quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

LIVROS PARA BEBER

Vodca e absinto são temas de dois volumes recém-lançados em que as bebidas são mote para histórias de costumes, cultura e política

Raquel Cozer
Um século antes de o governo brasileiro estudar a obrigatoriedade de advertências sobre o consumo do álcool em anúncios publicitários, o escritor Leon Tolstoi (1828-1910) criava, na Rússia, o que poderia vir a ser o primeiro alerta da história sobre os malefícios da bebida, a ser colocado em garrafas de vodca: um rótulo com uma caveira, ossos cruzados e a palavra “veneno”.

Àquela altura, em 1909, o governo russo detinha o monopólio da vodca no território, de modo que o esforço de reduzir os altíssimos níveis de alcoolismo no país não vingou, com a rejeição do selo pelo Conselho Imperial. Ele próprio um ex-boêmio de primeira, Tolstoi passou a pregar a abstinência após viver uma crise religiosa. Culpava o álcool por 90% dos crimes e pela perda da virgindade de metade das mulheres na Rússia, em coro com o amigo Anton Chekhov (1860-1904), que se referia aos produtores do destilado como “mascates de sangue do diabo”.

Criado como produto medicinal no século 16, a vodca já era a beberagem favorita dos russos quando, na metade do século 19, o jovem Piotr Arsênievich Smirnov iniciou o maior império da bebida no país. Foi a partir da saga desse servo quase analfabeto que comprou a própria liberdade e construiu a mais famosa marca de vodca do mundo, a Smirnoff, que a jornalista norte-americana Linda Himelstein escreveu O Rei da Vodca, lançado no fim do ano por aqui.

Mudanças profundas. A trajetória da empresa serve apenas como fio condutor de uma história de costumes, cultura e política da Rússia ao longo dos últimos séculos. “Não queria escrever um livro de negócios. Queria contar a história fabulosa dessa família que conheceu todos os níveis de uma sociedade imersa em mudanças profundas”, diz a autora por telefone ao Estado, de São Francisco.

Foi uma dessas mudanças profundas que fez Linda perceber a boa história que tinha em mãos. Em meados dos anos 90, um representante da família Smirnov nos Estados Unidos procurou a autora, então editora da revista Business Week, com um caso curioso. Com a extinção da União Soviética, um grupo de descendentes de Piotr Smirnov havia entrado na Justiça para reaver os direitos da marca de vodca mais vendida no mundo.

A empresa milionária criada pelo ex-servo tinha sido extinta na Rússia depois da Revolução de 1917. Refugiado na França, nos anos 30, um dos filhos de Smirnov, Vladimir, vendeu para o também exilado russo Rudolph Kunett a licença para vender a bebida nos EUA. Acontece que Vladimir já não tinha direitos sobre a marca ao fechar o negócio. Anos antes da Revolução, havia passado suas ações para o irmão mais velho, Piotr Pietróvich. Kunett fez da Smirnoff (com o nome ocidentalizado, com dois “f” em vez do “v”) uma das marcas de bebida mais consumidas no mundo numa época em que o regime comunista tornava impensável uma empresa em seu território fazer o mesmo.

O artigo de Linda sobre o caso saiu em 1996. Três anos depois, a Justiça rejeitou as reivindicações dos Smirnov, já que foi o trabalho de Kunett que tornou a marca conhecida no Ocidente. Em 2005, durante pesquisas na Rússia, Linda conheceu alguns dos descendentes de Piotr Smirnov. Foi com surpresa que descobriu que, muito simples, eles pouco sabiam da história do antepassado que rompera todas as barreiras sociais para criar um império. Por ironia do destino, boa parte dos Smirnov havia voltado às classes mais baixas da sociedade, das quais Piotr batalhara a vida toda para sair.

Repórter
Com o fim da URSS, família Smirnov entrou na Justiça para reaver os direitos da marca. Linda correu atrás da notícia

ABSINTO – UMA HISTÓRIA CULTURAL
Autor: Phill Baker. Editora: Nova Alexandria
(364 págs., R$ 52).
O REI DA VODCA – A SAGA DA FAMÍLIA SMIRNOV
Autora: Linda Himelstein. Editora: Zahar (228 págs., R$ 39).

CHERNOBYL NA VIDA DE VERLAINE E WILDE

O nome russo para a artemísia, planta da qual se origina o absinto, é chernobyl. A coincidência com o nome da usina que, em 1986, protagonizou o maior desastre nuclear do mundo tem algo de significativo quando se pensa na história da bebida em questão, indissociável da vida e da obra de grandes nomes da arte e da literatura, como Paul Verlaine e Oscar Wilde.

É dessa relação intrínseca que trata Absinto – Uma História Cultural, do jornalista Phil Baker, cuja pesquisa destaca a chamada “década do absinto”, a última do século 19. Naquele momento, a bebida estava mais em alta do que nunca entre escritores. Não à toa, dois de seus mais notórios consumidores, Oscar Wilde e Ernest Downson, morreram justamente em 1900. Como escreveria anos depois, num ímpeto otimista, W.B. Yeats: “Aí, em 1900, todo mundo desceu das pernas de pau; doravante, ninguém tomava absinto com café preto; ninguém mais ficava louco; ninguém mais se suicidava; ninguém se convertia ao catolicismo; ou, se o faziam, esqueci.”

A artemísia era usada desde milhares de anos antes de Cristo como erva medicinal. Pitágoras dizia que folhas da planta maceradas em vinho facilitavam o parto, enquanto Hipócrates as indicava para dores menstruais e reumatismo. No Renascimento já se consumiam outras bebidas derivadas da planta, também macerada em vinho. Foi só no século 18 que surgiu o absinto tal como ficou conhecido, uma das bebidas de mais alto teor alcoólico da história. Passaria a ser consumido por tropas francesas em guerras coloniais na África do Norte, como defesa contra malária, antes de ser tornar um hábito burguês. Em Paris, o horário entre 17 e 19 horas ficou conhecido como a Hora Verde – era até respeitável tomar uma dose antes do jantar.

Não demorou para surgir a afinidade entre boemia e absinto, considerada a “mais cerebral das bebidas”. Gustave Flaubert ressaltou esse aspecto na vida de quem aspirava ser intelectual: “Ser dramaturgo não é uma arte, é um jeito (…). Para começar, tem de tomar uns copos de absinto no Café du Cirque.” Era na passagem do “um copo” para “uns copos” que a bebida virava veneno. Numa bebedeira, por exemplo, Paul Verlaine chegou a atear fogo na própria mulher. Ao final da vida, jogaria a culpa de todos os seus excessos no absinto.
Raquel Cozer – O Estado de S.Paulo(11/01/2011)

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