Um asturiano criado no México, com nome de rei medieval, Paco Ignacio Taibo II, inaugurou de forma sui-generis os festejos pelo centenário de morte do escritor italiano Emilio Salgari. Pegou o mais aclamado herói salgariano, o exótico príncipe malaio Sandokan, defensor dos fracos e oprimidos do Sudeste Asiático, e o expôs a novos desafios, na mesma latitude de antanho (os mares do Oriente), com o mesmo parceiro (Yáñez de Gomara) de outras refregas contra os parasitas do colonialismo europeu. Por enquanto, El Retorno de los Tigres de la Malasia só pode ser lido em espanhol, editado pela Planeta.
Conhecido por alguns romances policiais e duas biografias (Che Guevara e Pancho Villa), Taibo, de 61 anos, não quis simplesmente pegar carona num secular fenômeno literário – por sinal, ainda de pé, inclusive no Brasil, onde a farta galeria de heróis salgarianos reluz nos catálogos da Ediouro e da Iluminuras -, mas apenas quitar sua dívida com o criador de Sandokan. Foi através das aventuras do Tigre da Malásia, do Leão de Damasco, do Capitão Tormenta, do Corsário Negro, de Tremal-Naik e outras míticas figuras da literatura infanto-juvenil criadas por Salgari no final do século 19 que Taibo descobriu o prazer da leitura e tomou suas primeiras lições sobre o valor moral da coragem, a cupidez dos poderosos e as nefastas ações ultramarinas dos impérios europeus.
Umberto Eco já prestara sua homenagem ao mestre veronês, por intermédio de um alter ego, Yambo, o reminiscente protagonista de A Misteriosa Chama da Rainha Loana. Taibo foi mais audacioso: não só reincorporou o universo ficcional de Salgari, como o revitalizou, modernizando-o, problematizando-o, politizando-o, pero sin perder la bravura. Alguns roteiristas da antiga Warner fizeram mais ou menos a mesma coisa com as peripécias (reais, legendárias ou imaginárias) de arqueiros, corsários e espadachins formidáveis, muito antes de Robin Hood receber de Eric Hobsbawm a fidalga insígnia de “bandido social”.
Já que uma parcela das sagas salgarianas foi escrita por mãos anônimas, a pedido do próprio filho do escritor, dispensam-se as objeções dos puristas. Salgari inventou e modelou todos os personagens, produziu a maior parte dos romances (a bem dizer, novelas), deu-lhes o espírito aventureiro e a tônica anticolonialista; Taibo soube aproveitar-se bem do que não ouso chamar de franquia, esquivando-se de injetar antígenos revisionistas nas façanhas do “pirata do bem”. Nenhum vilão de outrora virou mocinho em seu atualizado pasticho, narrado de uma “perspectiva marxista”, salienta o autor, para quem, esclareça-se, Os Três Mosqueteiros era (ou é) uma aventura marxista. O avant lettre não é facultativo.
Sessentões e de cabelos brancos, mas ainda vigorosos e intrépidos, Sandokan e Yáñez viajam até a ilha de Bornéu para desvendar a conspiração de uma sociedade secreta chinesa (o Clube da Serpente) que inferniza os pobres ilhéus asiáticos. Tornaram-se homens de ação e reflexão. Yáñez virou um justiceiro filosofante, que sabe de cor provérbios chineses e cita Calderón de la Barca e Quevedo. Como envelhecer com vigor e dignidade é um dos temas subjacentes da novela, em cuja trama se intrometem outras obsessões de Taibo, como Friedrich Engels (coautor do Manifesto Comunista), o professor Moriarty (o arquirrival de Sherlock Holmes), o escritor Rudyard Kipling (no papel de um jornalista) e Old Shatterhand (parceiro de Winnetou, o totêmico pele-vermelha inventado pelo alemão Karl May, outra estrela da ficção juvenil, contemporâneo de Salgari).
A inserção de Kipling é um achado. Jornalista de profissão, era nessa condição que ele narrava o conto O Homem Que Queria Ser Rei, adaptado ao cinema por John Huston e parcialmente inspirado nas proezas do britânico James Brooke, o primeiro rajá branco de Sarawak, no Bornéu, e o mais graduado rival de Sandokan. É quase um ciclo que se fecha; ou melhor, continua – infelizmente ad infinitum, ao que tudo leva a crer.
O viés marxista adotado por Taibo é uma licença poética, não de todo descabida. Ao contrário de Jules Verne, a quem chegou a ser comparado por conta de uma fantasia futurista ambientada no ano 2000, Salgari não via chances na utopia socialista, a seu ver, disse-o com outras palavras, um dinossauro ideológico. “Era uma bela utopia, que na prática não funcionou, resultando numa espécie de escravidão”, esclarece o guia dos visitantes do passado em As Maravilhas do Ano 2000, acrescentando: “Assim, voltamos à antiga e hoje há pobres e ricos, patrões e empregados, como sempre aconteceu desde que o mundo começou a ser povoado”.
Salgari tinha apenas 21 anos quando publicou seu primeiro folhetim, O Tigre da Malásia, em 1883, num jornal de Verona. Era uma máquina de produzir histórias, menos por gosto e vocação do que por pressão de um editor sanguessuga, que o obrigava a entregar vinte páginas de texto por dia e, no fim, o deixou de pires na mão. Desesperado, tentou em vão matar-se em 1909. Em 25 de abril de 1911, com uma faca de cozinha, praticou um haraquiri. Deixou três cartas: uma para os filhos, outra para um jornal de Turim, onde vivia, e outra para seus editores. Nesta escreveu: “De vocês, que enriqueceram à custa do meu suor, mantendo a mim e minha família na miséria, o mínimo que espero é que paguem o meu funeral. Saúdo-os quebrando a minha pena. Emilio Salgari”.
SERGIO AUGUSTO – O Estado de S.Paulo
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