Filósofo marxista fala sobre livro em que discute avanço histórico e destruição
Um dos principais pensadores da esquerda contemporânea, o filósofo húngaro István Mészáros construiu desde seus primeiros escritos nos anos 1950 uma trajetória intelectual marcada pelo diálogo com a obra de Karl Marx. Em seu novo livro, “Estrutura social e formas de consciência II: A dialética da estrutura e da história” (Boitempo, tradução de Rogério Bettoni), Mészáros volta mais uma vez a Marx para criticar as correntes intelectuais que, segundo ele, pretendem descrever relações sociais sem pensálas num contexto histórico. Mészáros, que esteve no Rio de Janeiro esta semana para lançar o livro, conversou com O GLOBO sobre a obra.
Miguel Conde
O GLOBO: No segundo volume de “Estrutural social e formas de consciência”, que está sendo lançado aqui agora, o senhor argumenta que as estruturas sociais e a mudança histórica devem sempre ser pensadas em conjunto. Como exemplo de uma separação indevida dessas duas categorias, o senhor cita o estruturalismo de Claude Lévi-Strauss, cujas posições teóricas teriam resultado numa visão pessimista do processo histórico. Por que é necessário pensar História e estrutura em conjunto? E o senhor, ao fazer isso, teria então uma visão otimista da História?
ISTVÁN MÉSZÁROS: A base do ser é sempre estruturada, inclusive no mundo natural, mas estou pensando aqui em estruturas humanas. Toda atividade humana é estruturada, e há sempre uma interação ou afecção mútua entre todos os campos da ação humana. Claro que o impacto da arte, da literatura ou da filosofia sobre o desenvolvimento histórico é muito menos direto do que o da economia, mas elas também têm seu tipo próprio de impacto. Há um marxismo vulgar que fala das ideias como consequência mecânica da economia, um mero efeito, mas isso é uma grande falsificação do que Marx pensava. Ele passou a vida, afinal, lutando por certas ideias. Quanto a Lévi-Strauss, ele rejeitava a ideia de processo histórico e chegou a falar do conhecimento histórico como uma mera classificação de diferentes estruturas descontínuas. Nesse sentido, ele não reconhece a existência do progresso nas sociedades humanas. A mudança histórica, no entanto, nunca é simplesmente uma mudança. Ela supõe um certo avanço, estamos sempre nos movendo para frente.
● Por que a mudança histórica implica necessariamente um avanço? E haveria então algo como um estágio final da História?
MÉSZÁROS: Não, isso é o que diria um charlatão como Francis Fukuyama. Não há final feliz para a História, ela é sempre um confronto. Quando digo que o avanço é “necessário”, não estou fazendo uma analogia com as leis naturais, como a gravidade. A ideia de inevitabilidade histórica é uma grande fantasia. A necessidade com a qual os seres humanos lidam é estabelecida por certas circunstâncias criadas pelos próprios seres humanos, e é nessa medida que somos capazes de superá-las. Podemos pensar, por exemplo, num contraste entre o feudalismo e o capitalismo por meio do conceito do excedente de trabalho, aquilo que as pessoas produzem além do estritamente necessário para sua sobrevivência. No feudalismo, esse excedente, esse “a mais” era alocado por meio da dominação política direta dos senhores sobre os servos. No capitalismo, o excedente passa a ser extraído economicamente, o que abriu o caminho para formas de produção muito mais desenvolvidas. A extração política do trabalho excedente é muito pouco eficiente, pois exige todo um aparato custoso para garanti-la. Isso foi um dos problemas que levou ao colapso da União Soviética.
● Avanço histórico significa para o senhor, em primeiro lugar, aumento de produtividade?
MÉSZÁROS: Claro. Nas sociedades primitivas, onde as pessoas vivem “da mão para a boca”, como dizem os ingleses, você não tem o espaço para a arte e a filosofia que existe em formações mais avançadas. É à medida que o ser humano ultrapassa a mera produção para a própria sobrevivência que pode se dar um processo de expansão cumulativa de sua liberdade.
O projeto civilizatório ideal seria, então, um aumento progressivo da capacidade produtiva?
MÉSZÁROS: Temos que pensar numa mediação entre o ser humano e a natureza. A ideia de crescimento eterno continua a ser a mitologia do nosso tempo. A solução para a crise do capitalismo é sempre pensada como mais crescimento. Existe essa ideia de que o céu é o limite, quando na verdade quem estabelece o limite não é o céu, mas a natureza. Se hoje nos vemos diante de ameaças ambientais consideráveis, no entanto, mais uma vez é preciso reconhecer que está em jogo aí uma atividade humana, e portanto somos capazes, também por nossa ação, de solucionar esses problemas. É ao não se confrontar com os requisitos objetivos da produtividade que o homem é arrastado de volta para a determinação natural. Existe uma fundação natural que não pode ser ignorada, e que se reafirma.
Então também existe um sentido destrutivo da produtividade.
MÉSZÁROS: Todo poder de produção é um poder de destruição. Hoje o ser humano pode de fato mover montanhas, mas com que objetivo? Os tremendos avanços do poder de produção nos colocam ao mesmo tempo diante da possibilidade de extinção do ser humano, de um futuro em que o planeta seja habitado apenas por baratas. Isso se tornou um perigo muito real, que deve ser entendido num contexto de crise e militarização do capitalismo, iniciado ainda no século XIX. Ser otimista a respeito do curso da História, portanto, seria tolo. Mas acredito que o ser humano é capaz de neutralizar esse caminho que leva à sua autodestruição. ■
Nenhum comentário:
Postar um comentário