sábado, 11 de junho de 2011

Jorge Semprún: a guerra terminou (Danubio Torres Fierro)

Tenho de começar - concedam-me a modesta licença - por uma história pessoal. Por volta de 1989, poucos meses depois de Jorge Semprún assumir o cargo de ministro da Cultura no segundo governo de Felipe González, eu o visitei em seu escritório na Praça do Rei, em Madri. A entrevista havia sido marcada por Carlos Barral, o grande editor que, à época, exercia o cargo de senador socialista e tinha como propósito (vago, é bom dizer, pois para mim interessava, mais que qualquer assunto oficial, observar o personagem em sua recente investida) pavimentar o caminho para alguns acordos bilaterais entre Espanha e Uruguai. Pois bem, nesse encontro com Semprún, logo criamos uma confiança - sem preâmbulos e até diria com uma certa urgência psicológica, ele me falou sobre três questões que considerava prioritárias.
A primeira, de caráter pessoal, era que, ao viver outra vez em Madri, depois de um longo exílio em Paris, morava precisamente defronte o edifício, na rua Afonso XI, onde havia passado sua infância e morrido sua mãe. "Veja só", comentou, "a coincidência que me aguardava, uma surpresa que me disparou a memória. Estou certo que, em algum dia, isso se converterá em literatura redentora."
A segunda questão, que o inquietava desde que assumira o cargo fazia alguns meses, era pertencer a um governo do Partido Trabalhador Socialista espanhol sem ter sido militante orgânico e sem ter acatado seus alinhamentos doutrinários ou, ao menos, sem compartilhar os princípios e as atitudes da corrente partidária maioritária, aquela de rasgos ideológicos mais recalcitrantes e populistas então defendidos pelo vice-presidente Alfonso Guerra. Por fim, em terceiro lugar, Semprún saboreava o fato de que sua tarefa dali em diante teria como objetivo absorvente, obsessivo (porque assim o acordara com Felipe González), o de contribuir para que seu país entrasse na modernidade e na razão democrática, pactuando de uma vez por toda com os caminhos traçados na Europa. "Saiba que não é fácil: na Espanha, a mentalidade está muito arraigada em hábitos e costumes do passado. Aqui, há muita gente que não quer saber dessas coisas."
Termina aqui minha intervenção pessoal. Era pertinente apresentá-la porque os três temas principais dessas confidências de Semprún (a memória pessoal que se transforma em literatura redentora, a tirania ideológica de um dogma e os hábitos arraigados) são temas que, em boa medida, marcam sua obra literária. Recordemos, por exemplo, e porque se encaixa com comodidade nesse contexto, que, em Federico Sánchez Vous Salue Bien (1993), o autor propõe, por um lado, uma vingança contra boa parte do governo socialista do qual foi ministro da Cultura entre 1989 e 1991 e, por outro, agarra-se - uma vez terminada tal desafortunada experiência - à literatura como tábua de salvação. A mola propulsora de Federico Sánchez Vous Salue Bien é a mesma que Semprún utilizou em todos seus livros, seja nos romances (A Segunda Morte de Ramón Mercader, Le Long Voyage, Quel Beau Dimanche!), nos textos memorialísticos (Autobiografia de Federico Sánchez) ou nos roteiros cinematográficos (A Guerra Acabou, A Confissão).
Em todos, a força motriz é a memória que se põe a trabalhar e, nesse trâmite, processa um minucioso ajuste de contas tanto com ela mesma como com a circunstância. A literatura entendida como criação e recreação de um mundo pessoal, sim, mas também como a literatura de uma forma de dar testemunho e - não menos importante - a literatura como ajuste de contas. A literatura, enfim, recordando-se a fórmula clássica, como uma tauromaquia.
A Semprún, sobravam razões para apoiar essa vocação tão desmistificadora em seus propósitos. Típico filho do século 20, descendia de uma família espanhola proeminente, esteve preso no campo de concentração de Buchwald, foi militante do Partido Comunista, combateu o franquismo, renunciou à suas ideias stalinistas, participou de um governo de esquerda. Essas vidas múltiplas e até paradoxais se converteram para o escritor em alimento e fermentação para seus livros.
Existe, em tais livros, a certeza de que o itinerário que se traça é a consequência e o resultado das voltas e revoltas que marcaram, por sorte ou desgraça, o autor. Existe, sobretudo, a transfiguração artística de uma trajetória. É verdade: Semprún nos deixa um grande testemunho do século passado. Mas nos deixa talvez algo mais precioso: acompanhar uma testemunha em ação. Por exemplo, a emoção incisiva, íntima, intransferível, que desperta A Guerra Acabou em seus espectadores é a prova dessa façanha maior.


O URUGUAIO DANUBIO TORRES FIERRO É CRÍTICO LITERÁRIO E DIRETOR DO FONDO DE CULTURA ECONÓMICA NO BRASIL

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