quinta-feira, 30 de junho de 2011

‘Eu vi Borges apaixonado por duas mulheres ao mesmo tempo’

Ariel Palacios

“Borges gostava das mulheres originais, loiras, altas e inteligentes. Mas a realidade é que a única coisa que Borges amou foi a literatura”. A frase, dita com voz suave porém firme, foi pronunciada ao Estado por María Esther Vázquez, ex-colaboradora, amiga e biógrafa – além de uma das paixões – do escritor Jorge Luis Borges.

“Borges apaixonou-se muitas vezes. Eu vi Borges apaixonado por duas mulheres ao mesmo tempo”, explicou Vázquez durante uma entrevista em sua casa no bairro de Palermo, onde se recupera de uma grave fratura na perna. Segundo Vázquez, o autor de O Aleph apaixonava-se por uma mulher diferente “a cada dois ou três anos”. “Desde Concepción Romero a Viviana Aguilar, que foi seu último amor, aos 80 e tantos anos, Borges sempre esteve apaixonado por alguém”, afirma.

Sobre a diplomata uruguaia Emma Riso Platero, a biógrafa diz:. “Ela era muito divertida. Uma mulher que emitia luz. Bonita”. Segundo Vázquez, “um dia Emma estava em num restaurante com o escritor quando seu elegante casaco, pendurado da cadeira, caiu no chão. O garçom aproximou-se, avisou Emma sobre o casaco e o recolheu. A uruguaia, com um sorriso, respondeu: ‘Ah, como se eu fosse me incomodar por um casaco’. Borges ficou fascinado. Ele gostava dessas frases”.

No entanto, María Esther Vázquez sustenta que as mulheres, nos contos de Borges, “são o objeto do prazer masculino, às vezes bestial, como em Emma Zunz ou A Intrusa. Uma mulher que tem uso carnal. Mas, nos poemas é diferente. Ali a gente pode vê-lo apaixonado. Contudo, é uma coisa muito literária, não é passional. Ocasionalmente é um amor dolorido”.

Alejandro Vaccaro, presidente da Sociedade Argentina de Escritores (Sade) e autor de Georgie 1899-1930, uma detalhada biografia sobre a infância e juventude de Borges, concorda com Vázquez: “Borges estava sempre apaixonado por alguma mulher. Sempre eram bonitas. Emma Riso Platero foi mais uma das mulheres bonitas e inteligentes pelas quais Borges de apaixonou. Mas, não foi um dos maiores amores da vida dele, de forma alguma”.

Trechos de cartas de Jorge Luis Borges para Emma Risso Platero
Carta 1
Querida Emita,
Tenho pensado (e ainda penso) tanto em ti, leio e releio tanto tuas cartas, ligo-te de tal maneira à minha vida, associo-te tão inevitavelmente a lugares onde estivemos ou simplesmente por onde passastes – aos quais gostaria de ter ido contigo – que confundi essas contínuas e ilusórias atividades com o ato de escrever-te. Com algum horror, comprovo que até agora não o fiz.

Na segunda, 21, virás a (…) e te entregarei tua formosa página. Há dois ou três dias vi C… e ritualmente te evocamos (sabes que ele e eu professamos a mesma religião). Enquanto falávamos, tocou o telefone. C… entoou a palavra alô! segundo a melhor tradição e me pareceu incrível, Emita, que não fosse tua a suntuosa voz que falava com ele. O livro sairá em breve; na próxima semana receberei as provas para agregar ao prólogo, que escreverei com muito entusiasmo e secreta nostalgia. Terás, então, recebido um agradecimento efusivo (…) Quando voltarás a colaborar na revista?

Carta 2
Emita,
Agradeceria infinitamente que dedicasses alguns minutos de tua mágica voz para lembrar a Gallimard que ele me propôs uma vez uma edição francesa de Ficcões. Mais que infinitamente, agradeceria que respondesses logo a estas nada caligráficas linhas, ainda que fosse para reprová-las, como merecem, sem dúvida. Responderei em seguida. (…)Emita, ter te conhecido, ser alguém para ti, é uma das coisas mais importantes que aconteceram em minha vida. Não é a primeira vez que penso nisso.

Carta 3
-Sexta-feira, 6 de julho -
O mundo é notoriamente misterioso e até indecifrável, mas espero saber um dia porque deixei acumular-se tanto tempo sem te escrever. Será por que tenho pensado (e penso) incessantemente em ti que o ato de escrever me parece, de algum modo, supérfluo? Tua operação me deixou infinitamente preocupado; só agora, por Guy, soube que estás bem e que voltarás brevemente a Buenos Aires. Tu, Emita, és uma das raras pessoas que justificam a realidade, que salvam este deficiente universo pelo simples fato de existir, pela generosidade de existir.

Fonte: Danubio Torres Fierro

À VONTADE COM A PALAVRA FALADA

Wilson Alves-Bezerra

Para falar do recente relançamento no Brasil das conferências do argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) – proferidas em 1978 (Borges Oral) e 1980 (Siete Noches) – é preciso considerar que a oralidade é um gênero em Borges, detentora de tantas particularidades como em suas incursões como contista, poeta, prefaciador, resenhista ou ensaísta. E também que a oralidade é mais do que um gênero, pois em Borges ela é fruto de uma conjunção física: o tímido autor alcança a plenitude na oralidade quando sua cegueira já é quase total e sua idade bastante avançada. Dizer isso tem a importância de considerar os temas e os pontos de vista defendidos pelo autor, e o modo como os aborda e os desenvolve.

A cegueira é familiar ao universo borgiano desde o procedimento de composição de sua poesia; nas palavras do autor, ao escrever poemas, ele elaborava primeiro “rascunhos mentais”, para só então ditar à secretária o texto em sua forma definitiva. Algo semelhante parece ocorrer em sua fala pública, cujas versões estenografadas sofreram bem poucas correções. A potência da fala de Borges faz pensar nos seminários de seu contemporâneo francês Jacques Lacan (1901-1981), tanto por seu poder de mobilização da audiência, quanto em relação à diversidade de assuntos e à ordenação do que lhes sai da boca, como se tudo aquilo já houvesse sido ensaiado ou escrito antes de ser dito. Mas as semelhanças cessam aí e os estilos não poderiam ser mais distintos: ao Lacan caudaloso opõe-se o Borges contido.

Em Borges Oral, o que há são cinco conferências proferidas sempre às sextas-feiras na Universidade de Belgrano, na Argentina. Duas delas são dedicadas a autores – Edgar Allan Poe e Swedenborg – e as restantes, a temas inquietantes: o livro, a imortalidade e o tempo. O ouvinte – e agora o leitor – poderiam se perguntar: o que é um livro para um cego? Borges responde logo de saída: “Uma extensão da memória e da imaginação”. Para ele, o livro é um dos poucos objetos criados que não é mero prolongamento do corpo humano. E passa a fazer a história da ideia do livro na cultura ocidental. É quando faz sua profissão de fé, de não cultuar livros, tal como os homens da antiguidade clássica, e de valorizar o ensino oral, tal como Sócrates e Platão. Diz Borges: “O mais importante de um livro é a voz do autor, essa voz que chega até nós.”

No encontro seguinte, Borges parece enfrentar uma questão que lhe diz respeito diretamente e que, segundo ele, foi sempre pouco abordada pela filosofia: a imortalidade. Com a morte em seu horizonte, diz: “Não quero continuar sendo Jorge Luis Borges, eu quero ser outra pessoa. Espero que minha morte seja total, espero morrer em corpo e alma”. E a partir daí faz o elogio da morte serena, como a de Sócrates, que depois de tomar cicuta, reúne seus discípulos para falar de dor, prazer e de suas sensações. Borges elogia em Sócrates o eleger uma relação não patética com o próprio aniquilamento. E propõe um argumento matemático bastante consolador – retirado da obra de Lucrécio – para argumentar contra o anseio desmedido da imortalidade da alma individual: “Se você perdeu o infinito passado, o que lhe importa perder o infinito futuro?”

É de se notar que nessas cinco conferências ao mesmo tempo em que coloca em primeiro plano sua circunstância presente – o estar velho, cego e diante da morte -, nunca o faz de modo patético: erige-se, mais que nunca, em sua dimensão de poeta clássico.

No livro seguinte, com o sugestivo nome de Sete noites, Borges, em 1980, volta à carga com sete temas de sua predileção: A Divina Comédia, As Mil e Uma Noites, o pesadelo, o budismo, a poesia, a cabala e a cegueira.

A conferência sobre o pesadelo é curiosa porque revela o interesse do autor perante as produções oníricas, sem filiar-se à psicanálise ou à religião. Borges lamenta-se inclusive pelo fato de os livros de psicologia naturalizarem o sonhar, e não conferirem a ele nenhuma dimensão de estranheza. O que lhe interessa é a dimensão de assombro que os pesadelos podem trazer, e o seu caráter de fabulação: “Chego à conclusão, ignoro se científica, de que os sonhos são a atividade estética mais antiga.”

Finalmente, na conferência que encerra a série, aparentemente contradizendo seu pendor clássico, Borges resolve abordar sua cegueira pessoal, mas também sem acudir ao patetismo: explora as cores que foi perdendo (o negro e o vermelho) e as que se mantêm (o amarelo e um verde azulado); trata da ironia de ter sido nomeado diretor da Biblioteca Pública quando sua cegueira se acentuara, em 1955, e enumera outros dois antecessores cegos no mesmo cargo.

Jorge Luis Borges fecha as conferências falando de si próprio entre os maiores poetas ocidentais, como se falasse de outro, como se saboreasse a cicuta da tradição e se soubesse, acidentalmente, mais um deles.

Wilson Alves-Bezerra é professor do Departamento de Letras da UFSCar, tradutor e autor de Reverberações da Fronteira em Horacio Quiroga (Humanitas/FAPESP)

BORGES ORAL & SETE NOITES
Autor: Jorge Luis Borges
Tradução. Heloisa Jahn
Editora: Companhia das Letras
(216 págs. R$ 42 )

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