É pau, é pedra, é o fim do caminho. O sítio onde foi composta Águas de Março, de Tom Jobim, foi arruinado pela enchente. Pelo menos restou dele uma transfiguração cultural. Mas o que restará não só do sítio de Tom, mas de todos os mortos e casas humildes na imaginação dos políticos brasileiros?
Austrália, Venezuela e Brasil viveram grandes desastres naturais. Três respostas diferentes.
A primeira-ministra Julia Gillard visitou a região e designou o general Mick Slater, que é de Queensland, para coordenar os esforços de socorro e reconstruir a área devastada. Foram 24 mortos, 12 desaparecidos. A especialista Debarati Guha-Sapir, do Centro para a Pesquisa da Epidemiologia de Desastres, na Bélgica, explica assim a performance australiana: "A Austrália é um país com uma infraestrutura melhor, com maior capacidade de alocar recursos e equipamentos para a prevenção e o resgate, com instituições e mecanismos mais democráticos, que conseguem atender toda a sociedade, incluindo os mais pobres, que estão em áreas de mais risco".
O caso da Venezuela é singular. O presidente Hugo Chávez teve papel decisivo e direto. Ele se jogou no trabalho, visitou comunidades, tornou-se o comandante de toda a operação de resgate. Mas utilizou esse esforço para fazer avançar seu projeto de socialismo, a partir da autoritária Lei Habilitante.
Chávez manipulou, politicamente, o desastre natural em duas outras direções. Numa delas, tentou enfraquecer os seus adversários, insinuando que a Igreja Católica não foi solidária o bastante; na outra, focalizou a discussão apenas no destino das vítimas, evitando qualquer tipo de conversa sobre prevenção. Chávez está no governo há 11 anos e já confessou o fracasso no campo da moradia popular.
No Brasil não houve nem a eficiência da resposta australiana, nem a comoção política detonada por Chávez. Aqui o processo de desastres naturais é tratado na cintura, com drible de corpo, empurrando com a barriga, fingindo de morto, enquanto passam as denúncias de descaso e editoriais exaltados.
Chávez é especial, mesmo entre os populistas. Seu impulso de ir às favelas é irresistível. Não é necessário grande protagonismo presidencial. Mas cairemos na velha malemolência se ficarmos apenas nos projetos de reconstrução, que não se concluem e, às vezes, almejam o absurdo de deixar as coisas como estavam antes.
O Brasil precisa rever sua política para desastres naturais. Dada a importância do problema no século 21, não se pode designar sempre alguém de um partido e sempre do Nordeste. Passou a época em que desastre natural era sinônimo de seca, concentrada no sertão. E o tema é grande demais para se tornar feudo de um partido.
Com tanta tragédias, o País ainda não aprovou um fundo especial para amenizá-las. Essa lacuna permite que presidentes sobrevoem as áreas, vertam algumas lágrimas e prometam alguns milhões, quase uma dádiva pessoal. Quem acompanha os desastres sabe que, de milhões anunciados, apenas milhares chegam ao destino, e sem vigilância social na aplicação.
Um ministro à altura dos tempos tem como tarefa criar uma Defesa Civil capaz de responder com treinamento, simulações e planos concretos para cada área. Não pode ter apenas qualidades gerenciais, ao menos na fase de implantação. Precisa de diálogo com a sociedade, para atrair adesão ao projeto.
Tanto na Austrália como no Caribe, a comunicação com a sociedade é vital. É feita pelo rádio e pela internet, mas as práticas modernas aconselham também a desenvolver lideranças locais e dotá-las de equipamento para receber e difundir as mensagens de alerta.
Quando Santa Catarina sofreu o golpe do furacão, as cartilhas do Caribe, colhidas na internet, ajudaram na emergência. Em Santo Antônio de Pádua (RJ) a tempestade arrasou o único hospital, foi preciso tirar às pressas todos os que dependiam de hemodiálise. Com uma lista prévia dos que dependem de certos procedimentos médicos, de quem não pode andar, de asilos, creches, orfanatos, as coisas ficam menos difíceis.
Muitas cidades não têm Defesa Civil. Não há como deslocar forças nacionais com eficácia sem uma correspondência local. Pode-se exigir isso com restrições na distribuição do fundo municipal, caso a cidade resista.
O debate nacional concentra-se muito na definição das culpa e nos caminhos estratégicos, tais como definição de áreas de risco, construção de novas e seguras moradias. Com isso ficou um pouco de lado o debate específico sobre a qualidade da resposta aos desastres naturais. A responsabilização dos políticos, até mesmo com sanções penais, é importante. Também o é a construção de uma infraestrutura adequada.
O problema é o seguinte: vai chover de novo, antes de se construir infraestrutura e os políticos tomarem vergonha. Daí a necessidade urgente de ocupar um novo espaço. A presidente Dilma poderia inspirar uma convergência em torno do ponto específico: resposta aos desastres naturais. Não adianta o governo confessar sua fragilidade à ONU nem desengavetar um projeto antigo. É preciso discutir com a sociedade que corre o risco.
Chávez enveredou pela desapropriação de terrenos e vai decretar o fim do despejo legal por falta de pagamento de aluguel. A ideologia tem uma saída pronta.
A miséria da política brasileira não é politização extrema do desastre natural. Sua tendência é continuar com a cabeça enterrada na areia, discutindo cargos e verbas, até o vendaval passar.
Há um fator permanente na sociedade brasileira: a solidariedade às vítimas No entanto, não há ainda interesse pela prevenção, nem cobertura da imprensa para o tema.
Os desastres naturais obrigam-nos a uma mudança cultural de grande porte. O ideal seria estar à altura da tragédia ou, pelo menos, crescer um pouco diante dela. Toda uma política jaz sob os escombros das recentes tragédias que chamamos de naturais, sabendo que a natureza não existe sem nós.
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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