sábado, 25 de junho de 2011

O Brasil não é católico nem evangélico (Hélio Doyle)

Líderes religiosos têm de entender que o Estado é laico

A Constituição brasileira assegura o direito de manifestação e a liberdade religiosa. É natural que evangélicos realizem em São Paulo uma “marcha por Jesus”, ou que católicos saiam às ruas em procissão no dia de Corpus Christi. Assim como os seguidores de qualquer outra religião e como os que não têm uma religião, evangélicos e católicos exercem um direito ao ir às ruas e defender suas ideias e princípios. Nada impede, inclusive, que critiquem decisões do Supremo Tribunal Federal com as quais não concordam.

Muitos evangélicos e católicos, porém, têm de entender que o Brasil é um país laico, secular. Aqui vigora a separação entre Estado e igrejas. Não existe uma religião de Estado, como no Irã (muçulmano), no Vaticano (católico) e no Reino Unido (anglicano), entre outros países. O Estado é neutro diante das religiões e permite que todas atuem em seu território e que cada cidadão goze de plena liberdade de culto, desde que cumprida a lei.

Portanto, uma coisa é seguidores de uma religião, ou uma igreja, manifestarem sua opinião. Outra, é querer impor essa opinião ao conjunto da população. Como o catolicismo romano sempre foi amplamente majoritário na população, cardeais e bispos ainda estão acostumados a dizer o que o país pode ou não pode fazer. Agora, evangélicos querem ter essa prerrogativa também.

Durante muitos anos, por exemplo, a Igreja Católica manteve o país no atraso ao impedir a aprovação da lei instituindo o divórcio, que já existia em quase todos os países. Ora, o divórcio é pecado para católicos, não para todos os cidadãos. Se quiserem seguir os preceitos de sua igreja, os católicos não devem se divorciar -- e, se se divorciarem, esse é um problema entre eles e o vigário confessor. Mas isso não quer dizer que têm o direito de impedir os não católicos de se divorciarem.

Embora constitucionalmente laico, o Estado brasileiro ainda sofre da enorme influência da Igreja Católica, que vem desde a colonização. Ainda existe ensino religioso obrigatório em escolas públicas, feriados em datas católicas (como o de Corpus Christi e de Nossa Senhora Aparecida), crucifixos em repartições públicas, invocações a Deus em textos oficiais. Em um Estado laico verdadeiro, nada disso existiria.

É mais do que simples: o Estado representa todos os cidadãos, cada igreja representa seus seguidores. A parte, por maior que seja, não pode querer se impor irracionalmente ao todo. Católicos e evangélicos podem ficar tranquilos, porque nenhum deles vai ter de assumir uma união civil homoafetiva só por causa da decisão do Supremo Tribunal Federal. Mas, com medo de Satanás, eles não têm o direito de impedir os que quiserem estabelecer essa união. A ação do juiz de Goiânia, que colocou suas crenças religiosas acima da lei, é um exemplo do que não pode ser feito em um país laico.

Por isso, quem quiser pode ser contra a legalização do aborto, as pesquisas com células-tronco e as marchas pela liberação da maconha, por considerar que ferem seus preceitos religiosos. Mas ninguém pode querer impedir que os demais brasileiros, com outros juízos de valor, queiram abortar, pesquisar células-tronco ou lutar para que a maconha seja discriminalizada. Desde, claro, que dentro do que a lei estabelece ou vier a estabelecer.

O problema, para o país, é que católicos, com 63% da população, e evangélicos, com 25%, têm enorme poder político. Não que sejam muitos no Congresso (segundo a Folha de S. Paulo, a chamada bancada religiosa tem 71 deputados e 3 senadores). Mas líderes religiosos têm influência natural sobre seus seguidores e líderes evangélicos neopentecostais, entre os quais estão alguns dos maiores picaretas da República, manipulam com facilidade os votos de seus rebanhos pouco instruídos.

Esse peso dos líderes religiosos se manifesta com mais clareza sobre os políticos que disputam eleições majoritárias. Para ter pelo menos 50,1% dos votos, candidatos a presidente da República, governador, prefeito e senador têm de estar bem com padres e pastores. Alguns até se convertem de ateus convictos em fieis praticantes. Basta lembrar o lamentável episódio da exploração do aborto na última eleição presidencial, que teve até a intromissão indevida do papa, que é chefe de Estado: uma candidata voltando atrás em suas convicções e um candidato fingindo ser beato.

É lícito a um pastor sintonizado com o século 19 bradar que quem estiver contra a família (leia-se: contra os preceitos de sua igreja) não terá o voto dos evangélicos. O problema é que os candidatos, especialmente a eleições majoritárias, tremem de medo diante disso e impedem a aprovação de medidas necessárias e modernizantes no país, submetendo-se ao atraso fundamentalista.

Tudo isso leva a uma contradição em nosso sistema democrático. O Congresso Nacional tem medo de tomar decisões que levem a polêmicas com os líderes religiosos. O Executivo vai no mesmo caminho, para preservar a famosa “base”. Aí os ministros do Supremo Tribunal Federal decidem, pois não precisam de votos e tomam as decisões à revelia das pressões religiosas atrasadas.

Assim é o STF, quem diria, que garante a liberdade de crença e a modernização dos costumes no Brasil.

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