A classe média, vários setores acadêmicos e profissionais e uma parte do meio artístico e cultural vivenciam atualmente o que se poderia designar como uma situação de mal-estar moral. O termo francês malaise também caberia aqui. Refiro-me a freqüentes sentimentos de perplexidade, frustração e impotência frente à lentidão ou não ocorrência de mudanças que pouco tempo atrás nós dávamos como certas, ou muito prováveis.
Os setores mencionados nem sempre percebem, mas em certos casos o que ocorre são de fato reversões ou retrocessos, e não propriamente ausência de mudança na direção desejada.
A título introdutório, eu diria que o mal-estar moral tanto pode se exprimir sob a forma de uma descrença generalizada (a reiterada afirmação de que a corrupção permeia todas as camadas sociais e instituições, sem exceção; de que ela provém do próprio DNA dos brasileiros; de não há o que fazer, “o último a sair, desligue a luz”) como através de críticas a determinado setor ou instituição; críticas em geral justificadas, mas que, por razões diversas, acabam atingindo mais os que lutam por reformas que os que resistem a elas.
Quem deseja mudar alguma coisa obviamente necessita dramatizar a importância de reformas; e não tendo (por definição) uma posição dominante no sistema decisório político, expõe-se a críticas não raro virulentas por sua suposta incapacidade de lograr resultados rápidos, ou por sua suposta acomodação, cinismo etc.
Esquematicamente, é possível dizer que o referido quadro de frustrações e impotência tem a ver com quatro aspectos principais da sociedade brasileira:
* O subdesenvolvimento em geral, ou aspectos dele, como o atraso educacional;
* Os desníveis sociais: desigualdades de renda, de oportunidades etc;
* A corrupção e a criminalidade comum;
* O sistema político.
Mas, naturalmente, a realidade social não se dá a conhecer de maneira direta, e nem molda as nossas reações emocionais de forma imediata e uniforme, e sim através de certos filtros através dos quais nós a percebemos.
Filtros são templates, esquemas interpretativos, que se constituem ao longo do tempo, condensando nossas preferências, temores, inseguranças, preconceitos, interpretações etc. O que ofereço a seguir é um apanhado de algumas razões do mal-estar moral em função dos filtros pelos quais as recebemos (ou não).
Nossa posição social
Como parte da classe média e por termos alcançado um status educacional relativamente elevado, nós somos a parte Bélgica da Belíndia , para lembrar aqui a celebrada expressão do economista Edmar Bacha. Trata-se de uma posição privilegiada, mas ao mesmo tempo incômoda. É uma situação que ora nos atormenta, ora nos atemoriza e, no limite, nos faz descrer do futuro do país. Em vista dela, muitos de nós reagimos com um sentimento de urgência; queremos mudança-já, não importa a que preço. Dado, porém, que a realidade não se altera em tal escala e nesse ritmo, vemo-nos subjugados por um contínuo sentimento de revolta, de alienação e até de exclusão. Outros há que desenvolvem, como reação ao desconforto de sua situação social, um peculiar sentimento de consciência culpada : abdicam de valores como a democracia,a cultura, a ordem, o mérito, a racionalidade econômica e outros que sua camada social tem a responsabilidade talvez prioritária de defender e acabam por simpatizar com grupos ideológicos ou políticos para os quais eles nada representam, e que não raro se empenham em destruí-los. Mal-comparando, é um mecanismo semelhante ao que Ana Freud denominou “identificação com o agressor”.
Crescimento econômico e populacional –> mudanças composicionais e comportamentais
Desde os anos 30, o próprio esforço de superação do subdesenvolvimento através da industrialização (bastante bem sucedido, diga-se de passagem) provocou enormes deslocamentos espaciais da população, como o do Nordeste para o Sudeste, e também do meio rural para as cidades, acelerando o aparecimento de grandes metrópoles. Os efeitos negativos de tais deslocamentos foram agravados pela rapidez do próprio crescimento populacional na segunda metade do século, de tudo isso advindo complexas rupturas nos padrões de relacionamento social, mudanças comportamentais importantes e uma forte pressão sobre os serviços públicos de educação, saúde etc. Nesse processo, as parcelas da classe média que encarnavam alguns bons valores decresceram em termos proporcionais, ou seja, tornaram-se diminutos dentro do mar de gente que se formou nas principais cidades do país. No campo político-eleitoral, isto começou a se tornar perceptível já nos anos cinqüenta, quando vários sociólogos falavam no “aparecimento do povo na cena política”. Daquela época até hoje, o fenômeno tornou-se reconhecível a olho nu. A “nova classe média” (assunto obrigatório desde a última década) é também muito maior que a antiga, e por enquanto tem muito pouco a ver com ela. A aplicação nos estudos, por exemplo, era intensa entre os filhos da antiga, mas escassamente perceptível na “nova”.
Deterioração da vida política
Findo o período de transição para a democracia, em meados dos anos 80, a elite política de alto nível que comandara a luta contra o regime militar perdeu a maioria de seus integrantes; ao mesmo tempo, com o aumento do número de posições eletivas e o forte crescimento do eleitorado, pôde-se observar uma “reponderação” – alterações proporcionais entre setores -, de forma análoga às mudanças composicionais notadas no item anterior. No Legislativo e nos partidos políticos, líderes de grande expressão nacional (homens como Tancredo Neves, Ulisses Guimarães, Mário Covas, Franco Montoro, Afonso Arinos e Roberto Campos, entre outros) escassearam. O resultado foi um aumento avassalador do que se tem chamado de “baixo clero” (políticos de pouca expressão e orientação basicamente fisiológica) e de esquerdistas de vários matizes, a maioria igualmente desprovida da cultura e da expressão nacional dos líderes acima nomeados.
Mais grave, no entanto, foi a interação perversa que se estabeleceu entre os ambientes interno e externo do Legislativo. Enquanto o ambiente interno mudava para pior, como acima se notou, o ambiente externo mudava para melhor – não de maneira uniforme, é claro, mas no tocante a profissões de classe média que em outras circunstâncias poderiam fornecer quadros de alto nível à vida política. Aqui me refiro especialmente à expansão das universidades e particularmente da pós-graduação, que tornou atraente e compensadora a permanência dos diplomados em suas respectivas profissões, limitando a oferta de bons candidatos para a esfera política.
Acrescente-se ao panorama esboçado a perda de prestígio do Legislativo, devida à perda de prerrogativas e poder, por um lado, e à atmosfera de corrupção, por outro, e logo se compreenderá que a carreira eletiva encontra-se aprisionada dentro de um círculo vicioso. Legislativo desacreditado, portanto menos atraente, redução da oferta de bons candidatos, Legislativo desacreditado…
Advirta-se porém que uma análise mais completa precisaria levar em conta as regras constitucionais e eleitorais vigentes, que também dificultam a renovação e o recrutamento de candidatos mais afinados com a parte moderna da sociedade brasileira.
No que se refere aos partidos políticos, haveria igualmente necessidade de incorporar outros fatores, a começar por aqueles que dificultam sua consolidação estrutural, por exemplo na medida em que facilitam o chamado “troca-troca” e uma proliferação desordenada de siglas. No caso do PSDB e do PT, especialmente relevantes para a presente discussão, é necessário lembrar um dilema clássico: o da sustentação eleitoral de agremiações que assumem o ônus de estabilizar a economia e sanear as finanças. Tais partidos são em geral punidos pelo eleitorado, por razões óbvias, em especial quando o contendor principal recorre eficazmente ao discurso populista.
Do exposto pode-se facilmente inferir que as camadas sociais atingidas pela síndrome do mal-estar moral tendem ao mesmo tempo a se sentirem órfãs de representação e desnorteadas na busca de outros canais ou formas de participação. Em nossa história recente, quanto mais a percepção desta dificuldade se difundiu, tanto mais ganhou corpo a ilusão da ação direta (a saga heróica dos “caras-pintadas” logo vem à memória). Subestimando os obstáculos que se antepõem à ação direta numa sociedade de larga escala, os cidadãos que exploram essa alternativa não tardam a se desapontar, daí advindo até certa tendência à auto-flagelação moral.
A ANÁLISE HOJE APRESENTADA REQUER UMA COMPLEMENTAÇÃO IMPORTANTE: UMA VISÃO DO CLIMA DE IDÉIAS QUE PREVALECEU NO PAÍS ANTES E DEPOIS DO RESTABELECIMENTO DA DEMOCRACIA. ESPERO REDIGI-LA NOS PRÓXIMOS DIAS.
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