Edição destaca pioneirismo de Braga
Ao ocupar vão entre jornalismo e literatura, capixaba é apontado como fundador da crônica moderna brasileira
Lançamento traz carta e texto inéditos, além de antologia de trechos, depoimentos, fotos e análises sobre autor
FABIO VICTOR
DE SÃO PAULO
Cigano, Seu Rubis, Lobo, Urso, Sabiá da Crônica, Príncipe da Crônica, Fazendeiro do Ar, Velho Braga.
Quietarrão que disfarçava o banzo em tantos apelidos -alguns dados por si próprio- , jornalista que elevou a crônica ao nível de grande literatura, Rubem Braga (1913-1990) volta à ribalta.
É o homenageado da nova edição dos "Cadernos de Literatura Brasileira", do Instituto Moreira Salles. A série iniciada em 1996, que alcança o 26º número, pela primeira vez se debruça sobre um cronista típico, alguém que fez da miudeza do cotidiano seu substrato e do jornal seu meio.
A deferência se justifica. Como aponta José Castello num ensaio da edição, ao se colocar simultaneamente à margem da literatura e da imprensa, perfilando-se num intervalo entre os dois, Braga "afirma a absoluta singularidade do que escreve" e "se torna o fundador da crônica moderna brasileira".
"Nossa escolha é o reconhecimento da crônica como uma forma literária autenticamente brasileira e de Rubem Braga como nosso cronista mais interessante", diz Antonio Fernando de Franceschi, diretor editorial dos "CLB". A edição do volume é de Manuel da Costa Pinto.
Em termos biográficos, a homenagem não traz novidades para quem leu "Um Cigano Fazendeiro do Ar" (Globo), a biografia de Braga escrita pelo jornalista Marco Antonio de Carvalho.
Mas há uma crônica inédita em livro (e possivelmente na mídia, segundo os editores), em que Braga detalha a criação do seu lendário terraço numa cobertura em Ipanema. E uma carta do cronista a Miguel Arraes (1916-2005), felicitando-o pela eleição ao governo de Pernambuco em 62. Marca dos "CLB", o diferencial está também no conjunto sintético sobre vida e obra do cronista, nas fotos, na antologia de frases e nas análises e depoimentos.
Nesta última seção estão textos de Danuza Leão (leia trecho ao lado), do jornalista Claudio Mello e Souza e do tradutor Boris Schnaiderman -que participou da campanha da Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra e critica a cobertura que Braga fez do conflito como enviado do "Diário Carioca".
Além do ensaio de Castello, há os de Humberto Werneck (que selecionou, com Michel Laub, trechos de crônicas) e de Sérgio Augusto. Entre os deslizes, um que decerto faria Braga resmungar: na introdução do "Caderno" ("Folha de Rosto"), há termos e expressões como "inconsútil", "do alto do seu dossel" e "restaura o labor", tão distantes de seu estilo límpido e desempolado.
Como complemento ao lançamento, o blog do IMS (blogdoims.uol.com.br) vai publicar nos próximos dias as três melhores crônicas de Braga escolhidas por um time de jornalistas e escritores. O IMS não bateu o martelo sobre o próximo homenageado dos "Cadernos", mas Franceschi dá a pista. "Vale lembrar que em 2012 teremos os 110 anos de nascimento de Drummond."
CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA - RUBEM BRAGA
EDITORA Instituto Moreira Salles
QUANTO R$ 60 (140 págs.)
RUBEM POR RUBEM
"Sou um homem do interior, tenho uma certa emoção do interior, às vezes penso que eu merecia ser goiano"
"Não sou covarde como esses equilibristas estrangeiros que passeiam sobre fios entre os edifícios. Vejo-os lá em cima, longe dos ônibus e lotações, atravessando a rua pelos ares e murmuro: eu quero ver é no chão"
"Há homens que são escritores e fazem livros que são verdadeiras casas, e ficam. Mas o cronista de jornal é como o cigano que toda noite arma sua tenda e pela manhã a desmancha, e vai"
"Não sou um homem de inventar coisas, mas de contá-las. Seria preciso talvez dar-lhes um sentido, mas não encontro nenhum. As coisas, em geral, não têm sentido algum"
"Entre um conde e um passarinho, prefiro um passarinho"
CRÔNICA INÉDITA
Terraço
"Foi Roberto Burle Marx quem desenhou o jardim do meu terraço, e tudo o que ele "receitou" pegou bem, e aguenta o sol e os ventos de sudoeste e a lestada cheia de sal do mar (...). Uma parte do jardim virou pomar, e Zanine fez a meu pedido a horta, porque eu sempre quis ter uma horta nos fundos e plantou pitangueiras e pés de romã, que são lindos, têm flores bonitas e frutos adstringentes que fazem bem à boca da gente pela manhã, e duas goiabeiras, uma vermelha e outra branca, nenhuma delas aqui dá bicho, apesar de que há muitas pragas em meu terraço (...)
A obra prima do Zanine foi uma mangueirinha carlota, enxertada, que dá uma fruta deliciosa, e boa sombra (...)
Plantei um cafeeiro, mas o ar do mar queimou muito (...)
A verdade é que o jardim reflete um pouco a gente, o meu é desarrumado como eu.
Sou um homem quieto, o que eu gosto é ficar num banco sentado, entre moitas, calado, anoitecendo devagar, meio triste, lembrando umas coisas, umas coisas que nem valia a pena lembrar."
DEPOIMENTO
Danuza Leão
"Rubem gostava de mulheres bonitas, muito bonitas, e se apaixonava por elas. A beleza para ele talvez fosse mais fundamental do que para Vinicius. Das feias, era apenas amigo. (...)
Houve um tempo em que Rubem começou a achar certa graça em mim; eu, muito garota, ele, um homem já maduro, que nunca tentou me conquistar como os homens tentam conquistar as moças.
Nunca me disse uma só palavra, mas me olhava com uma intensidade que me desconcertava. Eu, com 17, 18 anos, nem o encorajava nem o desencorajava; na minha idade, um homem que me olhava daquele jeito dava medo, não sei bem de quê; um dia viajei, desapareci, e pronto.
Quando voltei, recebi uma carta de Rubem; uma carta dura, na qual ele falava de maneira cruel do meu medo de viver. Ele tinha razão, mas não precisava me machucar tanto.
Muitos anos depois, abri um baú com velhas cartas, e lá estava ela, entre outras. Tomei coragem e rasguei todas, achando que com isso estava deixando meu passado para trás e recomeçando do zero, mas qual: certas cartas, não adianta rasgar; elas continuam sempre, vivas, em nosso coração."
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