sábado, 8 de janeiro de 2011

A eternidade segundo Clint (Luiz Carlos Merten)

Em Além da Vida o grande diretor volta a investigar o tema da morte, desta vez com lições de solidariedade
Jay Maidment/Divulgação
Jay Maidment/Divulgação
Matt Damon. Um dom mediúnico atormenta o personagem, que se sente amaldiçoado

Luiz Carlos Merten – O Estado de S.Paulo

Começa com o tsunami na Tailândia, uma sequência tão impressionante que reduz a nada (em termos de intensidade dramática e até tecnológica) o disaster movie 2012, de Roland Emmerich. Mais tarde, há um atentado no metrô de Londres e a TV reporta o expressivo número de vítimas. O novo Clint Eastwood incorpora imagens que remetem à violência da natureza e do homem e, embora o tema seja importante na obra do autor, desta vez o foco não está nele. O novo Clint, Além da Vida, trata de outro tema que tem sido decisivo na obra do xerife de Hollywood.
Desde Perversa Paixão, com aquela fã enlouquecida do astro-DJ, e depois através de O Cavaleiro Solitário, Bird, Coração de Caçador, Os Imperdoáveis, Menina de Ouro e Gran Torino, a morte tem sido uma companheira frequente do diretor. Desta vez, Clint vai além, mas o título do filme não dá uma ideia do que ele pretende dizer – e leva a pensar que talvez seja o Nosso Lar de Hollywood. Ele investiga, sim, a possibilidade de vida após a morte, discute o tema científica e emocionalmente, mas o que lhe interessa, racionalmente, é o aqui e agora, here and now, não exatamente hereafter, como pretende o título original.
São três personagens cujas vidas terminam por se fundir. Mas o roteiro de Trevor Morgan os acompanha separadamente, no início. Uma jornalista que sobreviveu ao tsunami, mas cuja vida nunca mais será a mesma após a perturbadora experiência de vida após a morte, que sofreu. O que representam aquelas luzes, o desprendimento de si mesma, a sensação de não pertencer ao próprio corpo? No papel, Cécile de France tenta compreender.
Gêmeos. O outro é um menino que perde o irmão gêmeo, minutos mais velho, brutalmente. Ambos filhos de uma mãe dependente de drogas, os gêmeos se ajudavam mutuamente. O mais velho era o guardião do menor e ele tenta desesperadamente fazer contato. O terceiro, Matt Damon, é um vidente, ou médium. Ao simples toque na mão do outro, ele consegue fazer esse contato que tantos desejam. Para seu irmão, é um dom. Para ele, é uma maldição – que o impede de levar sua vida normalmente, seja lá o que isso signifique.
O que está acontecendo no cinema neste começo de 2011? Por que tantos diretores se preocupam ao mesmo tempo com temas similares? O Primeiro Que Disse, de Ferzan Ozpetek; A Árvore, de Julie Bertucelli; Além da Vida, de Clint Eastwood. Na verdade, é uma preocupação que vem do final de 2010, com Woody Allen. Existe outra vidente e até uma tentativa de comunicação com os mortos em Você Vai Conhecer o Homem de Seus Sonhos, mas Allen a trata como paródia. Clint trata o assunto a sério e, numa cena, Cécile, a jornalista, vai a uma cientista na Suíça e ela lhe relata como são coincidentes esses relatos de vida após a morte. Não existem respostas definitivas, não é preto no branco, mas tudo isso quer dizer alguma coisa. A questão é – o quê?
É interessante analisar como e por que, depois de tantos filmes sobre a morte, Clint tenha sentido a necessidade de fazer essa indagação. A eutanásia de Menina de Ouro e o sacrifício de Gran Torino exigem respostas, mas o fascínio de Além da Vida é que o filme, tocando o sublime no relato da complexidade da experiência humana, não tem respostas definitivas. O próprio aperto de mãos, tão temido por Matt Damon, no final é só uma tentativa de aproximação entre os vivos, não uma ponte para o além.
Talvez o espectador deva pular este parágrafo e voltar a ele somente após haver assistido ao filme. Mas para entender a humanidade do personagem eastwoodiano – é interessante reportar-se ao momento em que Damon, não podendo mais fugir, concorda em fazer o contato do garoto com o irmão. O desespero é tão genuíno, o sentimento de estar perdido da criança é tão premente, que o médium, o vidente, diz uma mentira piedosa. Ou será que o irmão realmente voltou, depois de se despedir, e disse aquilo? Seja como for, a cada ação, uma reação. O menino, agradecido, impulsiona Damon a agir, rompendo o próprio isolamento. O tema de Além da Vida vira a solidariedade humana.
Nos EUA e mesmo aqui no Brasil, muita gente tem reclamado de Além da Vida. Acham que o filme é chato e de um formalismo quebrado – talvez pelas várias frentes -, dizem que Além da Vida avança aos trancos, até que uma hora para de andar. Emperra. O cinema é, por certo, uma experiência subjetiva. É preciso que o espectador esteja disposto a viajar naquilo que o diretor, o autor – o artista -, nos propõe. Ao fazê-lo, o público não apenas “retira” do filme. Também coloca alguma coisa – a sua inteligência, a sua sensibilidade, a capacidade de ir além do que as imagens propõem. Para resumir tudo – é um movimento de mão dupla, é preciso que o espectador se aproprie do filme.
Ética. Para quem fizer isso, Além da Vida não será formalista nem chato nem quebrado. Até o que tem de “excessivo” termina por fazer sentido. Tsunami, terrorismo, drogas, trabalho escravo, competitividade, desemprego. Aonde Clint Eastwood está querendo ir com tantas informações? Além da Vida está simplesmente nos oferecendo o caótico mundo pós-moderno, das economias globais, como se apresenta para a gente. Todo dia, você encontra essas informações na mídia, na internet. Talvez se pergunte o que tem a ver com isso? Talvez se indague sobre o sentido da vida – e a vida após a morte. Além da Vida vai na contracorrente do mundo que David Fincher critica em A Ordem Social. São complementares. A solidariedade contra a falta de ética. Clint conseguiu – fez outro grande filme. Um dos mais belos de sua carreira.

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