“O Pão de Açúcar era um teorema geométrico.” Hoje estou diante dele, por uma dessas janelas panorâmicas espetaculares do Rio, e posso saborear ao vivo a beleza aguda da frase de Oswald de Andrade, que se encontra no “Serafim Ponte Grande”. O fato é que não consigo ter nenhum outro assunto que não esse: Oswald de Andrade é o escritor homenageado da Festa Literária de Paraty, que acontece em julho, e também da nova exposição do Museu da Língua Portuguesa em São Paulo, que abrirá depois da Flip. Coincidências curiosas fizeram com que os dois eventos apontassem para ele, e calhou de eu estar envolvido nos dois: vou participar com Antonio Candido da conferência de abertura da Flip, também do show em homenagem a Oswald, ainda em Paraty, e estou fazendo a curadoria da exposição do Museu da Língua.
Era melhor eu não falar sobre isso agora, de coisas em preparação, que ainda vão acontecer. Mas por isso mesmo, por estar completamente envolvido com elas, é que não tenho, no momento, nenhuma outra coisa a dizer. Estava nessa dúvida cruel quando me deparei com ele, o “óbvio ululante” epifânico, o Pão de Açúcar em pessoa. Pode ser exagerado, mas a coluna permite, e o fato é que me dou conta de que o Pão de Açúcar é para Oswald de Andrade o motivo recorrente, o gabarito poético com que ele lê o Brasil, um carimbo luxuoso na paisagem, uma marca de patente, de fábrica fractal, um enigma carnavalesco, um signo cósmico, um emplastro Brás Cubas (de Machado) e um recado do morro (de Rosa), lidos por um paulista no Rio.
“No Pão de Açúcar / De cada dia / Dai-nos senhor / A poesia de cada dia.” Não é por acaso que esse torrão natal de pura pedra, que aparece em muitos poemas e romances dele, exibindo sempre outras faces, é erigido em escapulário, em amuleto, em estrela-guia, como a muiraquitã do Macunaíma. A gente tem que ter algo muito concreto em que se mirar, para poder re-existir. Um lugar para poder cifrar o destino, para se achar e se perder. O mais acabado dos cartões postais, que, no entanto, nunca se acaba de entender. É assim que o Pão de Açúcar aparece também, aliás, no “Estrangeiro” de Caetano Veloso, que fez música para o “Escapulário”, e com capa do cenário de Hélio Eichbauer para “O Rei da Vela”, tudo de Oswald.
Acho muito oportuna a convergência da Flip e do Museu da Língua sobre Oswald. Na minha opinião, estamos precisando de Oswald de Andrade na veia. Nenhum escritor brasileiro “consagrado” sacode mais escancaradamente que ele os hábitos mentais de superfície, a estereotipação com que se vem reduzindo os acontecimentos criativos a explicações secundárias, as questões-problema postas todas em gavetas esquemáticas, os xeque-mates convertidos em clichês ralos.
Oswald é provocação no mais alto sentido. Não precisamos cair na discussão equivocada sobre se ele é melhor poeta que Drummond, Bandeira ou Cabral. É evidente que não. Mas, mais que isso, deve ficar evidente que essa não é a questão. Nenhum escritor de seu tempo, no Brasil, enfrentou de maneira tão original e contemporânea um conjunto vertiginoso de questões poéticas, antropológicas amplo espectro, de uma perspectiva “selvagem”, não acadêmica, crítica, inquieta e generosa.
Tendo morrido no ostracismo, Oswald renasceu nos anos 1960 através das leituras que fizeram dele a poesia concreta, o Teatro Oficina, o movimento tropicalista. É que nele já estavam, a seu modo, a poesia construtiva, o racionalismo anárquico, os temas da nova esquerda, da cultura pop, o matriarcado e a revolução sexual de Wilhelm Reich, o sentimento órfico de Marcuse, a “aldeia global” de McLuhan, tudo isso do ponto de vista da mais original formulação, na América Latina, de uma resposta ao processo de colonização.
A ideia de “antropofagia” foi muito desgastada e banalizada pelos usos, caindo muitas vezes no elogio indiscriminado da mistura de tudo com tudo, da absorção ilimitada e depois “vomitada” das influências. Essa metáfora é péssima e inadequada. Nada a ver com o rigor heterodoxo com que a ideia da antropofagia como potência da alteridade aparece formulada e praticada em Oswald, em prosa e verso,
em manifesto, romance, teatro e dissertação filosófica. Nada a ver com o modo como ele distingue a alta antropofagia, como critério criador, da “baixa antropofagia” da devoração pela devoração, ética e politicamente nefasta.
Por isso mesmo é que o momento agora pode ser o de um novo salto na compreensão de Oswald de Andrade, pelo próprio modo como sua obra contracena e responde a um mundo de intensos cruzamentos e ao mesmo tempo de explosivos impasses políticos de base cultural, no mundo. Uma recepção diluída acabou por cercá-la de conotações festivas, carnavalizantes e algo inconsequentes. O problema aí não é nem o carnaval nem a festa, que são instâncias fortes da alegria como “prova dos nove”, mas a concepção estreita de que o pensamento de Oswald de Andrade se esgota aí. O cerne da antropofagia como metáfora é o destino da agressividade humana, que ela ao mesmo tempo contempla e desloca, ao aceitar a cultura do outro como matéria primeira das transformações.
Para ir mais longe, só mesmo lendo, por exemplo, as surpreendentes e pouco conhecidas entrevistas de Oswald reunidas no livro “Os dentes do dragão”, destacando- se, entre todas, a concedida a Paulo Mendes Campos em 1947.
Para terminar, um verso que ficou na minha cabeça, mas que eu não sei se li ou sonhei: “O Pão de Açúcar é um seio que o céu quer sugar.”
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