A política das drogas, no Brasil, nos âmbitos legal e moral, é gravemente equivocada. No plano legal, a tentativa de repressão à produção e ao tráfico, somada à criminalização do consumidor (nesse último ponto houve algum avanço), levou ao crescimento brutal de um mercado ilegal com imenso dano à sociedade como um todo. No plano moral, uma mistura de hipocrisia e estigma induz ao contato com a droga (que se torna atraente sob a névoa do interdito) e impede a instauração de um debate claro, que possa convocar a perspectiva científica (mas também a literária, a sociológica, a filosófica...), a fim de iluminar a experiência das drogas sob todos os aspectos: por que seu uso se confunde com a história das civilizações, que danos as diferentes drogas causam à saúde, em que princípios se deve fundamentar uma política das drogas, que experiências políticas alternativas vêm se desenvolvendo em diversos lugares do mundo etc.
Foi contra esse estado estacionário e fracassado que se criou, em 2008, a Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia, uma inciativa, entre outros, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Conclamo desde já todos os leitores a analisar o documento por ela redigido (www.drogasedemocracia.org), que apresenta ao debate público as conclusões a que seus estudos chegaram, para que se possa estabelecer uma base para a discussão que finalmente deverá atingir o âmbito da política legal, alterando seu rumo. Conclamo igualmente todos a assistir ao documentário “Quebrando o tabu”, dirigido por Fernando Grostein de Andrade, e que vem juntarse aos esforços dessa comissão, expondo suas investigações e apresentando sua versão cinematográfica.
To d o s s a b e m o s , p e l o exemplo de “Tropa de elite” (1 e 2), a que nível excepcional de transformação de mentalidades chegou o cinema político no Brasil. É preciso não desperdiçar
isso e aproveitar o movimento iniciado para levar esse
p e n s a m e n t o à transformação efetiva, moral e legal, da realidade. Boa parte da nossa vida política oficial se passa num estágio prépolítico de denúncias infindáveis de corrupção ou canalhismo esclarecido; mas isso não deve nos levar à desistência de experimentações políticas decisivas, sob a alegação de que não temos maturidade para tanto. Isso nos infantiliza e paralisa. É preciso que a sociedade civil pressione a política oficial na direção de uma vida política mais autêntica e propositiva.
Não sou a favor das drogas, a priori e sem qualquer ressalva, mas sou a favor de sua descriminalização. Em primeiro lugar, drogas são um problemade saúde pública, e não de ordem criminal. O princípio aqui é claro: qualquer cidadão deve ter o direito de fazer experiências de alteração de sua consciência, e deve ter o direito de configurar sua economia pulsional como bem entender, desde que esse direito não interfira, prejudicando- a de alguma maneira, na liberdade de outro cidadão. A criminalização das drogas atenta contra a liberdade fundamental do indivíduo ao tornar sua consciência e economia pulsional assuntos do Estado. Drogas são, antes de tudo, um problema de saúde privada. Estou de acordo quando se diz que são um problema de saúde pública porque se quer dizer, com isso, que ao Estado cabe o papel de educar, iluminar a sua experiência, bem como cuidar para que os danos à saúde dos consumidores sejam amenizados (regulando o consumo e a produção das drogas, fazendo diferenças entre elas, e dando acesso ao tratamento para dependentes).
Dito isso, repito que não sou a favor do uso das drogas. Mas é preciso entender por que se faz uso delas, que diferentes experiências elas proporcionam etc. O efeito constitutivo de qualquer civilização é a neurose: vivemos todos sob imperativos morais e legais de restrição de nossos desejos. A realidade é feita de amarras firmes, em algumas civilizações mais ainda do que em outras, mas, sempre, estamos lidando com pressões da realidade. As drogas são um fator que permite intervir nessa experiência da realidade, afrouxando, provisoriamente, suas amarras morais e liberando, com isso, uma carga pulsional
de outro modo aprisionada. É o que faz, por exemplo, o álcool. Sou, por isso, a favor do uso moderado, ou mesmo eventualmente imoderado do álcool — desde que, repito, esse uso não acarrete, por irresponsabilidade, consequências danosas a outras pessoas (sou, por isso, a favor da Lei Seca no trânsito). No meu entender, há dois paradigmas de drogas: as drogas da realidade e as drogas do real. Aquelas, como o álcool e a cocaína, atuam no sentido de transformar, por dentro, a experiência
neurótica da realidade: suavizando-a, no caso do álcool, ou euforizando-a, no caso da triste cocaína. Já as drogas do real, como o ácido ou, para alguns, até a maconha, expandem a consciência até o ponto de levá-la a experimentar a realidade como uma ficção, permitindo um vislumbre do vazio, isto é, do real, que por trás dela (não) a sustenta. É uma experiência sublime e angustiosa, é a máxima sensibilidade
e o Nada. Cabe ao cidadão o direito de viver ou recusar essas experiências.
É urgente desmoralizar o uso das drogas, para que se possa ter uma compreensão mais profunda e desassombrada sobre elas. Para isso, a perspectiva científica é fundamental, mas não deve ser exclusiva. A criminalização das drogas, tal como se dá hoje, produz o crime, lá onde ele, na grande maioria dos casos, não existiria. Chega de obscurantismo, chega de violência, chega de hipocrisia. É preciso ampliar, aprofundar o debate, e transformar a realidade.
Fonte: O Globo
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