quinta-feira, 23 de junho de 2011

Os caminhos de um autor marcado por conflitos insolúveis

Mariangela Alves de Lima – O Estado de S.Paulo

Alguns episódios grafados nas margens da vida teatral acabam servindo de pano de fundo para evidenciar contornos da história dessa arte. Em 1928 o encenador francês Antonin Artaud escolheu a peça O Sonho para figurar na terceira temporada da sua companhia. Escrita pelo sueco August Strindberg (foto) no começo do século 20, o texto chegava ao palco protegido pela aura de um dramaturgo que o público e os críticos franceses já conheciam, apreciavam e consideravam um digno representante nórdico da escola naturalista. Mas uma claque organizada pelo grupo surrealista de Paris perturbou de tal modo as apresentações com protestos veementes contra a “traição” de Artaud que o espetáculo não pode continuar.

A paixão juvenil por cartilhas estéticas fervia na cidade promovendo e demolindo em igual medida obras e autores. De um modo geral, as reflexões posteriores resgatam algumas vítimas dessa militância aguerrida. No entanto, não foi completa falta de argúcia crítica o protesto contra a escassa afinidade da peça com o programa surrealista.

Na origem desta inconteste obra-prima da dramaturgia ocidental está, sem dúvida, a gramática do inconsciente, mas o que preside à elaboração da narrativa é a figura barroca do mundo como representação. A filha do deus Indra atravessa vários estágios da experiência humana para compreender que a vida é ficção. O caráter ilusório da existência fenomenológica tem o mesmo fascínio do teatro, mas não é gratuito um jogo cujo sentido se oculta em outra esfera do ser.

Entre outras coisas, o “sonho do Autor” a que o prefácio da obra se refere dá continuidade ao experimentalismo iniciado alguns anos antes, com a primeira parte da trilogia Rumo a Damasco. Movido por inquietações de ordem filosófica e religiosa, o dramaturgo sueco se afastara, nos últimos anos do século 19, do programa naturalista. Livres no tempo e no espaço, exercitando a razão sobre dilemas éticos e contradições sociais, mesclando a fala cotidiana ao interlúdio poético, as personagens dessas arquiteturas abstratas não foram da fácil assimilação pelo teatro europeu contemporâneo do dramaturgo.

Foram as obras da primeira fase de sua carreira, históricas, de inspiração lendária ou dramas de observação da vida social e dos conflitos psicológicos que passaram a integrar o repertório das companhias até o fim do período entre guerras. E foram as peças formalmente aparentadas à estética naturalista que, de certo modo, mantiveram na berlinda a fama desse singular autor sueco durante todo o século 20. Senhorita Julia (1888) tornou-se emblemática por sintetizar os temas da luta de classe e da competição entre os sexos. Outras peças em que se travavam formidáveis embates entre esposas e maridos, amantes, pais e filhas exploraram a substância dramática dos processos psíquicos inconscientes. Enquanto o drama realista exemplar do século 19 desvendava os motivos das situações e personagens, os conflitos em Strindberg permaneciam insolúveis. Apesar disso, suas criaturas não renunciam ao pensamento. Querem compreender enquanto vagueiam em meio à névoa do psiquismo e é esse traço que as distingue da fatalidade naturalista e as faz contemporâneas da era freudiana.
(19/96/11)

Nenhum comentário:

Postar um comentário