terça-feira, 14 de junho de 2011

Jorge Luis Borges: Com as mulheres, amizade e estética (Danubio T. Fierro)

Figuras femininas tiveram papel central para o autor

Danubio Torres Fierro – O Estado de S.Paulo

Para o bem e para o mal, as mulheres foram presenças centrais na vida de Jorge Luis Borges. Do começo ao fim, os dias e talvez principalmente as noites de Borges foram habitados por figuras femininas, tanto no seu círculo familiar como no entorno de suas amizades e no coração de sua intimidade. Recordemos, então, alguns nomes.

Recordemos, no âmbito mais imediato de Borges, o nome de Fanny Haslam, avó materna do autor nascida em Northumberland, a quem ele provavelmente deve o fato de se chamar George e principalmente o aprendizado do inglês, idioma que tanto influenciou sua formação de escritor e as ideias filosóficas que articularam sua visão do mundo. Fanny seria também um modelo de conduta estoica, indomável. (”Por que choramingam? Sou uma velha que se vai”, teria gritado à família em seu leito de morte.) A mãe, Leonor Azevedo Suárez, pertencia, como o pai, Jorge Guillermo Borges, a uma família de patrícios que lutou pela independência argentina e que tornou parte ativa nas guerras civis que se sucederam ao longo do século 19 em ambas as margens do Rio da Prata. À sua vontade de ferro, aos seus princípios rígidos, aos seus caprichos imóveis, à sua tirânica sombra protetora o filho estaria ligado até o 8 de julho de 1975 em que ela morre, aos 99 anos, ao fim de uma agonia de dois anos. (”Ouvia do meu quarto seus frequentes gemidos de dor”, confessaria Borges.) Por último, nesta primeira camada de figuras femininas, temos Norah, a irmã dois anos mais nova com quem o futuro escritor compartilha desde a infância brincadeiras que prefiguram alguns de seus contos, assim como o horror aos espelhos e às máscaras de carnaval e o fascínio exercido pelos tigres e fábulas. Convém assinalar que não deve ter sido menos importante, nessa estrutura mais próxima, uma mulher chamada Epifanía Úbeda, que em 1947 chegou da província de Corrientes ao apartamento da rua Maipú, número 994, casa dos Borges, e se converteu em “Fany”, governanta de toda uma vida. E por acaso temos de situar também nesse contexto María Kodama. Foi nada mais, nada menos do que a última grande figura feminina da vida de Borges; casou-se com ela e declarou-a sua herdeira universal, e ao lado dela morreu em Genebra.

As mulheres de Borges são, de modo inesperado, incalculavelmente mais numerosas. Recordemos, por exemplo, aquelas que despertaram suas primeiras paixões violentas. Lembremo-nos de Concepción Guerrero (a amada da esquina das ruas Tornador e Pampa), de Norah Lange (que estimulou a obsessão borgiana pela Divina Comédia e pela personagem de Beatriz), de María Zemborain de Torres (coautora de Introdução à Literatura Norteamericana), de Luisa Mercedes Levinson (com quem ele publica um livro de contos intitulado A Irmã de Eloísa), de Betina Edelberg, com quem Borges escreveria o ensaio chamado Leopoldo Lugones.

Recordemos também um grupo de amigas que rodearam Borges e o ajudaram a perfilar seu universo literário e que, muitas vezes, contribuíram para desenhar seu mundo amoroso. Lembremo-nos de Estela Canto (autora do incisivo Borges à Contraluz), de María Esther Vázquez (coautora de Antigas Literaturas Germânicas e a quem é dedicado o Poema dos Dons), de Silvina Ocampo (mulher de Adolfo Bioy Casares e fiel amiga de sempre), da uruguaia Susana Soca (que entre Montevidéu e Paris editou os Cadernos de La Licorne), de Sylvina Bullrich. Em meio a esse escalão, recordemos Elsa Astete Millán, com quem Borges se casou em 1967 e a quem tinha conhecido na juventude, perdendo-a de vista por exatos 30 anos até o reencontro definitivo. Não há dúvida que, neste aspecto, Victoria Ocampo ocupou um lugar singular: desde as primeiras páginas de sua imprescindível revista Sur, ela lançou Borges primeiro à fama na França, que logo se tornaria universal e, finalmente, argentina. Cabe sublinhar que Victoria representou, para a maior parte dessa galáxia feminina, a autêntica mulher argentina da época: uma mulher de garra, altiva, liberal, independente, exigente e generosa, valente, impositiva.

E, para terminar, recordemos Emma Risso Platero, a quem Borges dirigiu uma correspondência afetuosa (leia no portal do “Estado” alguns fragmentos das cartas, ao que se sabe, até então desconhecidos no Brasil). Emma era uruguaia, pertencia à estirpe das famílias patrícias do Rio da Prata e transitou pelo serviço diplomático de seu país na qualidade de adida cultural no Japão, Argentina e França. Na vida de Borges, Emma foi uma figura muito próxima, e ambos teceram uma amizade duradoura feita de confiança mútua, amor correspondido, cumplicidades amparadas na convergência de atitudes e gostos mundanos e intelectuais. As cartas nos permitem aceder a uma intensidade borgiana transpassada por um reconhecimento muitas vezes deslumbrado de sua correspondente.

A presença irradiadora da personalidade de Emma e o gosto borgiano pela busca de uma comunhão emotiva e estética são signos dominantes que seduzem e transportam seus leitores, transformados em voyeurs desavisados – mas para além das interpretações psicanalíticas e as implicações patológicas que alimentam as relações que Borges manteve com suas mulheres, todas elas lastreadas no prescindível ou no refutável. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

DANUBIO TORRES FIERRO É ESCRITOR E CRÍTICO LITERÁRIO URUGUAIO, DIRETOR DO FONDO DE CULTURA ECONÓMICA NO BRASIL

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