domingo, 16 de janeiro de 2011

Memorialista do tempo

Há 100 anos nascia Rachel de Queiroz, escritora que se firmou como uma das mais importantes do país num tempo em que a literatura era ainda universo de domínio masculino

Rachel de Queiroz não era uma pessoa fácil. Crítica, ácida, pioneira e avessa a convenções, a primeira mulher a integrar a Academia Brasileira de Letras passou a vida brincando com as palavras, falando por meio de seus personagens. Neste ano em que se comemora o centenário de nascimento da escritora, as editoras prepararam uma série de lançamentos para marcar a data. Nada melhor do que livros para lembrar a autora de O Quinze (1930). Num deles, Ensaios, assinado por Luis Bueno e Heloísa Buarque de Holanda, com apresentação de Nélida Piñon, a autora de A República dos Sonhos conta que submetia seus primeiros textos ao crivo nada generoso da acadêmica.

Também foram lançadas duas coletâneas com crônicas inéditas em livro escritas entre 1920 e 1980, onde a escritora fala sobre política, literatura e cultura.

Rachel renovou a ficção regionalista. Conseguia contar uma história complexa de forma simples, sem atrelar suas convicções ideológicas. Não usava termos eruditos para expressar o sentido reivindicatório de sua obra. Em O Quinze, relata a saga dos retirantes, a dor de ver a terra secar sem piedade, matando gente, terra, plantações, sonhos e esperança. Embora a família fosse abastada, foi em consequência de uma seca que fugiram do Nordeste, para o Rio de Janeiro, em 1917. Seu pai era promotor e conseguiu a transferência de Fortaleza para a capital fluminense. São das lembranças deste período que nasceu seu primeiro livro, onde, com cenas e episódios do Nordeste brasileiro, relata a condição de retirante. Mesmo tendo enfrentado o drama da seca que assolou a região em em 1915, Rachel consegue manter um olhar crítico e observador do passado. Em nenhum momento ela empunha uma bandeira. Aprendeu (ou ensinou) a olhar com as palavras. Ela passa toda a sua preocupação social por meio da análise psicológica do homem nordestino, que, pressionado por forças atávicas, aceita a sua condição.

Embora o espaço seja pequeno e a obra gigantesca, seria injusto reduzir Rachel a O Quinze, livro que, aliás, ela detestava. Sua produção literária é imensa. Escreveu romances, ensaios, artigos, crônicas, peças de teatro e assinou trabalhos com Graciliano Ramos. Entre suas principais obras estão os livros As Três Marias (1939) que foi ilustrado por Aldemir Martins. Na obra, ela trata do papel da mulher na sociedade. Se hoje o tema ainda suscita discussões, imagine a repercussão nos anos 1940.

Em Memorial de Maria Moura (1992), ela faz a junção de forma e conteúdo para contar a história de uma órfã que ainda jovem se mete numa disputa de terras e traça um retrato irretocável da vida rural do Nordeste. Maria Moura enfrenta os parentes que iam matá-la, bota fogo na casa e foge. A partir daí, se mete no mato, organiza roubos, planta, manda matar, cria gado e faz de tudo para se tornar uma fazendeira rica e temida. Rachel conta a história em primeira pessoa. É como se pegasse na mão do leitor e o levasse para uma grande aventura.

Chamar Rachel de pioneira não é nenhum exagero. Na época em que as mulheres eram educadas para casar e constituir família, a jovem cearense fugia à regra ao se tornar escritora, publicar livros, ingressar na Academia Brasileira de Letras, colaborar com o partido comunista em 1930 (na verdade, se desentendeu com o grupo no primeiro dia depois de sua admissão), participar da campanha que levou à queda de Getúlio Vargas em 1945 e ajudar na articulação do golpe de 1964 que derrubou o presidente João Goulart.

Todo esse envolvimento político, somado à linguagem coloquial e uma extraordinária capacidade de observar a vida como se estivesse na janela fez de Rachel uma mulher atilada, forte, indecifrável.

Em Tantos Anos, livro de memórias lançado em 1998 e escrito com a ajuda da irmã Maria Luíza, ela relembra causos, histórias, brincadeiras, reuniões de família, a vida política e literária, sempre preservando a intimidade. Não gostava de falar de sua rotina.

Dizia que não era uma pessoa feliz, apenas conformada com a natureza, enxergava morte como libertação, não relia os livros, tinha Machado de Assis como ídolo e dizia que sempre sorria nas fotos porque séria “ficava muito feia”.

JACQUELINE IENSEN

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