Cabral se desmoraliza se não punir os bombeiros; e estes, se negociarem, ficarão aquém da dramatização de seu movimento
A prisão dos bombeiros em greve, por determinação do governador do Rio de Janeiro, expõe traços e contradições de uma sociedade que frequentemente combina e não distingue identidades que se combatem. O corpo de bombeiros é um corpo militar, sujeito, portanto, às regras e obrigações do chamado dever militar. Em nome da suposta violação desse dever, o governador definiu a insubordinação dos grevistas como motim e desse modo justificou a invasão violenta, pela polícia, do quartel que ocupavam e o enquadramento penal dos que foram presos. Por seu lado, os bombeiros estavam fazendo uma greve de trabalhadores, e não um motim de militares, motivada por reivindicações salariais. O governador, portanto, exagera. Mas também exageraram os bombeiros no formato impróprio que deram a sua reivindicação.
Para complicar, os bombeiros não propuseram sua demanda na pauta das questões propriamente trabalhistas e sindicais, mas sim na das demandas morais características dos movimentos sociais pré-políticos: levaram para lá suas famílias, expondo-as ao risco da violência que acabaram sofrendo. Não eram elas agentes de uma reivindicação, mas vítimas de uma situação decorrente de salários supostamente aquém do que necessitam. Se não punir, o governador precipitado se desmoraliza, como se desmoraliza se negociar. Os bombeiros, por outro lado, se negociarem, como seria próprio de sua demanda, também se desmoralizam. Estariam aceitando algo muito aquém da dramatização intensa, e provavelmente descabida, que deram a seu movimento, cuja única solução, já sabiam, só seria conseguida na mesa de negociação. Dos dois lados, munição de mais para objetivo de menos.
Um terceiro e contraditório personagem se fez ver no palco dos acontecimentos: a população que apoia os bombeiros, tocada nos sentimentos, e não na razão, mobilizada pela dramaturgia do pobre e do injustiçado. A cozinha não é o melhor lugar para pensar e sustentar as ações políticas, embora grandes e significativas manifestações da sociedade tenham nela nascido. A própria Revolução Francesa foi detonada pelo descontentamento popular com o preço moralmente injusto do pão, não pelos moradores da Paris inteira, mas inicialmente pelos moradores do bairro de Saint Antoine. Como rastilho de pólvora, foi incorporando ao seu incêndio outras e mais elaboradas demandas que, transbordando o plano da chamada economia moral, chegou ao plano propriamente político. A história do mundo mudou a partir do que parecia prosaico protesto de quarteirão.
Mediações que dão sentido ao que parece uma celeuma de província mostram as dimensões ocultas e problemáticas de ocorrências como essa e a do Rio, apesar das enormes diferenças entre elas. E aí se pode ver que casos aparentemente distantes entre si estão atados pelos processos ocultos que acabam dizendo que o que cada um pensa que é e está fazendo não é o que efetivamente vem a ser e faz. Cabral já não é Cabral, porque se revitalizou e se reelegeu à sombra do lulismo. Seu impasse de agora apenas mostra que o lulismo pode ser bom para ganhar eleição, mas não assegura condições para governar na solidão do poder. No Rio, a simpatia popular vai para a tropa que, mesmo equivocada na forma da reivindicação, atormenta o palácio e encanta a cozinha. É nesse sentido que o episódio do Rio se aproxima do episódio quase simultâneo de Brasília, a crise envolvendo o ministro da Casa Civil, Antonio Palocci.
À sombra do lulismo surgiram figuras, como Cabral e a própria presidente Dilma Rousseff, cuja ascensão política representa um certo desvio em relação à normalidade eleitoral. Mesmo que tenham competência própria, tornaram-se reféns de legitimidade alheia. Essa dependência mostrou agora a fragilidade política de seus supostos beneficiários. No caso dos bombeiros, o governador agindo além das limitações de seu mandato ao classificar como motim o que motim não era, sem perceber que agora está só. No caso da presidente, a lenta e insuficiente reação em face de um ministro da Casa Civil que se propôs no cenário do poder como se fosse maior e mais duradouro do que ela. A desastrosa interferência de Lula para salvar Palocci e Dilma sugeriu-a à opinião pública, indevidamente, como governante com dificuldade para tomar decisões próprias e prontas, que demonstrasse a Palocci e ao próprio Lula quem é que manda, isto é, quem é que tem o mandato para governar.
Os dois e correlatos episódios mostraram que no rescaldo do lulismo há a pendência de mandatos residuais, como o do Rio e o de Brasília, que fragilizam os eleitos em vez de confirmarem a firmeza de seu patrono. O lulismo é um fenômeno político de risco, não só para o PT, mas também para seus aliados e beneficiários de ocasião. As ocorrências políticas do Rio e de Brasília, expõem as incertezas do lulismo. Mas expõem, também, a fragilidade das oposições, desatentas para a função supletiva de ter resposta para situações problemáticas quando os governantes não a tem, como estamos vendo.
JOSÉ DE SOUZA MARTINS, PROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, É AUTOR DE A SOCIABILIDADE DO HOMEM SIMPLES (CONTEXTO)
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