domingo, 2 de janeiro de 2011

Olhares distintos sobre o mesmo ''mito'' (entrevista com André Singer e ...)

Entrevistas: Andre Singer, doutor em Ciência Política e Chico Oliveira, sociólogo aposentado da USP (*)

Intelectuais emergentes do PT fazem avaliações divergentes sobre o saldo político dos oito anos de governo de Luiz Inácio Lula da Silva

Malu Delgado e Alberto Bombig

Luiz Inácio Lula da Silva despede-se do poder com um catálogo de aliados e críticos, inclusive dentro do próprio PT. Em janeiro de 2003, quando subiu a rampa do Palácio do Planalto para passar à história como o primeiro presidente operário do Brasil, o cientista político André Singer e o sociólogo Chico de Oliveira integravam o staff de intelectuais de esquerda ligados ao PT que ao longo de duas décadas ajudaram a formular as bases e os programas do partido.

Singer, que hoje dedica-se a entender as "razões sociais e ideológicas do Lulismo", seria nomeado porta-voz da Presidência logo em seguida e permaneceria no cargo durante todo o primeiro mandato, desligando-se do governo em 2007 para retomar as atividades acadêmicas.

Oliveira, em outro extremo, romperia com partido que ajudara a fundar quatro meses depois, decepcionado com os rumos do governo. Agora, ao término da Era Lula, ambos fazem ao Estado um balanço, antagônico no conteúdo, do que ficará para a História da passagem do ex-metalúrgico pelo poder.

Para Oliveira, sempre calcado nos ditames do pensamento de esquerda, Lula teve desempenho mediano e não deixará um legado aos trabalhadores brasileiros. Singer, embasado na análise sobre a atração que Lula exerceu às classes menos favorecidas, destaca a incorporação social como sua principal herança.

Andre Singer: ‘Lula deu provas expressivas de apego à democracia’

A vinculação do "subproletariado" a Lula, que o sr. classifica de "lulismo", justificaria, por si só, a alta popularidade em 8 anos?

Não. São dois fenômenos ligados, mas diferentes. De um lado tem essa mudança de base social, que tem a ver com esse processo de realinhamento que começa em 2002 e se completa em 2006 e é caracterizado por essa mudança de perfil da base eleitoral de Lula e do PT: antes muito ligado à classe média e, agora, ao subproletariado (a faixa da população com renda familiar mensal de até dois salários mínimos). A outra coisa é que no segundo mandato os índices de popularidade subiram muito e, evidentemente que quando chegam à proporção a que chegaram atingiram muito mais gente que o subproletariado. O que é característico desse período é o fato de que a candidatura Dilma foi sustentada exatamente por esses eleitores subproletários. A alta popularidade tem, de um lado, essa base fiel que se expressou na votação da Dilma, acrescida de um público de classe média que provavelmente decorre de um grande êxito econômico do governo. O governo conseguiu produzir uma situação de crescimento que parece ser sustentável.

No seu ensaio sobre as raízes sociológicas do lulismo, o sr. menciona que o suporte do subproletariado deu "autonomia bonapartista" a Lula. O presidente foi estadista? Foi democrático?

O bonapartismo tem associação com componentes militares, o que definitivamente não está em questão. Quando eu disse que há uma certa autonomia, é de fato o resultado de uma base social que se articulou a partir do projeto executado no primeiro mandato de maneira que lembra uma passagem do Marx no O 18 Brumário, aquela em que ele diz que no caso da França os camponeses não podiam se auto-organizar enquanto classe. Eles tinham de ser organizados de cima para baixo, por identificação com quem estava no alto. Tem algum grau de semelhança com a situação dos subproletários no Brasil. Quando eu lancei a hipótese de que haveria por parte desse setor uma identificação com o projeto do presidente Lula, eu estava querendo dizer que essa camada se articulou, virou um ator político. É nesse sentido que foi feita a comparação com O 18 Brumário. Eu diria que o presidente deu provas expressivas de apego à democracia, e a maior delas é não ter patrocinado uma emenda em favor do terceiro mandato. Ele poderia ter feito, teria condições políticas para isso. Fez uma opção a favor da alternância do poder.

Um dos aspectos do populismo clássico é a identidade do líder com as massas, sem intermediários - característica de Lula. O presidente resvalou para o populismo em seu governo?

Lentamente, o lulismo está caminhando para o PT. Isso faz com que esse traço de ligação direta não esteja ocorrendo porque há fortalecimento de um partido político. Talvez o que exista é uma certa continuidade entre o lulismo e o getulismo, continuidade que não pode ser tomada fora do seu contexto. Estaria ligada ao fato de que tal como Getúlio Lula também parece estar incorporando setores que historicamente estavam fora do arranjo social principal, estavam à margem. Embora haja tantas diferenças entre a situação dos anos 50 e a atual, certa gramática política parece que voltou. Não temos elementos suficientes para falar em populismo.

A semelhança entre Vargas e Lula estaria na incorporação de classes excluídas ou há semelhanças entre os dois?

As semelhanças maiores teriam relação com essa incorporação e com o grau de autonomia que esse elemento de incorporação tenha dado a um e a outro. Essa autonomia leva a um componente importante que é a capacidade do presidente de arbitrar o conflito entre as classes.

O presidente Lula soube arbitrar conflitos de classe?

Sem dúvida. Foi um dos traços dos dois mandatos. Ele teve êxito nessa operação delicada. Um bom exemplo é perceber como dentro do governo há o agronegócio e setores que pressionam pela reforma agrária.

O sr. fala da incorporação de duas almas contraditórias ao PT (incorporação ao capital e inclusão social). Essa divisão está na cabeça de Lula?

A impressão que tenho é que ele opera por sínteses. O governo abriu espaço às duas almas.

Qual é o maior legado de Lula?

A incorporação, a inclusão social. O Brasil sempre operou por uma modalidade de permanência das elites com alta dose de exclusão. Esses oito anos abriram a porta, deram os passos iniciais para essa inclusão. Os exemplos são múltiplos, e vão desde o Bolsa-Família até a geração de empregos, passando pelo aumento do salário mínimo, crédito consignado.

Ao deixar o governo como "pai dos pobres", Lula incitou a divisão de classes no País?

Não incita divisão. Se a gente for fazer um balanço, vai prevalecer essa decisão de não promover a radicalização política. A política do governo não é radical, não incita a divisão. Embora não incite, essa divisão é real. O Brasil é um país muito desigual e foi de fato feita uma política em que favoreceu um setor da sociedade que estava historicamente fora. Esse movimento de inclusão social está produzindo uma certa polarização, que é sociopolítica. Até aqui essa polarização não tem dado sinais de ameaças à democracia. Enquanto isso estiver dentro dos marcos democráticos, não é necessariamente negativo. Há uma polarização com bases sociais. Os atores políticos e o presidente, em particular, não estão incitando uma polarização.

O sr. vê mudanças entre o primeiro e o segundo mandato?

Vejo. Houve uma certa inflexão "desenvolvimentista" no segundo mandato, inflexão à esquerda no sentido de flexibilizar o gasto público.

A crise do mensalão poderia ter custado a reeleição se Lula não tivesse apoio popular?

Poderia. O episódio marcou o afastamento de uma base eleitoral de classe média. Se em lugar de ter esse movimento de novas adesões ao presidente na base da sociedade em 2006 tivesse havido movimento de espraiamento da rejeição, diria que teria marcado um outro destino.

QUEM É
É doutor em Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), jornalista, ex-porta-voz (de 2003 a 2007) e ex-secretário de Imprensa (no período de 2005 a 2007) da Presidência da República do governo de Luiz Inácio Lula da Silva.


Chico Oliveira: ‘O presidente esteve à beira de se tornar um autoritário’
(*)a entrevista com Chico de Oliveira foi postada separadamente no blog, ontem, dia 1º/01.
Fonte:as entrevista foram publicadas no Caderno especial de O ESTADO DE S. PAULO
(Publicado em 1º/01/2011)

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