segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Os sindicatos e a política (Luiz Werneck Vianna)

Os primeiros cem dias consistem na marca cabalística a partir dos quais a imprensa sonda os sinais premonitórios a anunciar o caráter de governos novos. No caso que se apresenta diante de nós, talvez um tempo mais curto possa bastar porque, nestes últimos dias de janeiro, com essa controvérsia sobre o valor do salário mínimo, já se sabe de que algo mudou no estilo e na forma das relações do governo com os sindicatos na passagem de bastão de Lula a Dilma.

A própria retórica encrespada de que fazem uso importantes dirigentes sindicais em defesa de suas posições indica que as tensões contidas nessa matéria não são triviais. Anote-se que a pesada qualificação - política nefasta -, usada por um deles, foi destinada ao governo Dilma, embora tenha sido o de Lula que, em seus últimos dias, condenou ao veto qualquer aumento acima do teto de R$ 540. Aí, talvez, uma pista para elucidar um novo estado de coisas no sindicalismo.

Com Lula, quadro político originário do sindicalismo metalúrgico, vários representantes da vida sindical vão ser alçados a postos influentes em várias agências estatais, quando não ao próprio governo. Nesses primeiros tempos, contudo, os sindicatos praticamente se limitam a manter uma postura solidária ao governo de um ex-sindicalista sempre pronto à interlocução com eles, uma vez que, diante de uma quadra desfavorável ao mundo trabalho como era aquela, não contavam, mesmo que o desejassem, com condições propícias a fim de mobilizar suas categorias, quer em torno de suas demandas, quer, menos ainda, para levá-las a interferir na arena política.

Algo mudou nas relações do governo com os sindicatos

Essa postura favorável ao governo do mundo sindical, no entanto, conhecia uma zona de sombra: historicamente o PT e seus dirigentes sindicais eram defensores do pluralismo sindical, enquanto que a maioria dos sindicatos propugnava pela manutenção do modelo da unicidade, base de sustentação de uma legislação que nos acompanha desde o Estado Novo. Em 2004, depois dos resultados frustrantes do Fórum Sindical, convocado pelo governo com a intenção de promover uma profunda reforma na legislação sindical, essas importantes distinções doutrinárias são canceladas. O que fará as vezes de uma reforma terá o seu sentido original invertido: reforçam-se os vértices da vida sindical, e não as suas bases, resultado oposto à proposta dos próceres sindicais da CUT e do PT, incorporando-se as centrais à estrutura da CLT, inclusive concedendo-lhes acesso a recursos extraídos do chamado imposto sindical.

Unificado em torno de princípios de organização, o sindicalismo passa a ocupar um papel relevante no governo, com as diferentes centrais atuando de modo concertado, do que é melhor exemplo as boas relações entre as antigas rivais CUT e Força Sindical. A crise do "mensalão" que, ao longo de 2005, fragilizou politicamente o governo, atou ainda mais os vínculos entre ele e os sindicatos, cada vez mais influentes nos rumos da administração, inclusive em matéria econômica.

A fórmula atual que preside o reajuste do salário mínimo é filha dessa conjuntura particular, e não à toa, agora, quando as centrais contestam a proposta do governo, estejam tão presentes os sinais de que essa controvérsia é mais política do que propriamente salarial. Na matéria, parecem insinuar as centrais sindicais, suscetibilizadas em razão de se sentirem ultrapassadas na tomada de uma decisão que as afetaria, estar-se-ia diante de um retrocesso na orientação econômica do governo que, na questão salarial e na da elevação dos juros, estaria optando por um caminho adverso a uma estratégia de crescimento, a mais adequada, em sua avaliação, para o momento atual, como o enfrentamento da crise mundial de 2008 teria demonstrado.

Assim, nas negociações ainda em curso entre governo e as centrais sobre a questão do mínimo salarial, de desfecho ainda imprevisível, a novidade é a de que o programa do governo Dilma de racionalização da economia e da administração, com base em sua interpretação do estado de coisas reinante no país e no mundo, entre outros efeitos - inclusive os benéficos - que já está a produzir, traz, entre eles, também os não desejados, como o da quebra do encanto, tão celebrado nos governos de Lula, entre governo e sindicatos.

O sindicalismo vive, no país, um momento de reafirmação, como atestam vários indicadores, entre os quais a expansão dos sindicatos, o número de trabalhadores a eles filiados e significativas conquistas salariais. No mais, reza consensualmente a bibliografia, um mercado de trabalho de pleno (ou quase) emprego, combinado com economia aquecida e amplas liberdades civis e públicas, consiste no ambiente ótimo para sua floração. Em particular, se estão expostos a uma dura competição entre si, política e sindical, como no caso das centrais brasileiras.

Sob essas condições, a um tempo fáticas e institucionais, é equívoco concebê-las no papel de correias de transmissão da vontade do Estado nos moldes da Carta estadonovista de 1937. A partidarização das centrais, de fato, trouxe uma mutação benigna na forma sindical na medida em que obstou uma comunicação direta entre sindicato e Estado - entre eles há os partidos. Sua dimensão claramente malévola está em outro lugar: na distância que ela propicia entre os vértices sindicais e as suas bases, dotando os primeiros de recursos próprios.

Por definição, o aprofundamento da racionalização do capitalismo brasileiro que ora se apresta, não terá como evitar a determinação de fronteiras mais nítidas a separarem o campo da política do campo da economia, ao contrário daquelas linhas frouxas que as demarcavam no segundo mandato de Lula. O sindicalismo poderá continuar a ter assento em posições influentes no governo e em suas agências, mas na gestão dura da administração e da economia, como se pode entrever nesse pequeno episódio do mínimo salarial, crescentes dificuldades devem pavimentar o rumo de suas relações. Sem que se esqueça que há várias centrais em competição, cada qual vigiada por todas as outras. Além do Estado, como já se ouve dos sindicatos, há o parlamento e as ruas.

Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador da PUC-RJ. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional. Escreve às segundas-feiras

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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