O fim de 2010 coincide com o fim do governo Lula, mas não necessariamente da Era Lula. O ainda presidente – pelo menos até o final do dia de hoje – pretende ter inaugurado uma nova fase na história do Brasil. Ou por outra, o próprio Brasil.
Segundo ele, em inumeráveis pronunciamentos, o país, até sua eleição, teria sido mero arremedo de nação, sob o domínio de elites perversas. Daí o bordão do “nunca antes neste país”. De fato, Lula estabeleceu alguns padrões sem precedentes na liturgia presidencial, mesmo quando ocupada por governos visceralmente populistas.
Um deles foi exatamente o de achar que, antes dele, ninguém fez nada que prestasse. Anteontem, viu seu nome dado a uma reserva de petróleo, a de Tupi, casualmente a maior do país, pelo presidente da Petrobrás, José Gabrielli, cuja permanência no cargo anunciou, para um governo que já não será o seu. Ou será?
Não é difícil imaginar o que faria o PT se o presidente da Petrobrás do governo FHC – ou de qualquer outro - cometesse tal descalabro, que infringe o artigo 37 da Constituição, que determina a impessoalidade de programas e obras públicas, sem menção a nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal.
Em meio a tantas heterodoxias, Lula celebrou a permanência da crise econômica em países com os quais o Brasil mantém relações diplomáticas plenas, cordiais e históricas. Não se conhece nenhum precedente, recente ou remoto, aqui ou em qualquer parte, de gesto equivalente. Considerou “gostoso” contemplar as dificuldades alheias, citando as dos Estados Unidos, União Europeia e Japão. Nada menos.
Qualquer outro que emitisse tais opiniões provocaria no mínimo um forte constrangimento diplomático. Lula, porém, obteve uma espécie de licença política para dizer o que quiser, sem quaisquer consequências. Tal licença, porém, não decorre de um prestígio adquirido, mas, inversamente, de um descrédito. Ninguém se importa com esses excessos, já que, repetitivos, não significam nada.
Lula diz uma coisa e seu contrário, às vezes no mesmo discurso. Já disse que ensinaria a FHC o papel adequado a um ex-presidente, que seria o de ficar calado e de só abrir a boca quando solicitado. E que, quando deixasse o cargo, botaria um bermudão e iria tomar cerveja com os amigos em São Bernardo.
Nos últimos dias, tem dito exatamente o oposto: que o país “não vai se livrar” dele, que continuará a viajar pelos estados, dizendo a Dilma o que é preciso fazer. Prometeu lutar pela reforma política (sem explicar por que não o fez em oito anos) e que irá desfazer a “farsa” do mensalão, tarefa que, ao que se sabe, cabe ao Supremo Tribunal Federal.
Já chegou mesmo a dizer que nunca foi de esquerda, que sempre foi torneiro-mecânico. Em 2006, ao receber um prêmio de uma revista, disse: "Se você conhece uma pessoa muito idosa esquerdista, é porque está com problemas", o que não o impediu de homenagear o centenário de Oscar Niemeyer.
Explicou que a maturidade o fez deixar de ser de esquerda. Já na campanha de 2010, considerou um avanço o fato de todos os candidatos à Presidência serem de esquerda. Qual o Lula autêntico? É esse mesmo, cujo perfil as circunstâncias (não ele) determinam.
O certo é que nenhum presidente falou tanto. É improvável que tenha havido um só dia dos seus dois mandatos em que não tenha feito discursos ou declarações que o mantivessem nos telejornais. Essa onipresença se, de um lado, contribuiu para sua popularidade, de outro enfraqueceu sua palavra.
Os chefes de Estado habitualmente se manifestam em situações relevantes. Para o varejo, dispõem dos ministros e do porta-voz, cargo, aliás, dos mais secundários na Era Lula. Que o diga Marcelo Baumbach, seu titular, que fez sua estreia e (que me lembre) única aparição nos telejornais por ocasião da demissão de Erenice Guerra da chefia da Casa Civil.
Além do extravagante papel que desempenhou na campanha eleitoral, que antecipou em dois anos, infringindo a lei, Lula pediu ao eleitorado a cabeça de adversários e a extirpação de um partido político, o DEM. Nesse caso específico, fez o pedido em Santa Catarina, que não o atendeu, pois elegeu, em primeiro turno, um governador do DEM, Raimundo Colombo.
Discute-se se existe de fato uma Era Lula, o que pressupõe continuidade não apenas administrativa (já que, desse ponto de vista, estaríamos ainda na Era FHC), mas de estilo e de práticas. Quanto ao estilo, é intransferível. Lula é único e Dilma seu antípoda. Quanto à prática, PT e PMDB não dão sinais de novidade.
Ruy Fabiano é jornalista
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