico e dos valores, do que é historicamente possível e necessário, do próprio ponto de vista da consciência popular. O partido como ponte entre a crua realidade das carências do dia a dia e os valores supracotidianos que dão sentido aos anseios sociais de mudança.
Enquanto o PT se deixa puxar para baixo nas concessões sem alcance histórico da consciência popular, FHC propõe que o PSDB puxe o povo para cima, para o elenco dos valores que afirmam a realidade e a possibilidade da mudança social e política. Nessa perspectiva, o cotidiano de referência do PT é o cotidiano da mera reprodução social, o da mera repetição, o das carências mínimas da sociedade. Enquanto o que FHC propõe ao PSDB é administrar a tensão histórica entre a repetição e a transformação, entre a permanência e a mudança, superando as carências mínimas em favor das possibilidades máximas do momento histórico. Pode-se dizer que enquanto a orientação do PT no poder se configurou como esquerdista, isto é, ritual e ideológica, a que desafia o PSDB é a propriamente social-democrática, isto é de esquerda, histórica e transformadora na circunstância atual.
No artigo de Cardoso, há um retorno à dialética, ou melhor, à sua explicitação, numa proposta de ruptura, e superação, com as tendências do repetitivo na política brasileira. A questão é saber se o PSDB tem condições de superar suas divisões para superar-se.
É professor emérito da USP, é autor de “A sociabilidade do homem simples” (CONTEXTO)
FONTE: ALIÁS/ O ESTADO DE S. PAULO
Só para mulheres ( Debora Diniz)
O sujeito de direito sob proteção da Lei Maria da Penha é a mulher, diz autora, discordando da abrangência para homossexuais homens
A Lei Maria da Penha é clara: protege mulheres em situação de violência familiar e doméstica. Não há ambiguidade em seus conceitos - os agressores são homens e as ofendidas são mulheres. Há uma única exceção ao sexo dos agressores, um parágrafo revolucionário para a moral heterossexista brasileira em que se lê: "As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual". Ou seja, as ofendidas são sempre mulheres, embora possa haver agressoras, em casos de relações homossexuais entre duas mulheres. A abertura da lei é ainda mais direta ao enunciar seus objetivos, criar "mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher". A lei descreve e especifica esses novos dispositivos de proteção à mulher - uma rede robusta entre polícia, saúde, Justiça e assistência que permitirá às mulheres enfrentar diferentes regimes de violência familiar e doméstica.
Há quem considere que a Lei Maria da Penha ofenda a isonomia constitucional entre homens e mulheres. O princípio constitucional de não discriminação entre os sexos seria o fundamento de uma leitura ampliada da lei, garantindo aos homens os mesmos dispositivos de proteção oferecidos às mulheres. A conclusão, segundo alguns juízes, é que somente uma lei neutra em gênero seria correta para nosso ordenamento jurídico. Por isso, homens ofendidos em relações heterossexuais ou homossexuais deveriam também ser incluídos na proteção da lei. Em vez de falar em ofendidas e agressores, a Lei Maria da Penha teria que ignorar sua gênese histórica e política como ação afirmativa de proteção às mulheres e sair à procura de uma linguagem universal em gênero para proteger milhares de mulheres e uns poucos homens que sofrem violência doméstica e familiar. Tais juízes esquecem que nosso ordenamento jurídico é patriarcal em sua gênese, neutro em sua linguagem e universal em sua potência. A Lei Maria da Penha é uma exceção.
Essa interpretação universalista e sem sexo é injusta para as mulheres. Ela modifica o espírito da lei - de um documento para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, passa a ser uma peça para coibi-la contra qualquer pessoa. A neutralidade sexual da vítima negligencia o fenômeno sociológico persistente de violência contra a mulher e enfraquece o espírito da lei de promoção da igualdade sexual. A lei não confunde violência contra a mulher com violência de gênero: o sujeito de direito a ser protegido é claro e resiste a hermenêuticas mais criativas que comparariam os fora da lei heterossexista, isto é, homens homossexuais, às mulheres. A personagem vulnerável, sem qualquer ruído pós-moderno sobre como defini-la, é a mulher. Os homens não foram esquecidos por nosso ordenamento jurídico e democrático. Juízes solidários aos homens ofendidos podem instituir medidas protetivas às vítimas, sem para isso precisar reclamar o princípio da isonomia entre homens e mulheres em um fenômeno marcadamente desigual na sociedade brasileira.
A Lei Maria da Penha foi idealizada para proteger as mulheres que sofrem violência na casa, na família e nas relações interpessoais. Seus agressores são maridos, namorados, pais, padrastos, uma rede de homens que as silencia para a denúncia e a fuga da relação violenta. A lei está inscrita em uma ordem patriarcal de opressão às mulheres, em que os corpos femininos são docilizados pela potência física e sexual dos homens. Para abarcar esse caráter estrutural da opressão sexual em que elas vivem, a lei tipifica cinco expressões da violência - física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, um conjunto de domínios da vida em que as mulheres se veem controladas por homens que as oprimem. Como em todos os fenômenos sociológicos, é possível que alguns homens vivam sob regime de violência, mas a lei não se refere a eles, e sim a homens agressores e mulheres ofendidas. Desconheço histórias de homens vítimas de violência que requereram medidas protetivas de casa-abrigo, transferência do trabalho, inclusão na assistência social, guarda dos filhos, profilaxia de emergência contra DSTs ou aborto legal. Essas são particularidades do corpo e da existência das mulheres previstas na lei.
O principal risco da leitura universalista e sem sexo da Lei Maria da Penha é o enfraquecimento político do fenômeno sociológico que motivou sua criação. O enquadramento da lei são os domínios da vida típicos das mulheres em um regime heterossexual de família - o cuidado com os filhos, a dependência econômica dos homens, o domicílio compartilhado com o agressor. Em nome da igualdade sexual entre homens e mulheres, não tenho dúvida de que juízes sensibilizados por homens vítimas de violência serão capazes de encontrar fundamentação jurídica em outros documentos para protegê-los da violência familiar e doméstica. Esse é um pedido de respeito e de cuidado à história de milhares de mulheres como Maria da Penha Maia Fernandes, que esperou quase 20 anos para que seu agressor fosse preso por deixá-la paraplégica. A Lei Maria da Penha rompeu com o silêncio estrutural de que a violência doméstica e familiar não era problema de Justiça - neutralizar o sexo das ofendidas é falsamente universalizar uma prática que se inscreve majoritariamente nos corpos das mulheres, ameaçando sua dignidade e sua vida.
Debora Diniz é professora da UNB e pesquisadora da ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero
FONTE: ALIÁS / O ESTADO DE S. PAULO
A Lei Maria da Penha é clara: protege mulheres em situação de violência familiar e doméstica. Não há ambiguidade em seus conceitos - os agressores são homens e as ofendidas são mulheres. Há uma única exceção ao sexo dos agressores, um parágrafo revolucionário para a moral heterossexista brasileira em que se lê: "As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual". Ou seja, as ofendidas são sempre mulheres, embora possa haver agressoras, em casos de relações homossexuais entre duas mulheres. A abertura da lei é ainda mais direta ao enunciar seus objetivos, criar "mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher". A lei descreve e especifica esses novos dispositivos de proteção à mulher - uma rede robusta entre polícia, saúde, Justiça e assistência que permitirá às mulheres enfrentar diferentes regimes de violência familiar e doméstica.
Há quem considere que a Lei Maria da Penha ofenda a isonomia constitucional entre homens e mulheres. O princípio constitucional de não discriminação entre os sexos seria o fundamento de uma leitura ampliada da lei, garantindo aos homens os mesmos dispositivos de proteção oferecidos às mulheres. A conclusão, segundo alguns juízes, é que somente uma lei neutra em gênero seria correta para nosso ordenamento jurídico. Por isso, homens ofendidos em relações heterossexuais ou homossexuais deveriam também ser incluídos na proteção da lei. Em vez de falar em ofendidas e agressores, a Lei Maria da Penha teria que ignorar sua gênese histórica e política como ação afirmativa de proteção às mulheres e sair à procura de uma linguagem universal em gênero para proteger milhares de mulheres e uns poucos homens que sofrem violência doméstica e familiar. Tais juízes esquecem que nosso ordenamento jurídico é patriarcal em sua gênese, neutro em sua linguagem e universal em sua potência. A Lei Maria da Penha é uma exceção.
Essa interpretação universalista e sem sexo é injusta para as mulheres. Ela modifica o espírito da lei - de um documento para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, passa a ser uma peça para coibi-la contra qualquer pessoa. A neutralidade sexual da vítima negligencia o fenômeno sociológico persistente de violência contra a mulher e enfraquece o espírito da lei de promoção da igualdade sexual. A lei não confunde violência contra a mulher com violência de gênero: o sujeito de direito a ser protegido é claro e resiste a hermenêuticas mais criativas que comparariam os fora da lei heterossexista, isto é, homens homossexuais, às mulheres. A personagem vulnerável, sem qualquer ruído pós-moderno sobre como defini-la, é a mulher. Os homens não foram esquecidos por nosso ordenamento jurídico e democrático. Juízes solidários aos homens ofendidos podem instituir medidas protetivas às vítimas, sem para isso precisar reclamar o princípio da isonomia entre homens e mulheres em um fenômeno marcadamente desigual na sociedade brasileira.
A Lei Maria da Penha foi idealizada para proteger as mulheres que sofrem violência na casa, na família e nas relações interpessoais. Seus agressores são maridos, namorados, pais, padrastos, uma rede de homens que as silencia para a denúncia e a fuga da relação violenta. A lei está inscrita em uma ordem patriarcal de opressão às mulheres, em que os corpos femininos são docilizados pela potência física e sexual dos homens. Para abarcar esse caráter estrutural da opressão sexual em que elas vivem, a lei tipifica cinco expressões da violência - física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, um conjunto de domínios da vida em que as mulheres se veem controladas por homens que as oprimem. Como em todos os fenômenos sociológicos, é possível que alguns homens vivam sob regime de violência, mas a lei não se refere a eles, e sim a homens agressores e mulheres ofendidas. Desconheço histórias de homens vítimas de violência que requereram medidas protetivas de casa-abrigo, transferência do trabalho, inclusão na assistência social, guarda dos filhos, profilaxia de emergência contra DSTs ou aborto legal. Essas são particularidades do corpo e da existência das mulheres previstas na lei.
O principal risco da leitura universalista e sem sexo da Lei Maria da Penha é o enfraquecimento político do fenômeno sociológico que motivou sua criação. O enquadramento da lei são os domínios da vida típicos das mulheres em um regime heterossexual de família - o cuidado com os filhos, a dependência econômica dos homens, o domicílio compartilhado com o agressor. Em nome da igualdade sexual entre homens e mulheres, não tenho dúvida de que juízes sensibilizados por homens vítimas de violência serão capazes de encontrar fundamentação jurídica em outros documentos para protegê-los da violência familiar e doméstica. Esse é um pedido de respeito e de cuidado à história de milhares de mulheres como Maria da Penha Maia Fernandes, que esperou quase 20 anos para que seu agressor fosse preso por deixá-la paraplégica. A Lei Maria da Penha rompeu com o silêncio estrutural de que a violência doméstica e familiar não era problema de Justiça - neutralizar o sexo das ofendidas é falsamente universalizar uma prática que se inscreve majoritariamente nos corpos das mulheres, ameaçando sua dignidade e sua vida.
Debora Diniz é professora da UNB e pesquisadora da ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero
FONTE: ALIÁS / O ESTADO DE S. PAULO
Marina na encruzilhada
Ivan Iunes
Depois de alcançar a expressiva marca de 19,6 milhões de votos nas eleições presidenciais do ano passado, Marina Silva enfrenta um nó político. Em rota de colisão com a atual direção do partido, a ex-senadora pelo Acre pretende percorrer até maio pelo menos quatro estados atrás de apoio para influenciar na composição do diretório nacional da legenda. Amanhã, tem encontro agendado com correligionários em Brasília para discutir a sucessão na legenda. Caso fracasse no teste de força, provavelmente ficará sem ambiente para permanecer no PV, com o destino político em aberto e a criação de um partido como horizonte mais provável. A legenda já tem até nome: Partido da Sustentabilidade (PS).
Os ruídos entre PV e Marina começaram na análise do saldo das eleições de 2010. Embora a ex-senadora tenha se saído bem nacionalmente, o partido ganhou apenas uma cadeira de deputados federal a mais do que em 2006. Ou seja, o caminhão de votos despejados nela não se refletiu nos resultados obtidos pela legenda nos estados. No campo ideológico também ha problemas. A agenda da sustentabilidade foi defendida com sucesso. Mas outros pontos como a união homoafetiva e a liberalização das drogas, antigas bandeiras verdes, foram completamente abandonadas pela campanha de Marina — e também não fazem parte do que ela chama de refundação da legenda. Ainda, se ganhou envergadura nacionalmente, a candidata viu desidratar o capital político no próprio estado, o Acre, onde ficou apenas em terceiro lugar com 23,4% dos votos.
Sem mandato e dedicada à reformulação do partido pelo grupo Movimento Transição Democrática do PV, Marina tem agora como teste de força a substituição do atual presidente do PV, o deputado federal José Penna (SP), que dirige o partido desde 1999. A data para o esperado racha é julho, quando ocorre a convenção nacional verde. A ala do partido ligada à ex-senadora acusa a atual direção de não querer incluir a agenda verde de campanha da ex-senadora ao programa partidário. Quer emplacar no comando da legenda o secretário de Meio Ambiente de Pernambuco, Sérgio Xavier. “Há um grupo que acha que deve prorrogar seus mandatos, que não vê urgência por mudanças. Mas precisamos exercitar a nova forma de fazer política e dar à militância a possibilidade de escolher os dirigentes”, queixa-se Marina.
O atual comando da legenda rebate as críticas e diz que aceita discutir a reivindicação, desde que outras agendas, como a união homoafetiva e a política de liberalização das drogas, façam parte do pacote. “O que existe é uma briga por espaço e poder. Não é interesse da Marina fazer algumas discussões programáticas porque há pontos de divergência entre nossas agendas históricas e os posicionamentos dela”, diz um membro da executiva nacional do partido.
Os passos pós-eleições de Marina se assemelham ao da também ex-senadora e dissidente petista Heloísa Helena. Depois de conquistar o terceiro lugar nas eleições de 2006, a política alagoana se voltou para a organização do Psol. Elegeu-se vereadora por Alagoas, mas teve o capital político no estado corroído. Perdeu o pleito para o Senado no ano passado para Benedito Lira (PP-AL) e Renan Calheiros (PMDB-AL). Aparentemente maior depois das eleições de 2006, ela acabou desidratada longe de Brasília e sem o controle do partido, como acreditava dispor.
"Há um grupo que não vê urgência por mudanças. Mas precisamos exercitar a nova forma de fazer política ”
(Marina Silva, ex-senadora)
FONTE: CORREIO BRAZILIENSE
Depois de alcançar a expressiva marca de 19,6 milhões de votos nas eleições presidenciais do ano passado, Marina Silva enfrenta um nó político. Em rota de colisão com a atual direção do partido, a ex-senadora pelo Acre pretende percorrer até maio pelo menos quatro estados atrás de apoio para influenciar na composição do diretório nacional da legenda. Amanhã, tem encontro agendado com correligionários em Brasília para discutir a sucessão na legenda. Caso fracasse no teste de força, provavelmente ficará sem ambiente para permanecer no PV, com o destino político em aberto e a criação de um partido como horizonte mais provável. A legenda já tem até nome: Partido da Sustentabilidade (PS).
Os ruídos entre PV e Marina começaram na análise do saldo das eleições de 2010. Embora a ex-senadora tenha se saído bem nacionalmente, o partido ganhou apenas uma cadeira de deputados federal a mais do que em 2006. Ou seja, o caminhão de votos despejados nela não se refletiu nos resultados obtidos pela legenda nos estados. No campo ideológico também ha problemas. A agenda da sustentabilidade foi defendida com sucesso. Mas outros pontos como a união homoafetiva e a liberalização das drogas, antigas bandeiras verdes, foram completamente abandonadas pela campanha de Marina — e também não fazem parte do que ela chama de refundação da legenda. Ainda, se ganhou envergadura nacionalmente, a candidata viu desidratar o capital político no próprio estado, o Acre, onde ficou apenas em terceiro lugar com 23,4% dos votos.
Sem mandato e dedicada à reformulação do partido pelo grupo Movimento Transição Democrática do PV, Marina tem agora como teste de força a substituição do atual presidente do PV, o deputado federal José Penna (SP), que dirige o partido desde 1999. A data para o esperado racha é julho, quando ocorre a convenção nacional verde. A ala do partido ligada à ex-senadora acusa a atual direção de não querer incluir a agenda verde de campanha da ex-senadora ao programa partidário. Quer emplacar no comando da legenda o secretário de Meio Ambiente de Pernambuco, Sérgio Xavier. “Há um grupo que acha que deve prorrogar seus mandatos, que não vê urgência por mudanças. Mas precisamos exercitar a nova forma de fazer política e dar à militância a possibilidade de escolher os dirigentes”, queixa-se Marina.
O atual comando da legenda rebate as críticas e diz que aceita discutir a reivindicação, desde que outras agendas, como a união homoafetiva e a política de liberalização das drogas, façam parte do pacote. “O que existe é uma briga por espaço e poder. Não é interesse da Marina fazer algumas discussões programáticas porque há pontos de divergência entre nossas agendas históricas e os posicionamentos dela”, diz um membro da executiva nacional do partido.
Os passos pós-eleições de Marina se assemelham ao da também ex-senadora e dissidente petista Heloísa Helena. Depois de conquistar o terceiro lugar nas eleições de 2006, a política alagoana se voltou para a organização do Psol. Elegeu-se vereadora por Alagoas, mas teve o capital político no estado corroído. Perdeu o pleito para o Senado no ano passado para Benedito Lira (PP-AL) e Renan Calheiros (PMDB-AL). Aparentemente maior depois das eleições de 2006, ela acabou desidratada longe de Brasília e sem o controle do partido, como acreditava dispor.
"Há um grupo que não vê urgência por mudanças. Mas precisamos exercitar a nova forma de fazer política ”
(Marina Silva, ex-senadora)
FONTE: CORREIO BRAZILIENSE
sábado, 23 de abril de 2011
Três propostas eleitorais (Cesar Maia)
Pessoal
Estou postando esse artigo de Cesar Maia porque acho sua abordagem da compra de votos extremamente pertinente e sintomaticamente não abordada quando se discute a reforma política (Roberto Beling)
Segue o debate, e o impasse, sobre a reforma eleitoral.
Seria melhor deter-se sobre o processo eleitoral em si, fazendo uma análise comparada com os demais países.
Três questões se destacam.
A primeira questão é sobre o debate na televisão. Em nenhum país, e em especial nas democracias maduras, o debate pode ser feito na semana da eleição -menos ainda na antevéspera.
Nos EUA e na Europa, o último debate ocorre duas semanas antes. Vários estudos nos EUA mostram que o impacto da coreografia dos debates na TV se dilui em até quatro dias.
O debate deve aprofundar as questões políticas, e não se propor a pegadinhas, a gracinhas e a agressões, ou a dar vantagens aos televisivos.
Com um prazo maior, efeitos desse tipo se diluem e o eleitor volta a decidir sobre as questões da campanha.
A segunda é sobre as pesquisas. Alguns países exigem currículo dos institutos, evitando que criações pré-eleitorais divulguem seus resultados. A grande imprensa faz sua seleção, mas não é geral. E publicidade paga não se nega.
Outro aspecto é o prazo limite de publicação de pesquisas. Alguns países exageram estabelecendo limites amplos.
Mas -por outro lado- a divulgação na véspera e no dia da eleição, é um exagero, sempre reforçado pelas manchetes.
A terceira questão é a mais grave de todas. A compra de votos, a cada ano, se torna mais escandalosa no Brasil. É feita por meio de um eufemismo: "cabos eleitorais".
Milhares são contratados por 90 dias, depois por mais 60 dias, por mais 30 dias e finalmente exponenciados nos últimos três dias.
A legislação, ingenuamente, proíbe a boca de urna, mas permite as bandeiras e outras alegorias até no domingo.
Em 2010, levantamentos em diversos locais do Rio confirmaram que os pagamentos são feitos de forma ascendente, desde três meses antes, até os últimos três dias, quando valem 20% do salário mínimo ou mais. E que 90% dos "cabos eleitorais" vão votar no candidato que os contrata.
Um candidato a deputado bem patrocinado, põe nos últimos três dias 40 mil "cabos eleitorais" pelo Estado. Estima-se que o gasto oculto com "cabos eleitorais" seja maior que todos os gastos de campanha declarados, dos majoritários e dos proporcionais.
Em vários países, aplica-se a lei do silencio a partir da sexta-feira anterior à eleição, no domingo. Isso vale para todo tipo de manifestação, sejam panfletos, colinhas, bandeiras ou carros de som.
Esses três dias são chamados de dias de reflexão, para que o eleitor, depois de ter recebido todas as informações e impulsos na campanha, possa tomar a sua decisão sem pressões e sem dinheiro. Corrigir essas três questões vale uma reforma eleitoral. E é questão apenas de vontade.
Estou postando esse artigo de Cesar Maia porque acho sua abordagem da compra de votos extremamente pertinente e sintomaticamente não abordada quando se discute a reforma política (Roberto Beling)
Segue o debate, e o impasse, sobre a reforma eleitoral.
Seria melhor deter-se sobre o processo eleitoral em si, fazendo uma análise comparada com os demais países.
Três questões se destacam.
A primeira questão é sobre o debate na televisão. Em nenhum país, e em especial nas democracias maduras, o debate pode ser feito na semana da eleição -menos ainda na antevéspera.
Nos EUA e na Europa, o último debate ocorre duas semanas antes. Vários estudos nos EUA mostram que o impacto da coreografia dos debates na TV se dilui em até quatro dias.
O debate deve aprofundar as questões políticas, e não se propor a pegadinhas, a gracinhas e a agressões, ou a dar vantagens aos televisivos.
Com um prazo maior, efeitos desse tipo se diluem e o eleitor volta a decidir sobre as questões da campanha.
A segunda é sobre as pesquisas. Alguns países exigem currículo dos institutos, evitando que criações pré-eleitorais divulguem seus resultados. A grande imprensa faz sua seleção, mas não é geral. E publicidade paga não se nega.
Outro aspecto é o prazo limite de publicação de pesquisas. Alguns países exageram estabelecendo limites amplos.
Mas -por outro lado- a divulgação na véspera e no dia da eleição, é um exagero, sempre reforçado pelas manchetes.
A terceira questão é a mais grave de todas. A compra de votos, a cada ano, se torna mais escandalosa no Brasil. É feita por meio de um eufemismo: "cabos eleitorais".
Milhares são contratados por 90 dias, depois por mais 60 dias, por mais 30 dias e finalmente exponenciados nos últimos três dias.
A legislação, ingenuamente, proíbe a boca de urna, mas permite as bandeiras e outras alegorias até no domingo.
Em 2010, levantamentos em diversos locais do Rio confirmaram que os pagamentos são feitos de forma ascendente, desde três meses antes, até os últimos três dias, quando valem 20% do salário mínimo ou mais. E que 90% dos "cabos eleitorais" vão votar no candidato que os contrata.
Um candidato a deputado bem patrocinado, põe nos últimos três dias 40 mil "cabos eleitorais" pelo Estado. Estima-se que o gasto oculto com "cabos eleitorais" seja maior que todos os gastos de campanha declarados, dos majoritários e dos proporcionais.
Em vários países, aplica-se a lei do silencio a partir da sexta-feira anterior à eleição, no domingo. Isso vale para todo tipo de manifestação, sejam panfletos, colinhas, bandeiras ou carros de som.
Esses três dias são chamados de dias de reflexão, para que o eleitor, depois de ter recebido todas as informações e impulsos na campanha, possa tomar a sua decisão sem pressões e sem dinheiro. Corrigir essas três questões vale uma reforma eleitoral. E é questão apenas de vontade.
Leituras enviesadas (Marco Aurélio Nogueira)
Não houve quem não tenha lido, comentado ou tomado posição. Sinal de que havia ali algo incômodo: uma provocação eficiente, uma verdade finalmente revelada ou a confirmação cabal de algo conhecido, mas que parecia esquecido.
O artigo publicado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso na revista Interesse Nacional levantou poeira por todos os lados. Pautou o processo político, embora tenha manifestado dificuldade de obter ressonância prática, a começar no terreiro mesmo de seu partido, o PSDB.
A efervescência por ele provocada foi tão intensa que ficou difícil realçar seu núcleo argumentativo. Quem tentou fazer isso foi estigmatizado como apoiador do ex-presidente, tucano enrustido ou antipetista visceral. Alguns foram tachados de prepotentes por quererem ensinar os demais a lerem um texto simples, claro como a luz do sol, que nada mais seria que a confissão do sobejamente conhecido elitismo de FHC.
Isso porque o ex-presidente escreveu que a oposição, se quiser voltar ao centro do palco, precisa dar mais atenção às emergentes classes médias que se descolam do "povão" e parecem estar em busca de quem as represente na política nacional. Foi uma frase contundente, mas muitos leitores, em vez de a interpretarem literalmente - como uma diretriz política e eleitoral -, preferiram desconstruí-la para salientar o propalado "horror de FHC ao povo". Ejetaram o ex-presidente do campo democrático.
Foi desonesto, ainda que politicamente compreensível. Pior foi o que se seguiu. O líder petista Lula, instado a se manifestar, não perdeu a chance de soltar uma sentença que tem tanto de rusticidade quanto de malícia: "O povão é a razão de ser do Brasil". Para emendar, aproximou FHC do ditador João Figueiredo, que "preferia o cheiro de cavalos ao cheiro do povo". Tentou amenizar, observando que não conseguiu "entender o que FHC quis dizer", mas esse acesso de modéstia não diminuiu o peso da grosseria, que evidentemente repercutiu.
A discussão deixou de lado o bê-á-bá. Se um tucano, querendo vencer as próximas eleições, percebe que parte do eleitorado está sob controle do adversário, se percebe que o "povão" está com o PT, por exemplo, a atitude mais inteligente é ir atrás do restante. Essa a tese do artigo. Ao formulá-la, FHC também fez política. Autoelogiou-se, forçou a barra ao atacar a situação, não perdoou sequer seu próprio partido. Com isso atraiu a fúria dos céus. Disse que o PSDB e seus aliados falarão sozinhos se persistirem em disputar com o PT a influência sobre "as massas carentes e pouco informadas", dando margem a que se visse nisso um desprezo por elas. Acrescentou que o PT controla o "povão" porque seus governos "aparelham e cooptam com benesses e recursos", que são mais eficazes do que a palavra dos oposicionistas, permitindo que se o criticasse pela parcialidade, ou seja, por não reconhecer que os governos tucanos também se valem de benesses e cooptação quando gerenciam suas políticas públicas.
Foram frases cortantes, parciais, discutíveis, mas não propriamente falsas. Seu ponto era definir o público-alvo das oposições: todo o vasto segmento social integrado pela classe média, pelas novas classes possuidoras, pelos novos profissionais. Um segmento que, em sua visão, estaria ausente do jogo político-partidário, ainda que viva profundamente conectado nas redes sociais. Se as oposições forem ousadas e buscarem interpelá-lo, encontrarão um eixo e poderão voltar a sorrir. Delineou-se assim um ambicioso "programa" de ação: disputar a hegemonia na política, não somente o controle de recursos de poder. A mensagem deu destaque à retomada da circulação de ideias via rede de palestras, artigos e debates que "mergulhem na vida cotidiana e tenham ligações orgânicas com grupos que expressam as dificuldades e anseios do homem comum". Fixar um público e caprichar na explicitação do conteúdo da mensagem.
Acontece que o público definido pelo ex-presidente é objeto de desejo de todos os políticos: as classes médias, setor sabidamente informe e mal conhecido, cercado de desconfianças políticas e ideológicas, mas predestinado a crescer sempre mais. Inevitável que seja alvo de cobiça e atenção. Tanto que Lula, no vácuo aberto pelo artigo de FHC, não se fez de rogado e propôs aos petistas que façam concessões à direita para minar a prevalência do PSDB em São Paulo. Ir para a direita, nesse dialeto, significaria aliar-se a políticos conservadores e avançar sobre a nova classe média e os "órfãos do malufismo e do quercismo". Linguagem cifrada à parte, Lula copiou FHC.
O diálogo político com a classe média integra toda plataforma democrática e progressista. Promovê-lo não poderia significar "ir para a direita", do mesmo modo que os que estão ao lado do povo não são necessariamente de esquerda. Tanto quanto classe média, "povão" é termo genérico e impreciso. Pode significar o conjunto dos pobres, as massas carentes, os desorganizados ou mesmo aqueles que não têm uma classe definida. Qualquer posição política interessada de fato em construir uma sociedade melhor concebe esse segmento como algo a ser superado, não como objeto a ser conquistado eleitoralmente.
Entre classes, ideologias e votos não existem alinhamentos automáticos. Uma política progressista, de esquerda, que discrimine setores sociais correrá o risco de trair a própria causa, de praticar uma política "social", e não uma política de Estado voltada para a comunidade como um todo. Além do mais, a classe média é um fato da vida e cresce na medida mesma em que se mostram eficazes as políticas sociais destinadas a reduzir a pobreza. O pobre que deixa de ser pobre pode até ser agradecido ao governo que o libertou, mas estará disponível para novas aventuras políticas pelo próprio fato de ter ingressado em outro universo social.
Ao abrir essa discussão, o artigo de Fernando Henrique Cardoso lançou um repto a todos.
Professor titular de Teoria Política da UNESP.
O artigo publicado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso na revista Interesse Nacional levantou poeira por todos os lados. Pautou o processo político, embora tenha manifestado dificuldade de obter ressonância prática, a começar no terreiro mesmo de seu partido, o PSDB.
A efervescência por ele provocada foi tão intensa que ficou difícil realçar seu núcleo argumentativo. Quem tentou fazer isso foi estigmatizado como apoiador do ex-presidente, tucano enrustido ou antipetista visceral. Alguns foram tachados de prepotentes por quererem ensinar os demais a lerem um texto simples, claro como a luz do sol, que nada mais seria que a confissão do sobejamente conhecido elitismo de FHC.
Isso porque o ex-presidente escreveu que a oposição, se quiser voltar ao centro do palco, precisa dar mais atenção às emergentes classes médias que se descolam do "povão" e parecem estar em busca de quem as represente na política nacional. Foi uma frase contundente, mas muitos leitores, em vez de a interpretarem literalmente - como uma diretriz política e eleitoral -, preferiram desconstruí-la para salientar o propalado "horror de FHC ao povo". Ejetaram o ex-presidente do campo democrático.
Foi desonesto, ainda que politicamente compreensível. Pior foi o que se seguiu. O líder petista Lula, instado a se manifestar, não perdeu a chance de soltar uma sentença que tem tanto de rusticidade quanto de malícia: "O povão é a razão de ser do Brasil". Para emendar, aproximou FHC do ditador João Figueiredo, que "preferia o cheiro de cavalos ao cheiro do povo". Tentou amenizar, observando que não conseguiu "entender o que FHC quis dizer", mas esse acesso de modéstia não diminuiu o peso da grosseria, que evidentemente repercutiu.
A discussão deixou de lado o bê-á-bá. Se um tucano, querendo vencer as próximas eleições, percebe que parte do eleitorado está sob controle do adversário, se percebe que o "povão" está com o PT, por exemplo, a atitude mais inteligente é ir atrás do restante. Essa a tese do artigo. Ao formulá-la, FHC também fez política. Autoelogiou-se, forçou a barra ao atacar a situação, não perdoou sequer seu próprio partido. Com isso atraiu a fúria dos céus. Disse que o PSDB e seus aliados falarão sozinhos se persistirem em disputar com o PT a influência sobre "as massas carentes e pouco informadas", dando margem a que se visse nisso um desprezo por elas. Acrescentou que o PT controla o "povão" porque seus governos "aparelham e cooptam com benesses e recursos", que são mais eficazes do que a palavra dos oposicionistas, permitindo que se o criticasse pela parcialidade, ou seja, por não reconhecer que os governos tucanos também se valem de benesses e cooptação quando gerenciam suas políticas públicas.
Foram frases cortantes, parciais, discutíveis, mas não propriamente falsas. Seu ponto era definir o público-alvo das oposições: todo o vasto segmento social integrado pela classe média, pelas novas classes possuidoras, pelos novos profissionais. Um segmento que, em sua visão, estaria ausente do jogo político-partidário, ainda que viva profundamente conectado nas redes sociais. Se as oposições forem ousadas e buscarem interpelá-lo, encontrarão um eixo e poderão voltar a sorrir. Delineou-se assim um ambicioso "programa" de ação: disputar a hegemonia na política, não somente o controle de recursos de poder. A mensagem deu destaque à retomada da circulação de ideias via rede de palestras, artigos e debates que "mergulhem na vida cotidiana e tenham ligações orgânicas com grupos que expressam as dificuldades e anseios do homem comum". Fixar um público e caprichar na explicitação do conteúdo da mensagem.
Acontece que o público definido pelo ex-presidente é objeto de desejo de todos os políticos: as classes médias, setor sabidamente informe e mal conhecido, cercado de desconfianças políticas e ideológicas, mas predestinado a crescer sempre mais. Inevitável que seja alvo de cobiça e atenção. Tanto que Lula, no vácuo aberto pelo artigo de FHC, não se fez de rogado e propôs aos petistas que façam concessões à direita para minar a prevalência do PSDB em São Paulo. Ir para a direita, nesse dialeto, significaria aliar-se a políticos conservadores e avançar sobre a nova classe média e os "órfãos do malufismo e do quercismo". Linguagem cifrada à parte, Lula copiou FHC.
O diálogo político com a classe média integra toda plataforma democrática e progressista. Promovê-lo não poderia significar "ir para a direita", do mesmo modo que os que estão ao lado do povo não são necessariamente de esquerda. Tanto quanto classe média, "povão" é termo genérico e impreciso. Pode significar o conjunto dos pobres, as massas carentes, os desorganizados ou mesmo aqueles que não têm uma classe definida. Qualquer posição política interessada de fato em construir uma sociedade melhor concebe esse segmento como algo a ser superado, não como objeto a ser conquistado eleitoralmente.
Entre classes, ideologias e votos não existem alinhamentos automáticos. Uma política progressista, de esquerda, que discrimine setores sociais correrá o risco de trair a própria causa, de praticar uma política "social", e não uma política de Estado voltada para a comunidade como um todo. Além do mais, a classe média é um fato da vida e cresce na medida mesma em que se mostram eficazes as políticas sociais destinadas a reduzir a pobreza. O pobre que deixa de ser pobre pode até ser agradecido ao governo que o libertou, mas estará disponível para novas aventuras políticas pelo próprio fato de ter ingressado em outro universo social.
Ao abrir essa discussão, o artigo de Fernando Henrique Cardoso lançou um repto a todos.
Professor titular de Teoria Política da UNESP.
O mestre e o exílio do pai da semana (Pedro Meira Monteiro )
Ainda que não possuam o viço da correspondência com Bandeira, ou mesmo com Drummond, as cartas que Mário de Andrade trocou com Sérgio Buarque de Holanda, entre 1922 e 1944, formam um conjunto precioso, que virá a público em 2012, em edição conjunta da Companhia das Letras e da Editora da Universidade de São Paulo, por meio do Instituto de Estudos Brasileiros.
Devidamente anotadas e apresentadas, as cartas podem sugerir as linhas de força de um debate que ocupou intelectuais e artistas, desde os primeiros ventos do modernismo, com a revista Klaxon e a Semana de Arte Moderna, até bem entrado o Estado Novo.
Tempos tormentosos, quando muitos de nossos valores contemporâneos sobre o indivíduo, sua inviolabilidade e sacralidade, encontravam-se em suspenso, ameaçados e testados por todos os lados. A tensão entre o individual e o coletivo era de tal monta que hoje talvez nos seja impossível precisá-la, embora as cartas dos dois amigos nos permitam senti-la.
Lê-las é adivinhar a profundidade que se oculta em pequenas sentenças, como no caso da última linha dirigida por Mário a Sérgio, em dezembro de 1944, quando o poeta já havia retornado de seu "exílio" no Rio, e resumia um estado de alma que, de certa forma, o acompanharia até à morte: "Um bom ano de 1945 pra você, Maria Amélia, filhotes e esta nossa triste humanidade".
A correspondência ajudará a entender melhor o momento em que, decepcionado com os desdobramentos do modernismo, Sérgio Buarque manda ao diabo as convenções e as alianças, mas promete ao amigo um artigo sobre sua obra. Mário intuía que somente Sérgio seria capaz de escrever algo que "prestasse" sobre si. Há um quebra-cabeça complexo por trás dessa promessa nunca cumprida. Em carta de abril de 1928, Mário se abre, escrevendo a Sérgio que "a promessa do artigo é ouro para mim". Aí reponta a primeira peça: "Tenho esperança de alguma coisa que me interesse de verdade porque, repara, com exceção dumas poucas coisas, ditas pelo Tristão, ninguém até agora, não percebeu direito em mim coisa que me interessasse ?nem é artigo publiquento e publicável que espero. Basta carta, ali, uma carta que me falasse coisas mais subtis (ergo: mais profundas) sobre este vulcão de complicações que eu sou! Jamais não consegui saber o que eu sou. Mas ponha reparo nos que escrevem sobre mim: sou fácil como água para eles, questão fácil de resolver, dois mais dois. Tenho esperança em você que soube falar sobre Hardy e inda milhor de vez em quando inventa coisas."
Selecionando as peças sobre a mesa, uma montagem crítica permite supor que o obituário de Thomas Hardy, que Sérgio escrevera para o Diário Nacional naquele mesmo ano, conteria as chaves para a compreensão da obra de Mário. Segundo o jovem articulista, àquela altura com 26 anos de idade, o escritor inglês sempre carregara "qualquer coisa de desmedido", um "sentimento convulsivo dos temas essenciais de nossa existência". Debatendo-se entre os escombros da sociedade vitoriana, Hardy estaria entre aqueles que "se rebelam contra as forças ordenadoras que dirigiram sempre a sabedoria e a segurança dos homens na Terra e resistem energicamente a qualquer tentativa de expressão social". E remata: "Seria mesmo bastante estranho que se procurasse prolongar essa experiência individual em um sistema coerente de ideias".
Para bom leitor, poucas palavras bastam. Aí estão, quase literalmente, expressões de artigos anteriores de Sérgio, mas aí estão, também, as linhas mestras da crítica ao autoritarismo que floresceria, anos depois, em Raízes do Brasil. O conflito entre a "expressão" e a "ordenação" expõe, no centro do debate político, o indivíduo ameaçado por forças que o transcendem. Daí a importância, no ensaio clássico de Sérgio Buarque, da crítica à recuperação anacrônica da Escolástica pelo pensamento conservador, que nos anos 30 viria a alimentar um veio católico de direita.
O dado é relevante não apenas para a compreensão da obra de Sérgio Buarque. A imaginação de Mário de Andrade também se vê jogada entre os extremos da "ordem" final, que se busca e nunca atinge, e da "desordem", que aponta para o fulcro criador e irredutivelmente individual da arte. Muito antes que Mário sistematizasse a condição dilacerada do artista em O Banquete, ou antes que imaginasse o cantador do povo a sacrificar exemplarmente a própria individualidade, é Macunaíma, para todos os efeitos, o lugar onde se encontrarão respostas para muitas das questões que as cartas dissimulam em sua brevidade e aparente leveza.
A irresolução dilacerante de Macunaíma não é bem a oscilação entre o destino final da coletividade, que o herói recusa, e os desvios criativos do indivíduo que se refestela no prazer do instante? Não está aí, figurada e desenvolvida em estrutura contrapontística, a questão do inacabamento e da miséria deste mundo, habitado por aquela "pobre humanidade"? Mundo desesperadamente precário, sempre que o tomemos como a cópia imperfeita de um outro mundo.
Conjunto pequeno, as cartas dos dois autores não chegam a explicar suas obras. Mas elas nos obrigam a revisitá-las, permitindo elaborar novas questões sobre a tensão entre a ordem, de um lado, e a desordem, de outro. Tensão esta que, estando na base do pensamento de ambos, dá origem a uma ilustre linhagem do pensamento no Brasil, que seguirá encantado, século 20 adentro, com uma dialética muito nossa conhecida, familiar a todos aqueles que nos sentimos jogados entre a dor da ordenação e a delícia da desordem.
PEDRO MEIRA MONTEIRO É PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NA PRINCETON UNIVERSITY, AUTOR DE UM MORALISTA NOS TRÓPICOS (BOITEMPO EDITORIAL). ATUALMENTE PREPARA A EDIÇÃO DA CORRESPONDÊNCIA ENTRE MÁRIO DE ANDRADE E SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA
Fonte: O Estado de São Paulo
Devidamente anotadas e apresentadas, as cartas podem sugerir as linhas de força de um debate que ocupou intelectuais e artistas, desde os primeiros ventos do modernismo, com a revista Klaxon e a Semana de Arte Moderna, até bem entrado o Estado Novo.
Tempos tormentosos, quando muitos de nossos valores contemporâneos sobre o indivíduo, sua inviolabilidade e sacralidade, encontravam-se em suspenso, ameaçados e testados por todos os lados. A tensão entre o individual e o coletivo era de tal monta que hoje talvez nos seja impossível precisá-la, embora as cartas dos dois amigos nos permitam senti-la.
Lê-las é adivinhar a profundidade que se oculta em pequenas sentenças, como no caso da última linha dirigida por Mário a Sérgio, em dezembro de 1944, quando o poeta já havia retornado de seu "exílio" no Rio, e resumia um estado de alma que, de certa forma, o acompanharia até à morte: "Um bom ano de 1945 pra você, Maria Amélia, filhotes e esta nossa triste humanidade".
A correspondência ajudará a entender melhor o momento em que, decepcionado com os desdobramentos do modernismo, Sérgio Buarque manda ao diabo as convenções e as alianças, mas promete ao amigo um artigo sobre sua obra. Mário intuía que somente Sérgio seria capaz de escrever algo que "prestasse" sobre si. Há um quebra-cabeça complexo por trás dessa promessa nunca cumprida. Em carta de abril de 1928, Mário se abre, escrevendo a Sérgio que "a promessa do artigo é ouro para mim". Aí reponta a primeira peça: "Tenho esperança de alguma coisa que me interesse de verdade porque, repara, com exceção dumas poucas coisas, ditas pelo Tristão, ninguém até agora, não percebeu direito em mim coisa que me interessasse ?nem é artigo publiquento e publicável que espero. Basta carta, ali, uma carta que me falasse coisas mais subtis (ergo: mais profundas) sobre este vulcão de complicações que eu sou! Jamais não consegui saber o que eu sou. Mas ponha reparo nos que escrevem sobre mim: sou fácil como água para eles, questão fácil de resolver, dois mais dois. Tenho esperança em você que soube falar sobre Hardy e inda milhor de vez em quando inventa coisas."
Selecionando as peças sobre a mesa, uma montagem crítica permite supor que o obituário de Thomas Hardy, que Sérgio escrevera para o Diário Nacional naquele mesmo ano, conteria as chaves para a compreensão da obra de Mário. Segundo o jovem articulista, àquela altura com 26 anos de idade, o escritor inglês sempre carregara "qualquer coisa de desmedido", um "sentimento convulsivo dos temas essenciais de nossa existência". Debatendo-se entre os escombros da sociedade vitoriana, Hardy estaria entre aqueles que "se rebelam contra as forças ordenadoras que dirigiram sempre a sabedoria e a segurança dos homens na Terra e resistem energicamente a qualquer tentativa de expressão social". E remata: "Seria mesmo bastante estranho que se procurasse prolongar essa experiência individual em um sistema coerente de ideias".
Para bom leitor, poucas palavras bastam. Aí estão, quase literalmente, expressões de artigos anteriores de Sérgio, mas aí estão, também, as linhas mestras da crítica ao autoritarismo que floresceria, anos depois, em Raízes do Brasil. O conflito entre a "expressão" e a "ordenação" expõe, no centro do debate político, o indivíduo ameaçado por forças que o transcendem. Daí a importância, no ensaio clássico de Sérgio Buarque, da crítica à recuperação anacrônica da Escolástica pelo pensamento conservador, que nos anos 30 viria a alimentar um veio católico de direita.
O dado é relevante não apenas para a compreensão da obra de Sérgio Buarque. A imaginação de Mário de Andrade também se vê jogada entre os extremos da "ordem" final, que se busca e nunca atinge, e da "desordem", que aponta para o fulcro criador e irredutivelmente individual da arte. Muito antes que Mário sistematizasse a condição dilacerada do artista em O Banquete, ou antes que imaginasse o cantador do povo a sacrificar exemplarmente a própria individualidade, é Macunaíma, para todos os efeitos, o lugar onde se encontrarão respostas para muitas das questões que as cartas dissimulam em sua brevidade e aparente leveza.
A irresolução dilacerante de Macunaíma não é bem a oscilação entre o destino final da coletividade, que o herói recusa, e os desvios criativos do indivíduo que se refestela no prazer do instante? Não está aí, figurada e desenvolvida em estrutura contrapontística, a questão do inacabamento e da miséria deste mundo, habitado por aquela "pobre humanidade"? Mundo desesperadamente precário, sempre que o tomemos como a cópia imperfeita de um outro mundo.
Conjunto pequeno, as cartas dos dois autores não chegam a explicar suas obras. Mas elas nos obrigam a revisitá-las, permitindo elaborar novas questões sobre a tensão entre a ordem, de um lado, e a desordem, de outro. Tensão esta que, estando na base do pensamento de ambos, dá origem a uma ilustre linhagem do pensamento no Brasil, que seguirá encantado, século 20 adentro, com uma dialética muito nossa conhecida, familiar a todos aqueles que nos sentimos jogados entre a dor da ordenação e a delícia da desordem.
PEDRO MEIRA MONTEIRO É PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NA PRINCETON UNIVERSITY, AUTOR DE UM MORALISTA NOS TRÓPICOS (BOITEMPO EDITORIAL). ATUALMENTE PREPARA A EDIÇÃO DA CORRESPONDÊNCIA ENTRE MÁRIO DE ANDRADE E SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA
Fonte: O Estado de São Paulo
O modernista que corrigiu o passado (Antonio Gonçalves Filho)
Debate sobre o legado do historiador Sérgio Buarque de Holanda, realizado pelo Sabático e Editora Unesp, prova que suas teorias sobre cultura podem ainda render novas discussões a respeito da formação do caráter brasileiro
Foi um pesquisador americano que observou numa conversa com o historiador paulistano Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982): o mal dos scholars brasileiros é que são, na sua quase totalidade, incompletos. Quando é profusa a documentação de sua obra, sua imaginação é nula. Quando é criativo, sua imaginação "consome toda a documentação". Que imenso historiador teria o Brasil no dia em que pudesse associar os dois num cruzamento, concluiu o americano. Talvez ele não tivesse percebido, mas estava diante do próprio modelo que idealizou. Setenta anos depois, Sérgio Buarque de Holanda permanece como a síntese dos dois historiadores descritos em 1941 pelo acadêmico nesse diálogo travado numa das salas da Biblioteca do Congresso, em Washington. E, acima de tudo, permanece como um modelo a ser seguido, como provou o debate realizado pelo Sabático e Editora Unesp na última segunda-feira, na Livraria Cultura do Shopping Villa-Lobos, em São Paulo, a propósito do lançamento dos dois volumes de Escritos Coligidos de Sérgio Buarque de Holanda, publicados pela Unesp em associação com a Editora Fundação Perseu Abramo.
Participaram do encontro o organizador da coletânea, Marcos Costa, coordenador de cursos do Instituto de Educação Continuada de Presidente Prudente; Antonio Arnoni Prado, professor de literatura da Unicamp; Sergio Miceli, professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (Departamento de Sociologia) da USP; e o pesquisador Robert Wegner, que estudou a obra do historiador em seu livro A Conquista do Oeste: a Fronteira na Obra de Sérgio Buarque de Holanda. A mediação do debate ficou a cargo de Francisco Foot Hardman, professor titular de teoria e história literária da Unicamp, que abriu o encontro propondo uma discussão sobre a atualidade do discurso cultural de SBH.
Seu papel antecipador foi imediatamente lembrado pelo professor Marcos Costa, citando o texto Corpo e Alma do Brasil, originalmente publicado na revista carioca Espelho, em 1935, e que integra o primeiro volume de Escritos Coligidos. Nele, Sérgio Buarque de Holanda presta tributo ao acadêmico e diplomata santista Ribeiro Couto (1898-1963), inventor da teoria do "homem cordial", expressão à qual o historiador deu fundamento sociológico, segundo Antonio Candido. O termo foi usado pela primeira vez numa carta enviada por Couto ao embaixador mexicano Alfonso Reyes, em 7 de março de 1931. Buarque de Holanda diz que o poeta santista, autor de Cabocla, foi feliz ao lembrar que a grande contribuição brasileira para a civilização seria a do "homem cordial". Por causa dessa definição o historiador foi crucificado por antagonistas, que não enxergaram no homem brasileiro nem a delicadeza no trato, nem a hospitalidade que SBH viu, embora nesse mesmo texto de juventude o historiador observe que nossa forma comum de convívio social "é, no fundo, justamente o contrário da polidez".
O professor Marcos Costa destaca nesse ensaio outra observação de SBH sobre a forma como o individual mantém sua supremacia sobre o social na cultura brasileira. O autor de Visão do Paraíso (1959) conclui que a vida em sociedade, para o homem cordial, seria "uma libertação do verdadeiro pavor que ele sente em viver consigo mesmo". Para Costa, SBH produziu uma teoria de nossa cultura, chamando a atenção justamente para o individualismo e a antipatia do brasileiro por formas ritualísticas adotadas pelos europeus. "Não podemos esquecer que Sérgio Buarque voltou da Alemanha justamente em 1930, em plena Revolução, tendo de assimilar as mudanças do Brasil sem ceder, no entanto, ao canto da sereia da política."
Diálogo. O texto em discussão, Corpo e Alma do Brasil, surge justamente um ano antes da publicação de Raízes do Brasil (1936) - e é considerado uma versão resumida do clássico livro. A convivência com outros povos e culturas, em particular a alemã, deu a SBH novos parâmetros para que o historiador percebesse os contrastes entre as duas sociedades e as diferentes formas de convívio, segundo Marcos Costa. "Deixando de lado a política, ele arrisca uma nova abordagem da história, e isso estava muito distante da análise científica da época", diz. Citando um exemplo, o professor recorre ao texto intitulado Caminhos e Fronteiras, de 1939, embrião do livro homônimo que seria publicado apenas em 1957. Tanto nesse como em Monções (1945), Costa destaca a forma como SBH elege personagens secundários, na contramão da história oficial, propondo um diálogo com a sociologia e a antropologia inspirado no pensamento do sociólogo alemão Georg Simmel (1858-1918). "Se ele tivesse produzido sua obra na França, certamente seria uma referência cultural mundial", finalizou, referindo-se às semelhanças entre seu trabalho e o da escola dos Annales, fundada por Lucien Febvre e Marc Bloch em 1929.
O professor Sergio Miceli, ao analisar o mesmo texto que deu origem a Raízes do Brasil, lembrou que o foco de Corpo e Alma do Brasil "não são as construções econômicas nem as injunções políticas, mas a barafunda doutrinária em que o País afunda na época" - o historiador, nesse texto, fala dos "intelectuais neurastênicos" e do integralismo brasileiro, afirmando que não seria difícil prever "o que poderia ser o quadro de um Brasil fascista", além de definir o País como "uma periferia sem centro". O que existe no texto, segundo Miceli, é o argumento "de que jamais teremos uma sociedade igualitária no Brasil", classificando-o como "uma tentativa de dar uma resposta ao debate doutrinário entre direita e esquerda" travado após a ascensão de Hitler. Alguns textos de juventude de SBH, segundo Miceli, são ingênuos, como o artigo originalmente publicado em 1930 na revista alemã Duco, saudando Júlio Prestes como futuro presidente da República (ele não assumiu o cargo, impedido pela Revolução). Miceli classificou ainda como "esquisito" o "fascínio" de SBH pelo livro Der Mythos des 20 Jahrhundert (O Mito do Século 20), de Alfred Rosenberg (1893-1946), teórico do nazismo. O historiador, claro, não faz coro ao conselheiro de Hitler, mas leva a sério demais o ministro do Reich nos territórios ocupados do leste europeu.
Para Robert Wegner, as transformações pelas quais passou Raízes do Brasil em suas sucessivas edições dão conta do profundo descontentamento de SBH com explicações de ordem genética ou racial, atenuando formulações como a da herança brasileira da mentalidade ibérica. "Se, em Raízes do Brasil, ele fala do homem cordial, em Monções o que interessa é o processo civilizatório do sertão", lembrou o autor de A Conquista do Oeste, definindo a passagem do primeiro para o segundo livro como um momento de revisão histórica na obra de SBH.
Esse tom revisionista está claro nos artigos publicados em 1941, em que trata tanto da ação colonizadora dos portugueses na Amazônia como da colonização alemã no sul do País. A mudança de registro coincide com sua passagem pelos EUA, justamente quando Roosevelt desenvolve sua política de boa vizinhança e o historiador desembarca no país americano a convite do Departamento do Estado. Dois anos antes ele assumira um cargo no Instituto Nacional do Livro, ligado ao Ministério da Educação.
Resistiria ainda algum traço regionalista, paulistano, num intelectual cosmopolita, urbano e moderno como SBH?, pergunta Wegner, fornecendo ele mesmo a resposta: "Em sua última entrevista, concedida a Richard Graham (professor de História da Universidade do Texas), em 1982, ao responder se o modernismo marcou, afinal, sua prosa, SBH observou que os modernistas se voltaram para o interior do País e os negros, e que ele apenas levara essa preocupação para seu trabalho como historiador, sem glorificar os bandeirantes". Para Wegner, os escritos coligidos por Marcos Costa vão justamente esclarecer a filiação filosófica e ideológica de SBH, especialmente Caminhos e Fronteiras, texto publicado em 1939 que integra o primeiro volume da coletânea - e inspirador do livro de mesmo nome (de 1957) sobre a história da ocupação territorial promovida pelos bandeirantes.
Literatura. O professor Antonio Arnoni Prado, responsável pela edição da crítica literária dispersa de Sérgio Buarque de Holanda nos dois volumes de O Espírito e a Letra (Companhia das Letras, 1996), disse, a respeito do seu papel de crítico, que SBH "foi um modernista consciente dos limites do movimento", referindo-se à participação do historiador como analista das primeiras obras produzidas pelos escritores alinhados a Mário de Andrade e Oswald de Andrade - inclusive livros do próprio Mário, como Macunaíma, mencionado num dos textos da coletânea. Consciente de que "história não é gênero literário", SBH, segundo Arnoni Prado, tratou da dimensão inventiva da palavra na crítica à História da Literatura Brasileira de Lúcia Miguel Pereira. O historiador, nesse texto de 1950, condena Ezra Pound por seu argumento de que a história da arte é a das obras-primas, não a dos malogros, referindo-se diretamente ao problema metodológico que levou a crítica mineira a inscrever Machado de Assis "numa linha evolutiva de que seria o ponto culminante" da literatura brasileira e a condenar outros bons autores como "malogros". "O que seria, então, de Lima Barreto e Graça Aranha?", perguntou Arnoni Prado, para sublinhar a pertinência da crítica de SBH ao cânone brasileiro.
Destacando a importância de Sérgio Buarque como crítico literário, Arnoni Prado citou como exemplos de valor os oito estudos da literatura brasileira da época colonial organizados pelo professor Antonio Candido (em Capítulos da Literatura Colonial, Brasiliense, 1992), especialmente o dedicado a Cláudio Manoel da Costa, em que SBH aproxima o poeta mineiro dos seiscentistas espanhóis. O mediador Francisco Foot Hardman lembrou ainda da prosa do historiador, citando o conto Viagem a Nápoles, de 1931 - seu único exercício ficcional, em que o autor "invade" a cabeça do personagem Belarmino, garoto com medo de crescer, e flana sobre São Paulo. "Ele, de fato, escreveu contos curtos no modernismo, mas sempre pensou na análise ensaística", observou Arnoni Prado, definido sua prosa como "cheia de paradoxos".
No debate, o papel de SBH como militante político, um dos fundadores do PT em 1980, não foi esquecido. Marcos Costa citou as críticas do historiador ao genocídio indígena praticado no Brasil e suas observações sobre a democracia, contidas em vários ensaios da coletânea organizada por ele, que reúne 146 textos produzidos entre 1920 e 1979. SBH fez parte de um seleto comitê internacional de especialistas organizado em 1949 pela Unesco, em Paris (sob a presidência do inglês Edward H. Carr) para examinar os diferentes significados da palavra democracia. Para ele, a pergunta vital sobre o tema é: como excluir os regimes totalitários fascistas que pretendem agir no interesse da maioria? Sua resposta: pelo humanismo. Nenhuma democracia professa a superioridade racial ou a prioridade do Estado sobre o indivíduo. Um advogado na plateia, José Roberto Militão, perguntou, então, aos debatedores como SBH se posicionou diante da questão racial, recebendo de Marcos Costa a resposta final: "Ele tratou da questão da integração das raças sem a qual não teria sucesso o processo civilizatório". O mediador Foot Hardman (que comenta a coletânea na página ao lado) concluiu que seu discurso foi justamente o de "evitar o determinismo racial" que levou países como a Alemanha ao abismo.
Fonte: O Estado de São Paulo
Foi um pesquisador americano que observou numa conversa com o historiador paulistano Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982): o mal dos scholars brasileiros é que são, na sua quase totalidade, incompletos. Quando é profusa a documentação de sua obra, sua imaginação é nula. Quando é criativo, sua imaginação "consome toda a documentação". Que imenso historiador teria o Brasil no dia em que pudesse associar os dois num cruzamento, concluiu o americano. Talvez ele não tivesse percebido, mas estava diante do próprio modelo que idealizou. Setenta anos depois, Sérgio Buarque de Holanda permanece como a síntese dos dois historiadores descritos em 1941 pelo acadêmico nesse diálogo travado numa das salas da Biblioteca do Congresso, em Washington. E, acima de tudo, permanece como um modelo a ser seguido, como provou o debate realizado pelo Sabático e Editora Unesp na última segunda-feira, na Livraria Cultura do Shopping Villa-Lobos, em São Paulo, a propósito do lançamento dos dois volumes de Escritos Coligidos de Sérgio Buarque de Holanda, publicados pela Unesp em associação com a Editora Fundação Perseu Abramo.
Participaram do encontro o organizador da coletânea, Marcos Costa, coordenador de cursos do Instituto de Educação Continuada de Presidente Prudente; Antonio Arnoni Prado, professor de literatura da Unicamp; Sergio Miceli, professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (Departamento de Sociologia) da USP; e o pesquisador Robert Wegner, que estudou a obra do historiador em seu livro A Conquista do Oeste: a Fronteira na Obra de Sérgio Buarque de Holanda. A mediação do debate ficou a cargo de Francisco Foot Hardman, professor titular de teoria e história literária da Unicamp, que abriu o encontro propondo uma discussão sobre a atualidade do discurso cultural de SBH.
Seu papel antecipador foi imediatamente lembrado pelo professor Marcos Costa, citando o texto Corpo e Alma do Brasil, originalmente publicado na revista carioca Espelho, em 1935, e que integra o primeiro volume de Escritos Coligidos. Nele, Sérgio Buarque de Holanda presta tributo ao acadêmico e diplomata santista Ribeiro Couto (1898-1963), inventor da teoria do "homem cordial", expressão à qual o historiador deu fundamento sociológico, segundo Antonio Candido. O termo foi usado pela primeira vez numa carta enviada por Couto ao embaixador mexicano Alfonso Reyes, em 7 de março de 1931. Buarque de Holanda diz que o poeta santista, autor de Cabocla, foi feliz ao lembrar que a grande contribuição brasileira para a civilização seria a do "homem cordial". Por causa dessa definição o historiador foi crucificado por antagonistas, que não enxergaram no homem brasileiro nem a delicadeza no trato, nem a hospitalidade que SBH viu, embora nesse mesmo texto de juventude o historiador observe que nossa forma comum de convívio social "é, no fundo, justamente o contrário da polidez".
O professor Marcos Costa destaca nesse ensaio outra observação de SBH sobre a forma como o individual mantém sua supremacia sobre o social na cultura brasileira. O autor de Visão do Paraíso (1959) conclui que a vida em sociedade, para o homem cordial, seria "uma libertação do verdadeiro pavor que ele sente em viver consigo mesmo". Para Costa, SBH produziu uma teoria de nossa cultura, chamando a atenção justamente para o individualismo e a antipatia do brasileiro por formas ritualísticas adotadas pelos europeus. "Não podemos esquecer que Sérgio Buarque voltou da Alemanha justamente em 1930, em plena Revolução, tendo de assimilar as mudanças do Brasil sem ceder, no entanto, ao canto da sereia da política."
Diálogo. O texto em discussão, Corpo e Alma do Brasil, surge justamente um ano antes da publicação de Raízes do Brasil (1936) - e é considerado uma versão resumida do clássico livro. A convivência com outros povos e culturas, em particular a alemã, deu a SBH novos parâmetros para que o historiador percebesse os contrastes entre as duas sociedades e as diferentes formas de convívio, segundo Marcos Costa. "Deixando de lado a política, ele arrisca uma nova abordagem da história, e isso estava muito distante da análise científica da época", diz. Citando um exemplo, o professor recorre ao texto intitulado Caminhos e Fronteiras, de 1939, embrião do livro homônimo que seria publicado apenas em 1957. Tanto nesse como em Monções (1945), Costa destaca a forma como SBH elege personagens secundários, na contramão da história oficial, propondo um diálogo com a sociologia e a antropologia inspirado no pensamento do sociólogo alemão Georg Simmel (1858-1918). "Se ele tivesse produzido sua obra na França, certamente seria uma referência cultural mundial", finalizou, referindo-se às semelhanças entre seu trabalho e o da escola dos Annales, fundada por Lucien Febvre e Marc Bloch em 1929.
O professor Sergio Miceli, ao analisar o mesmo texto que deu origem a Raízes do Brasil, lembrou que o foco de Corpo e Alma do Brasil "não são as construções econômicas nem as injunções políticas, mas a barafunda doutrinária em que o País afunda na época" - o historiador, nesse texto, fala dos "intelectuais neurastênicos" e do integralismo brasileiro, afirmando que não seria difícil prever "o que poderia ser o quadro de um Brasil fascista", além de definir o País como "uma periferia sem centro". O que existe no texto, segundo Miceli, é o argumento "de que jamais teremos uma sociedade igualitária no Brasil", classificando-o como "uma tentativa de dar uma resposta ao debate doutrinário entre direita e esquerda" travado após a ascensão de Hitler. Alguns textos de juventude de SBH, segundo Miceli, são ingênuos, como o artigo originalmente publicado em 1930 na revista alemã Duco, saudando Júlio Prestes como futuro presidente da República (ele não assumiu o cargo, impedido pela Revolução). Miceli classificou ainda como "esquisito" o "fascínio" de SBH pelo livro Der Mythos des 20 Jahrhundert (O Mito do Século 20), de Alfred Rosenberg (1893-1946), teórico do nazismo. O historiador, claro, não faz coro ao conselheiro de Hitler, mas leva a sério demais o ministro do Reich nos territórios ocupados do leste europeu.
Para Robert Wegner, as transformações pelas quais passou Raízes do Brasil em suas sucessivas edições dão conta do profundo descontentamento de SBH com explicações de ordem genética ou racial, atenuando formulações como a da herança brasileira da mentalidade ibérica. "Se, em Raízes do Brasil, ele fala do homem cordial, em Monções o que interessa é o processo civilizatório do sertão", lembrou o autor de A Conquista do Oeste, definindo a passagem do primeiro para o segundo livro como um momento de revisão histórica na obra de SBH.
Esse tom revisionista está claro nos artigos publicados em 1941, em que trata tanto da ação colonizadora dos portugueses na Amazônia como da colonização alemã no sul do País. A mudança de registro coincide com sua passagem pelos EUA, justamente quando Roosevelt desenvolve sua política de boa vizinhança e o historiador desembarca no país americano a convite do Departamento do Estado. Dois anos antes ele assumira um cargo no Instituto Nacional do Livro, ligado ao Ministério da Educação.
Resistiria ainda algum traço regionalista, paulistano, num intelectual cosmopolita, urbano e moderno como SBH?, pergunta Wegner, fornecendo ele mesmo a resposta: "Em sua última entrevista, concedida a Richard Graham (professor de História da Universidade do Texas), em 1982, ao responder se o modernismo marcou, afinal, sua prosa, SBH observou que os modernistas se voltaram para o interior do País e os negros, e que ele apenas levara essa preocupação para seu trabalho como historiador, sem glorificar os bandeirantes". Para Wegner, os escritos coligidos por Marcos Costa vão justamente esclarecer a filiação filosófica e ideológica de SBH, especialmente Caminhos e Fronteiras, texto publicado em 1939 que integra o primeiro volume da coletânea - e inspirador do livro de mesmo nome (de 1957) sobre a história da ocupação territorial promovida pelos bandeirantes.
Literatura. O professor Antonio Arnoni Prado, responsável pela edição da crítica literária dispersa de Sérgio Buarque de Holanda nos dois volumes de O Espírito e a Letra (Companhia das Letras, 1996), disse, a respeito do seu papel de crítico, que SBH "foi um modernista consciente dos limites do movimento", referindo-se à participação do historiador como analista das primeiras obras produzidas pelos escritores alinhados a Mário de Andrade e Oswald de Andrade - inclusive livros do próprio Mário, como Macunaíma, mencionado num dos textos da coletânea. Consciente de que "história não é gênero literário", SBH, segundo Arnoni Prado, tratou da dimensão inventiva da palavra na crítica à História da Literatura Brasileira de Lúcia Miguel Pereira. O historiador, nesse texto de 1950, condena Ezra Pound por seu argumento de que a história da arte é a das obras-primas, não a dos malogros, referindo-se diretamente ao problema metodológico que levou a crítica mineira a inscrever Machado de Assis "numa linha evolutiva de que seria o ponto culminante" da literatura brasileira e a condenar outros bons autores como "malogros". "O que seria, então, de Lima Barreto e Graça Aranha?", perguntou Arnoni Prado, para sublinhar a pertinência da crítica de SBH ao cânone brasileiro.
Destacando a importância de Sérgio Buarque como crítico literário, Arnoni Prado citou como exemplos de valor os oito estudos da literatura brasileira da época colonial organizados pelo professor Antonio Candido (em Capítulos da Literatura Colonial, Brasiliense, 1992), especialmente o dedicado a Cláudio Manoel da Costa, em que SBH aproxima o poeta mineiro dos seiscentistas espanhóis. O mediador Francisco Foot Hardman lembrou ainda da prosa do historiador, citando o conto Viagem a Nápoles, de 1931 - seu único exercício ficcional, em que o autor "invade" a cabeça do personagem Belarmino, garoto com medo de crescer, e flana sobre São Paulo. "Ele, de fato, escreveu contos curtos no modernismo, mas sempre pensou na análise ensaística", observou Arnoni Prado, definido sua prosa como "cheia de paradoxos".
No debate, o papel de SBH como militante político, um dos fundadores do PT em 1980, não foi esquecido. Marcos Costa citou as críticas do historiador ao genocídio indígena praticado no Brasil e suas observações sobre a democracia, contidas em vários ensaios da coletânea organizada por ele, que reúne 146 textos produzidos entre 1920 e 1979. SBH fez parte de um seleto comitê internacional de especialistas organizado em 1949 pela Unesco, em Paris (sob a presidência do inglês Edward H. Carr) para examinar os diferentes significados da palavra democracia. Para ele, a pergunta vital sobre o tema é: como excluir os regimes totalitários fascistas que pretendem agir no interesse da maioria? Sua resposta: pelo humanismo. Nenhuma democracia professa a superioridade racial ou a prioridade do Estado sobre o indivíduo. Um advogado na plateia, José Roberto Militão, perguntou, então, aos debatedores como SBH se posicionou diante da questão racial, recebendo de Marcos Costa a resposta final: "Ele tratou da questão da integração das raças sem a qual não teria sucesso o processo civilizatório". O mediador Foot Hardman (que comenta a coletânea na página ao lado) concluiu que seu discurso foi justamente o de "evitar o determinismo racial" que levou países como a Alemanha ao abismo.
Fonte: O Estado de São Paulo
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