Um traço visível, insofismável e indelével de nosso patriarcalismo escravista que curiosamente Gilberto Freyre não associava ao Estado, mas somente à sociedade, é - em toda tentativa de modernização - uma profunda crise de legitimidade. As regras não se encaixam aos comportamentos ou sequer com as suas implicações jurídicas. Essa incongruência surge em quase todos os domínios do chamado "estado" que confundimos (propositadamente ou não) com o seu lado mais personificado, o "governo" (que é sempre de alguém). O resultado é a vil transformação do legítimo em ilegítimo, tal como ocorre quando um tribunal condena um inocente. No momento chama atenção a questão da aposentadoria de governadores, um sistema que permite acumular múltiplos benefícios de tal sorte que os "patrões do Estado" (relativamente eventuais, mas com um olho grande nas vantagens permanentes), transformam a administração pública num mecanismo de enriquecimento pessoal a competir com o seu lado altruístico e "social". Neste processo, o Estado deixa de ser um sistema destinado a prestar serviços à sociedade. Só há grana para pessoal, não há como investir em educação, saúde, transporte e segurança.
Estou convencido que tal modelo nasceu na matriz aristocrática imperial somada ao neo-stalinismo, tão popular entre os "desenhistas" que sucessivamente reformaram (com um extraordinário pendor para o pior) a nossa administração pública. Tais engenheiros, chamados nos governos militares de "tecnocratas", sempre foram travestis dos velhos letrados ibéricos, bacharéis em Coimbra, e crentes num platonismo jurídico que até hoje proclama a letra da lei como tendo o poder (tal qual uma fórmula mágica) de modificar a realidade, resolvendo suas contradições. Esse fetichismo jurídico-político tem sido dominante na política brasileira. É dele que vêm um brutal centralismo e o poder avassalador que faz com que um presidente tenha a capacidade de nomear milhares de pessoas e de distribuir para os ávidos comedores do bom presunto desse velho Reino de Janbom inúmeros cargos e instituições. Haja, porém, dinheiro para sustentar cada vez que tais mudanças sempre centralizadoras são feitas, causando roubos e rombos de todos os tipos. Numa fórmula, fizemos a república, mas jamais admitimos viver num sistema republicano. E os recursos da sociedade, furtados pelo Estado, são os construtores de uma curiosa dualidade: de um lado, os milionários por ele vitaliciamente mantidos; do outro, os milhões de pobres e desvalidos que vibram quando recebem uma bolsa de pobreza! Tudo isso sob a égide de políticos bem vestidos e falantes, pronto para politizar tudo, até mesmo a política!
fonte: O Estado de S.Paulo
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