Muita gente me diz que eu tenho boa memória, dizem que eu lembro muitas coisas, coisas que ninguém mais lembra. Não sei. Acho que não é bem verdade. O gatilho de nossas lembranças dispara quando estamos receptivos para a experiência, quando queremos lembrar coisas.
Quando pequeno, no início da infância, lembro da “venda do Zé Pretinho”. Muitos se lembram dela também, se começamos a conversar sobre as coisas que tinham lá é provável que até a sua memória vá se expandindo. Não existem mais vendas como aquela nos dias de hoje, não aqui na cidade, talvez no interior. Talvez.
Seu Zé tinha uma voz rachada como bambu, estridente. Era pequeno, mas eu também era. Ele se escondia atrás dos balcões. Eu também. A sua venda tinha coisas de papelaria, canivetes, aqueles espelhinhos com moldura laranja, pentes redondos de encaixar na palma da mão, chapéus de palha e de vaqueiro, pipas, bandeirolas. Eu ia lá por causa dos doces e do refrigerante.
Tinha cocada branca e escura, pé de moleque, Maria mole e uns sorvetes que pareciam isopor. Chicletes, balas de todos os tipos e aqueles doces estranhos em forma de coração com sabor de abóbora e outras coisas que hoje parecem bizarras. Do lado da venda do Zé Pretinho tinha uma costureira. Indo em direção a nossa casa ficava o barraquinho do sapateiro.
O Zé Pretinho vendia coisas proibidas para os guris, por isso mesmo comprá-las era parte da diversão. Especialmente as bombinhas. Tinham as irritantes pimentinhas que vinham numa caixinha de papelão, as bombinhas pequenas com um fósforo para riscar que a gente chamava de “peido de velha” e as grandes apelidadas de “cabeça de nego”. Bom, lá também tinha rapé.
Foi a primeira droga que eu experimentei, afinal, o rapé é tabaco para inalar. Eu não fazia idéia que aquilo era droga, também não lembro como a moda se difundiu entre a garotada. Achava o máximo cheirar aquele pozinho escuro e apimentado e depois ficar espirrando. As vezes o rapé descia para a garganta e o gosto não era ruim. Duas coisas me fizeram lembrar do rapé e é assim que nossa memória distante funciona.
Na quinta passada encontrei com o Toninho, velho amigo daqueles tempos. E no sábado fui na Vila Rubim com um amigo que parou para comprar folhas de chá e lá vendia rapé também. Peguei a latinha redonda de metal, as memórias se fundiram. Toninho me falou do falecimento de Glorinha, sua mãe e foi ela, dentre os adultos, quem primeiro se deu conta de nossa traquinagem. Tomamos um brigueiro daqueles, rolou até a ameaça de proibir o filho de andar comigo.
Lembro de ter ficado chateado com sua reação, para mim exagerada, meus pais não costumavam me chamar a atenção daquela maneira. Talvez fosse melhor se o tivessem feito, talvez para um outro futuro. Talvez. Nunca tive chance de a agradecer, ela era uma pessoa que queria o nosso bem. Mas é assim que as coisas são. Em seu momento as pessoas se vão e nós ficamos aqui, nós e as nossas pequenas lembranças.
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