Os primeiros cem dias consistem na marca cabalística a partir dos quais a imprensa sonda os sinais premonitórios a anunciar o caráter de governos novos. No caso que se apresenta diante de nós, talvez um tempo mais curto possa bastar porque, nestes últimos dias de janeiro, com essa controvérsia sobre o valor do salário mínimo, já se sabe de que algo mudou no estilo e na forma das relações do governo com os sindicatos na passagem de bastão de Lula a Dilma.
A própria retórica encrespada de que fazem uso importantes dirigentes sindicais em defesa de suas posições indica que as tensões contidas nessa matéria não são triviais. Anote-se que a pesada qualificação - política nefasta -, usada por um deles, foi destinada ao governo Dilma, embora tenha sido o de Lula que, em seus últimos dias, condenou ao veto qualquer aumento acima do teto de R$ 540. Aí, talvez, uma pista para elucidar um novo estado de coisas no sindicalismo.
Com Lula, quadro político originário do sindicalismo metalúrgico, vários representantes da vida sindical vão ser alçados a postos influentes em várias agências estatais, quando não ao próprio governo. Nesses primeiros tempos, contudo, os sindicatos praticamente se limitam a manter uma postura solidária ao governo de um ex-sindicalista sempre pronto à interlocução com eles, uma vez que, diante de uma quadra desfavorável ao mundo trabalho como era aquela, não contavam, mesmo que o desejassem, com condições propícias a fim de mobilizar suas categorias, quer em torno de suas demandas, quer, menos ainda, para levá-las a interferir na arena política.
Algo mudou nas relações do governo com os sindicatos
Essa postura favorável ao governo do mundo sindical, no entanto, conhecia uma zona de sombra: historicamente o PT e seus dirigentes sindicais eram defensores do pluralismo sindical, enquanto que a maioria dos sindicatos propugnava pela manutenção do modelo da unicidade, base de sustentação de uma legislação que nos acompanha desde o Estado Novo. Em 2004, depois dos resultados frustrantes do Fórum Sindical, convocado pelo governo com a intenção de promover uma profunda reforma na legislação sindical, essas importantes distinções doutrinárias são canceladas. O que fará as vezes de uma reforma terá o seu sentido original invertido: reforçam-se os vértices da vida sindical, e não as suas bases, resultado oposto à proposta dos próceres sindicais da CUT e do PT, incorporando-se as centrais à estrutura da CLT, inclusive concedendo-lhes acesso a recursos extraídos do chamado imposto sindical.
Unificado em torno de princípios de organização, o sindicalismo passa a ocupar um papel relevante no governo, com as diferentes centrais atuando de modo concertado, do que é melhor exemplo as boas relações entre as antigas rivais CUT e Força Sindical. A crise do "mensalão" que, ao longo de 2005, fragilizou politicamente o governo, atou ainda mais os vínculos entre ele e os sindicatos, cada vez mais influentes nos rumos da administração, inclusive em matéria econômica.
A fórmula atual que preside o reajuste do salário mínimo é filha dessa conjuntura particular, e não à toa, agora, quando as centrais contestam a proposta do governo, estejam tão presentes os sinais de que essa controvérsia é mais política do que propriamente salarial. Na matéria, parecem insinuar as centrais sindicais, suscetibilizadas em razão de se sentirem ultrapassadas na tomada de uma decisão que as afetaria, estar-se-ia diante de um retrocesso na orientação econômica do governo que, na questão salarial e na da elevação dos juros, estaria optando por um caminho adverso a uma estratégia de crescimento, a mais adequada, em sua avaliação, para o momento atual, como o enfrentamento da crise mundial de 2008 teria demonstrado.
Assim, nas negociações ainda em curso entre governo e as centrais sobre a questão do mínimo salarial, de desfecho ainda imprevisível, a novidade é a de que o programa do governo Dilma de racionalização da economia e da administração, com base em sua interpretação do estado de coisas reinante no país e no mundo, entre outros efeitos - inclusive os benéficos - que já está a produzir, traz, entre eles, também os não desejados, como o da quebra do encanto, tão celebrado nos governos de Lula, entre governo e sindicatos.
O sindicalismo vive, no país, um momento de reafirmação, como atestam vários indicadores, entre os quais a expansão dos sindicatos, o número de trabalhadores a eles filiados e significativas conquistas salariais. No mais, reza consensualmente a bibliografia, um mercado de trabalho de pleno (ou quase) emprego, combinado com economia aquecida e amplas liberdades civis e públicas, consiste no ambiente ótimo para sua floração. Em particular, se estão expostos a uma dura competição entre si, política e sindical, como no caso das centrais brasileiras.
Sob essas condições, a um tempo fáticas e institucionais, é equívoco concebê-las no papel de correias de transmissão da vontade do Estado nos moldes da Carta estadonovista de 1937. A partidarização das centrais, de fato, trouxe uma mutação benigna na forma sindical na medida em que obstou uma comunicação direta entre sindicato e Estado - entre eles há os partidos. Sua dimensão claramente malévola está em outro lugar: na distância que ela propicia entre os vértices sindicais e as suas bases, dotando os primeiros de recursos próprios.
Por definição, o aprofundamento da racionalização do capitalismo brasileiro que ora se apresta, não terá como evitar a determinação de fronteiras mais nítidas a separarem o campo da política do campo da economia, ao contrário daquelas linhas frouxas que as demarcavam no segundo mandato de Lula. O sindicalismo poderá continuar a ter assento em posições influentes no governo e em suas agências, mas na gestão dura da administração e da economia, como se pode entrever nesse pequeno episódio do mínimo salarial, crescentes dificuldades devem pavimentar o rumo de suas relações. Sem que se esqueça que há várias centrais em competição, cada qual vigiada por todas as outras. Além do Estado, como já se ouve dos sindicatos, há o parlamento e as ruas.
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador da PUC-RJ. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional. Escreve às segundas-feiras
FONTE: VALOR ECONÔMICO
segunda-feira, 31 de janeiro de 2011
TEOREMA FUNDAMENTAL DA SEMELHANÇA ENTRE TRIÂNGULOS (Juca Magalhães)
“Dizemos que dois triângulos são semelhantes se, e somente se, os ângulos no mesmo posicionamento forem iguais e os lados correspondentes, proporcionais.”
As pessoas de minha geração adoram histórias de caras cabeludos e irresponsáveis. Roupas de couro, tachinhas e atitude Rock ‘n’ Roll traduzida para o dialeto botocudo. Os tais heróis que morreram de overdose, infelizmente, nem todos. Esse último comentário não é porque penso que os doidões deveriam morrer intoxicados com a própria piração e não ir para o céu como Emilly acredita, mas porque alguns morreram de outras maneiras.
Com o tempo e a “evolução” repetitiva da eterna diferença a estética do “bad boy” englobou novas drogas, piercings e tatuagens. No início dos anos oitenta não era tão comum essa decoração temática do próprio corpo, confesso nunca ter gostado, tenho certa dificuldade em lidar com idéias materiais que são para a vida inteira. Mas isso é um comentário que não tem importância para essa história, talvez no futuro...
Então a minha personagem escolhida para hoje vem daquela época. Na verdade são três, a saber, uma loira ligeiramente metaleira, um metaleiro ligeiramente loiro e um doidão daqueles que seriam capazes de virar herói do Cazuza. Um triângulo eqüilátero à sua maneira, nem me atreveria a dizer que era amoroso. Sexual talvez, um trilátero casual.
- O cara morreu varado de pipoco dos traficantes, na porta da boca de fumo, quá quá quá! – Uma amiga me contou essa história, sem se importar com a morte de uma pessoa que eu conhecera, não muito bem, mas que era tão maluco que virara um ser mitológico. Dele diziam um tudo: que uma época se apaixonara por um dos maiores amigos e que este o surrava com freqüência para desencorajar a tara desenvolvendo assim o vício em apanhar. Testemunhas oculares dizem que viram os dois à beira de uma dessas crises e que o maluco gritava histérico e excitado:
- Você não vai me bater não! – Mas ele já desenvolvera um certo gosto pela coisa, esperava ardendo pela coisa, assim como gostava de bater nas namoradas também. Uma vez enxulapou uma com tanta violência que a garota teve que dizer em casa que tinha sido atropelada. O pior é que no dia seguinte não lembrava da surra que dera na amada e queria saber quem era o filho da puta que fizera aquilo com ela.
- Dizem que o cara chegou estarrando na boca de fumo e os traficantes meteram pipoco nele, tá em tudo quanto é jornal. Huhauhauha! – Eu não achei a menor graça naquela história baixo astral, como poderia? Ponderei, isso sim, que aquela louca trajetória tinha durado mais até do que o esperado.
A loira metaleira namorava o doidão numa época em que não era lá muito comum – e nem de bom tom - manter uma relação estável. O metaleiro quase loiro, coisa também incomum nessas terras morenas, acabou resolvendo “atender a demanda” proposta pela loira e se jogaram às práticas ancestrais de acasalamento. Como todo bom marginal, o “caso sério” da loira tinha o costume de adentrar seu quarto pela janela e foi aí que rolou o flagrante da traição.
- Sai pra lá cabeludo que o meu papo é com essa loira vagabunda! – Um cara de roupa, outro sem e uma garota enrolada no lençol. Teorema fundamental dos triângulos, qualquer semem-lhança é megera coincidência. A metaleira foi pega pelos cabelos enquanto seu amante – valente lugar tenente das hostes endiabradas - pulava a movimentada janela com as roupas catadas ao acaso. Quando se vestia em um canto escuro encontrou uma calcinha preta, guardou como recordação e prova incontestável da aventura.
- Eu te amo porra! – A frase virou bordão durante uma época, acho que foi no início dos anos noventa. Dizem que um tal de Tomate anda a cantando hoje, se eu fosse ele faria um disco intitulado “Agrotóxico”... E morreria envenenado. A loira repetiu a frase até amansar o corno, até se dar conta de que não era aquilo o que queria. Nem um, nem outro. Triângulo desfeito, mais uma “dose dupla” de qualquer coisa e a vida que segue. Por sinal nem sempre, não para todos. Até um dia...
As pessoas de minha geração adoram histórias de caras cabeludos e irresponsáveis. Roupas de couro, tachinhas e atitude Rock ‘n’ Roll traduzida para o dialeto botocudo. Os tais heróis que morreram de overdose, infelizmente, nem todos. Esse último comentário não é porque penso que os doidões deveriam morrer intoxicados com a própria piração e não ir para o céu como Emilly acredita, mas porque alguns morreram de outras maneiras.
Com o tempo e a “evolução” repetitiva da eterna diferença a estética do “bad boy” englobou novas drogas, piercings e tatuagens. No início dos anos oitenta não era tão comum essa decoração temática do próprio corpo, confesso nunca ter gostado, tenho certa dificuldade em lidar com idéias materiais que são para a vida inteira. Mas isso é um comentário que não tem importância para essa história, talvez no futuro...
Então a minha personagem escolhida para hoje vem daquela época. Na verdade são três, a saber, uma loira ligeiramente metaleira, um metaleiro ligeiramente loiro e um doidão daqueles que seriam capazes de virar herói do Cazuza. Um triângulo eqüilátero à sua maneira, nem me atreveria a dizer que era amoroso. Sexual talvez, um trilátero casual.
- O cara morreu varado de pipoco dos traficantes, na porta da boca de fumo, quá quá quá! – Uma amiga me contou essa história, sem se importar com a morte de uma pessoa que eu conhecera, não muito bem, mas que era tão maluco que virara um ser mitológico. Dele diziam um tudo: que uma época se apaixonara por um dos maiores amigos e que este o surrava com freqüência para desencorajar a tara desenvolvendo assim o vício em apanhar. Testemunhas oculares dizem que viram os dois à beira de uma dessas crises e que o maluco gritava histérico e excitado:
- Você não vai me bater não! – Mas ele já desenvolvera um certo gosto pela coisa, esperava ardendo pela coisa, assim como gostava de bater nas namoradas também. Uma vez enxulapou uma com tanta violência que a garota teve que dizer em casa que tinha sido atropelada. O pior é que no dia seguinte não lembrava da surra que dera na amada e queria saber quem era o filho da puta que fizera aquilo com ela.
- Dizem que o cara chegou estarrando na boca de fumo e os traficantes meteram pipoco nele, tá em tudo quanto é jornal. Huhauhauha! – Eu não achei a menor graça naquela história baixo astral, como poderia? Ponderei, isso sim, que aquela louca trajetória tinha durado mais até do que o esperado.
A loira metaleira namorava o doidão numa época em que não era lá muito comum – e nem de bom tom - manter uma relação estável. O metaleiro quase loiro, coisa também incomum nessas terras morenas, acabou resolvendo “atender a demanda” proposta pela loira e se jogaram às práticas ancestrais de acasalamento. Como todo bom marginal, o “caso sério” da loira tinha o costume de adentrar seu quarto pela janela e foi aí que rolou o flagrante da traição.
- Sai pra lá cabeludo que o meu papo é com essa loira vagabunda! – Um cara de roupa, outro sem e uma garota enrolada no lençol. Teorema fundamental dos triângulos, qualquer semem-lhança é megera coincidência. A metaleira foi pega pelos cabelos enquanto seu amante – valente lugar tenente das hostes endiabradas - pulava a movimentada janela com as roupas catadas ao acaso. Quando se vestia em um canto escuro encontrou uma calcinha preta, guardou como recordação e prova incontestável da aventura.
- Eu te amo porra! – A frase virou bordão durante uma época, acho que foi no início dos anos noventa. Dizem que um tal de Tomate anda a cantando hoje, se eu fosse ele faria um disco intitulado “Agrotóxico”... E morreria envenenado. A loira repetiu a frase até amansar o corno, até se dar conta de que não era aquilo o que queria. Nem um, nem outro. Triângulo desfeito, mais uma “dose dupla” de qualquer coisa e a vida que segue. Por sinal nem sempre, não para todos. Até um dia...
Lula virou história (Rachel Bertol)
O governo mal acabou, mas uma simples consulta a livrarias virtuais indica, até o momento, aproximadamente 50 livros lançados com o nome "Lula" no título - fora os demais, sem a menção direta. O número é significativo se comparado, por exemplo, aos cerca de 15 disponíveis on-line, a partir da mesma ferramenta, com "Fernando Henrique Cardoso" ou "FHC". Enquanto o ex-presidente tucano é o principal autor de suas obras - nesse caso, há mais de duas dezenas delas sendo oferecidas -, Lula não assina livro algum, mas sua história tem potencial para inspirar uma bibliografia jornalística e acadêmica ainda maior, especialmente a partir de agora, nesta fase de balanços e análises (talvez) menos polarizadas.
A reportagem é de Rachel Bertol e publicada pelo jornal Valor, 28-01-2011.
Um dos biógrafos mais ativos do Brasil, Fernando Morais não tem dúvida: "Lulinha dá um livraço". Autor de clássicos como "Chatô, o Rei do Brasil" e "Olga", Morais gostaria de escrever um livro com o mesmo fôlego desses sobre o ex-presidente. E ele não é o único com planos editoriais a respeito de Lula. O jornalista Kennedy Alencar prepara um dos livros mais aguardados sobre os oito anos do governo, a ser lançado pela Publifolha, no qual vai contar mais sobre os bastidores da vida palaciana. A pesquisadora Denise Paraná, autora de "Lula, o Filho do Brasil" (editora Fundação Perseu Abramo) - base do filme homônimo de Fábio Barreto -, também reuniu material para um novo livro, desta vez sobre a simbologia em torno do líder político.
O sociólogo Francisco de Oliveira planeja publicar no ano que vem "A Formação do Avesso: Predação de Classe e Trabalhos de Sísifo", pela Boitempo. "Sempre começo pelo título", diz. Seu objetivo é revisar a história brasileira, mostrando como o "lulismo" se encontraria na culminância de uma nova estratégia de dominação, iniciada há meio século, que se daria pelo avesso, ou seja, com a participação das próprias classes dominadas.
O fenômeno do lulismo é controverso, até por causa de seu ineditismo, aspecto com o qual concordam Oliveira e um dos seus principais interlocutores - e opositores - nesse debate, seu colega André Singer, porta-voz da Presidência até 2007. Também em 2012, Singer vai lançar um livro sobre o lulismo, que se baseará na tese de livre-docência que defenderá neste ano na Universidade de São Paulo (USP). "Quando comecei a fazer essa análise, estabeleci um diálogo com as hipóteses do professor Francisco de Oliveira", afirma Singer. "Concordo com ele no sentido de que temos algo novo, mas não acho que seja às avessas, até porque a política que continua a ser executada contempla aspectos do programa original do Partido dos Trabalhadores [PT], como a inclusão social, apesar da incorporação de elementos que não estavam presentes inicialmente, de extração neoliberal."
Toda a polêmica, de acordo com Fernando Morais, só faz apimentar uma virtual biografia. "É uma figura que merece algo mais exaustivo, acho que alguém vai fazer. Lula é adorado pela população, mas tem uma oposição dura. O Lula demonizado dá um sabor especial ao livro. Além disso, ele não é casmurro, o que ajuda o biógrafo. Este é um trabalho no qual eu tenho muito interesse e convivi bastante com o Lula."
No momento, entretanto, Morais prefere deixar o projeto amadurecer: "Pedi, por meio de amigos comuns, para gravar com Lula uma meia dúzia de depoimentos longos, sobre passagens importantes do governo, mas ele disse para desistir, porque ou sairia abobrinha ou perderia amigos. A poeira na alma dele ainda não baixou. Um dia, se topar, torço para que chute a bola para o meu lado."
Já o coordenador editorial da editora Fundação Perseu Abramo, Rogério Chaves, está mais otimista quanto à possibilidade de obter depoimentos do ex-presidente. A fundação tem entre seus propósitos contar a história do PT, e a ideia é preparar uma continuação do livro "Lula, o Filho do Brasil", que tem apresentação de Antonio Candido e se concentra no período de formação do filho de dona Lindu. A editora negocia a contratação de um novo autor. "Queremos amadurecer a ideia com o próprio Lula", conta Chaves. "A ideia é discutir menos o Lula como mito e sim como agente de um momento de grande mudança. Será necessário ter nessa edição a participação de uma pessoa com leitura política, que vá pegar também a fase do governo. Pensamos em aproveitar este ano, quando as informações estão mais recentes."
Além disso, a editora da fundação iniciou, no ano passado, a publicação de coleções técnicas sobre os dois mandatos. Uma delas é "2003-2010: o Brasil em Transformação", na qual serão lançados mais quatro volumes neste ano - sobre políticas sociais, direitos humanos, estatais e saúde.
A dificuldade de escrever sobre a trajetória do ex-presidente, segundo Denise Paraná, deve-se ao fato de Lula raramente dar depoimentos. "Até hoje, ele só deu depoimentos longos sobre a sua vida para a pesquisa que eu realizei. Foram muitos meses de entrevista, horas de conversa, no início dos anos 1990." Ao longo desses anos, Denise travou amizade com a família de Lula e frequenta casamentos e festas de Natal dos irmãos e dos sobrinhos dele. Já coletou amplo material sobre a construção simbólica do personagem, no Brasil e no exterior.
"Não me interessam tanto o lado político partidário, as disputas ou o balanço do governo. Quero escrever sobre a visão de mundo dele, destacando os aspectos subjetivos, ideológicos, culturais. Há muitos anos, eu tenho conversado com a família toda, observado como enfrentam as situações etc. Em 'Lula, o Filho do Brasil', eu já trabalhava por meio dessa corrente da psico-história", diz.
No novo livro, vai analisar como Lula estaria contribuindo para o país se livrar do chamado "complexo de vira-lata", termo cunhado por Nelson Rodrigues quando observava a seleção nacional jogando futebol com potências estrangeiras. Segundo Denise, o brasileiro está entre os cinco povos mais otimistas do mundo quanto à mobilidade social, e Lula seria um símbolo importante desse ânimo.
"Existem pessoas que conseguem ascender socialmente. Em geral, saem da classe social baixa e se adaptam à nova classe. Deixam um lugar para ocupar outro. Mas com o Lula foi diferente: ele ocupa os dois lugares. Ele tem orgulho de ser o incluído e ao mesmo tempo o orgulho de ser o superexcluído. Isso dá um nó na cabeça da elite. Lula constrói espaço novo, a partir da comunicação direta com a população. Do ponto de vista simbólico, ele quebra paradigmas e modelos o tempo todo."
Em suas pesquisas no exterior, Denise chegou a se impressionar com a força do personagem, que chegaria a substituir Pelé como principal referência a respeito do país. "Muita gente que antes nem sabia onde fica o Brasil agora fala do país através da figura do Lula. É como se ele tivesse posto o Brasil no mapa-múndi."
Mas Denise reconhece que se trata de figura controversa: "Há quem diga que ele pratica populismo de direita, enquanto outras pessoas afirmam que é completamente revolucionário. Eu ouvi isso na França. Mas não estou dizendo que tudo deu certo no governo. O fato é que há muita coisa para estudar a respeito desses últimos oito anos: foram infinitas e profundas as transformações."
Boa parte do que diz poderia servir de subsídio a uma explicação do "lulismo". De acordo com André Singer, a base do fenômeno, que se configurou claramente a partir da reeleição de 2006, se encontra nos estratos de mais baixa renda da população - sendo o Bolsa Família um ingrediente não desprezível nesse conjunto. "É uma camada da população com perspectiva de mudança de renda, mas pode ser considerada conservadora por querer essas mudanças sem ameaça à ordem estabelecida. O lulismo tem elementos carismáticos, sobretudo no Nordeste, mas é um movimento real da sociedade, democrático. Embora não formalizado, tem fôlego para durar muitos anos", afirma.
Para Oliveira, sem entender o lulismo dificilmente se entende o Brasil de hoje: "Mesmo porque o lulismo nos devora". Em sua opinião, Lula é um ilusionista: "Ele tira coelho da cartola o tempo todo. Não é o escravismo ou o patrimonialismo que explicam o atraso atual. Não se trata de uma herança de 500 anos. No livro, vou fazer a revisão da história para mostrar como essa formação do avesso se refere aos últimos 50 anos, a uma escolha das camadas dominantes. Houve uma opção pelo atraso. Cria-se a pobreza, que não é brasileira, como forma de controle e dominação. Lula tira benefício disso. Seu governo foi a culminância desse processo. Não houve avanço institucional nestes oito anos. Assim como as classes dominantes, Lula dança sobre a miséria para construir a sua popularidade."
O Brasil vive uma "falsa euforia", diz Oliveira. "Sobraram para o país os produtos baratos. É a euforia de quem chegou atrasado ao baile, a celebração da derrota da vitória. Todos estão contentes, mas sobre cultura e cidadania não temos nada. Chegou-se aos bens de consumo, mas não à civilidade", comenta. "Estamos vivendo um fascismo do consumo. As pessoas se detestam, desapareceu qualquer traço de solidariedade pessoal e social. Os valores que a sociedade deveria cultivar, ela não cultiva. Há uma tensão fascista no ar. Sempre que um materialista começa a relacionar feitos sociais, pode desconfiar que atrás existe um cheiro de fascismo." O sociólogo, que é ex-petista, reitera: "Fizeram do Lula a imagem idealizada do anjo operário, o que ele não é. Faz muitas décadas que ele deixou de ser operário. A tragédia brasileira é imensa."
Como observa Morais, "herói de bronze só tem em praça pública" e a figura de Lula, como se vê, está longe do consenso. Por enquanto, na imprensa e em seminários, o momento é dos primeiros balanços. Especula-se qual seria sua participação na gestão da sucessora, Dilma Rousseff, e se voltaria a se candidatar à Presidência, embora Denise Paraná, até o momento a maior especialista na biografia lulista, aposte que não há volta: "Lula nunca andou para trás. Quando saiu da presidência do sindicato, disseram o mesmo, que ele voltaria, mas não foi o caso. Sempre foi assim na trajetória dele. O Brasil agora já fica pequeno para Lula, que tem a possibilidade de fazer muita coisa pelo mundo. Duvido que se candidate novamente, até porque entrou para a história como o presidente mais popular do país".
Kennedy Alencar, que cobriu os dois mandatos pela "Folha de S. Paulo", em Brasília, fez questão de esperar que Lula deixasse o Planalto para terminar seu livro sobre o governo só agora. "Achei melhor assim, para ter uma perspectiva mais ampla", afirma Alencar, que começou a redigi-lo de maneira mais intensa no ano passado. Já publicou algo do que saiu na própria "Folha", em dezembro. "Desde a eleição do Lula em 2002, pensava em escrever algo, com material apurado que eu não tinha como usar no dia a dia. Reuni muitos bloquinhos de anotação ao longo dos anos. Eu sempre escrevia um pouco e guardava."
Sua intenção é identificar os piores e melhores momentos, contar sobre a sucessão de escândalos enfrentados, como o caso Waldomiro Diniz e o mensalão, falar da crise econômica, das políticas sociais etc. "Vou detalhar um pouco mais. Ainda vou ter algumas conversas. A gente nunca para de apurar. Estou com todo o material arquivado, mas quero tempo para fazer com mais calma." Haveria ainda alguma revelação importante? "Eu acho que sim, porque jornalista nunca consegue mostrar tudo. A relação entre imprensa e governo é naturalmente tensa, sempre vai ter algo para descobrir." Além disso, o próprio Lula gostaria de voltar ao assunto do mensalão este ano, como lembra o jornalista: "É muita história para contar".
A reportagem é de Rachel Bertol e publicada pelo jornal Valor, 28-01-2011.
Um dos biógrafos mais ativos do Brasil, Fernando Morais não tem dúvida: "Lulinha dá um livraço". Autor de clássicos como "Chatô, o Rei do Brasil" e "Olga", Morais gostaria de escrever um livro com o mesmo fôlego desses sobre o ex-presidente. E ele não é o único com planos editoriais a respeito de Lula. O jornalista Kennedy Alencar prepara um dos livros mais aguardados sobre os oito anos do governo, a ser lançado pela Publifolha, no qual vai contar mais sobre os bastidores da vida palaciana. A pesquisadora Denise Paraná, autora de "Lula, o Filho do Brasil" (editora Fundação Perseu Abramo) - base do filme homônimo de Fábio Barreto -, também reuniu material para um novo livro, desta vez sobre a simbologia em torno do líder político.
O sociólogo Francisco de Oliveira planeja publicar no ano que vem "A Formação do Avesso: Predação de Classe e Trabalhos de Sísifo", pela Boitempo. "Sempre começo pelo título", diz. Seu objetivo é revisar a história brasileira, mostrando como o "lulismo" se encontraria na culminância de uma nova estratégia de dominação, iniciada há meio século, que se daria pelo avesso, ou seja, com a participação das próprias classes dominadas.
O fenômeno do lulismo é controverso, até por causa de seu ineditismo, aspecto com o qual concordam Oliveira e um dos seus principais interlocutores - e opositores - nesse debate, seu colega André Singer, porta-voz da Presidência até 2007. Também em 2012, Singer vai lançar um livro sobre o lulismo, que se baseará na tese de livre-docência que defenderá neste ano na Universidade de São Paulo (USP). "Quando comecei a fazer essa análise, estabeleci um diálogo com as hipóteses do professor Francisco de Oliveira", afirma Singer. "Concordo com ele no sentido de que temos algo novo, mas não acho que seja às avessas, até porque a política que continua a ser executada contempla aspectos do programa original do Partido dos Trabalhadores [PT], como a inclusão social, apesar da incorporação de elementos que não estavam presentes inicialmente, de extração neoliberal."
Toda a polêmica, de acordo com Fernando Morais, só faz apimentar uma virtual biografia. "É uma figura que merece algo mais exaustivo, acho que alguém vai fazer. Lula é adorado pela população, mas tem uma oposição dura. O Lula demonizado dá um sabor especial ao livro. Além disso, ele não é casmurro, o que ajuda o biógrafo. Este é um trabalho no qual eu tenho muito interesse e convivi bastante com o Lula."
No momento, entretanto, Morais prefere deixar o projeto amadurecer: "Pedi, por meio de amigos comuns, para gravar com Lula uma meia dúzia de depoimentos longos, sobre passagens importantes do governo, mas ele disse para desistir, porque ou sairia abobrinha ou perderia amigos. A poeira na alma dele ainda não baixou. Um dia, se topar, torço para que chute a bola para o meu lado."
Já o coordenador editorial da editora Fundação Perseu Abramo, Rogério Chaves, está mais otimista quanto à possibilidade de obter depoimentos do ex-presidente. A fundação tem entre seus propósitos contar a história do PT, e a ideia é preparar uma continuação do livro "Lula, o Filho do Brasil", que tem apresentação de Antonio Candido e se concentra no período de formação do filho de dona Lindu. A editora negocia a contratação de um novo autor. "Queremos amadurecer a ideia com o próprio Lula", conta Chaves. "A ideia é discutir menos o Lula como mito e sim como agente de um momento de grande mudança. Será necessário ter nessa edição a participação de uma pessoa com leitura política, que vá pegar também a fase do governo. Pensamos em aproveitar este ano, quando as informações estão mais recentes."
Além disso, a editora da fundação iniciou, no ano passado, a publicação de coleções técnicas sobre os dois mandatos. Uma delas é "2003-2010: o Brasil em Transformação", na qual serão lançados mais quatro volumes neste ano - sobre políticas sociais, direitos humanos, estatais e saúde.
A dificuldade de escrever sobre a trajetória do ex-presidente, segundo Denise Paraná, deve-se ao fato de Lula raramente dar depoimentos. "Até hoje, ele só deu depoimentos longos sobre a sua vida para a pesquisa que eu realizei. Foram muitos meses de entrevista, horas de conversa, no início dos anos 1990." Ao longo desses anos, Denise travou amizade com a família de Lula e frequenta casamentos e festas de Natal dos irmãos e dos sobrinhos dele. Já coletou amplo material sobre a construção simbólica do personagem, no Brasil e no exterior.
"Não me interessam tanto o lado político partidário, as disputas ou o balanço do governo. Quero escrever sobre a visão de mundo dele, destacando os aspectos subjetivos, ideológicos, culturais. Há muitos anos, eu tenho conversado com a família toda, observado como enfrentam as situações etc. Em 'Lula, o Filho do Brasil', eu já trabalhava por meio dessa corrente da psico-história", diz.
No novo livro, vai analisar como Lula estaria contribuindo para o país se livrar do chamado "complexo de vira-lata", termo cunhado por Nelson Rodrigues quando observava a seleção nacional jogando futebol com potências estrangeiras. Segundo Denise, o brasileiro está entre os cinco povos mais otimistas do mundo quanto à mobilidade social, e Lula seria um símbolo importante desse ânimo.
"Existem pessoas que conseguem ascender socialmente. Em geral, saem da classe social baixa e se adaptam à nova classe. Deixam um lugar para ocupar outro. Mas com o Lula foi diferente: ele ocupa os dois lugares. Ele tem orgulho de ser o incluído e ao mesmo tempo o orgulho de ser o superexcluído. Isso dá um nó na cabeça da elite. Lula constrói espaço novo, a partir da comunicação direta com a população. Do ponto de vista simbólico, ele quebra paradigmas e modelos o tempo todo."
Em suas pesquisas no exterior, Denise chegou a se impressionar com a força do personagem, que chegaria a substituir Pelé como principal referência a respeito do país. "Muita gente que antes nem sabia onde fica o Brasil agora fala do país através da figura do Lula. É como se ele tivesse posto o Brasil no mapa-múndi."
Mas Denise reconhece que se trata de figura controversa: "Há quem diga que ele pratica populismo de direita, enquanto outras pessoas afirmam que é completamente revolucionário. Eu ouvi isso na França. Mas não estou dizendo que tudo deu certo no governo. O fato é que há muita coisa para estudar a respeito desses últimos oito anos: foram infinitas e profundas as transformações."
Boa parte do que diz poderia servir de subsídio a uma explicação do "lulismo". De acordo com André Singer, a base do fenômeno, que se configurou claramente a partir da reeleição de 2006, se encontra nos estratos de mais baixa renda da população - sendo o Bolsa Família um ingrediente não desprezível nesse conjunto. "É uma camada da população com perspectiva de mudança de renda, mas pode ser considerada conservadora por querer essas mudanças sem ameaça à ordem estabelecida. O lulismo tem elementos carismáticos, sobretudo no Nordeste, mas é um movimento real da sociedade, democrático. Embora não formalizado, tem fôlego para durar muitos anos", afirma.
Para Oliveira, sem entender o lulismo dificilmente se entende o Brasil de hoje: "Mesmo porque o lulismo nos devora". Em sua opinião, Lula é um ilusionista: "Ele tira coelho da cartola o tempo todo. Não é o escravismo ou o patrimonialismo que explicam o atraso atual. Não se trata de uma herança de 500 anos. No livro, vou fazer a revisão da história para mostrar como essa formação do avesso se refere aos últimos 50 anos, a uma escolha das camadas dominantes. Houve uma opção pelo atraso. Cria-se a pobreza, que não é brasileira, como forma de controle e dominação. Lula tira benefício disso. Seu governo foi a culminância desse processo. Não houve avanço institucional nestes oito anos. Assim como as classes dominantes, Lula dança sobre a miséria para construir a sua popularidade."
O Brasil vive uma "falsa euforia", diz Oliveira. "Sobraram para o país os produtos baratos. É a euforia de quem chegou atrasado ao baile, a celebração da derrota da vitória. Todos estão contentes, mas sobre cultura e cidadania não temos nada. Chegou-se aos bens de consumo, mas não à civilidade", comenta. "Estamos vivendo um fascismo do consumo. As pessoas se detestam, desapareceu qualquer traço de solidariedade pessoal e social. Os valores que a sociedade deveria cultivar, ela não cultiva. Há uma tensão fascista no ar. Sempre que um materialista começa a relacionar feitos sociais, pode desconfiar que atrás existe um cheiro de fascismo." O sociólogo, que é ex-petista, reitera: "Fizeram do Lula a imagem idealizada do anjo operário, o que ele não é. Faz muitas décadas que ele deixou de ser operário. A tragédia brasileira é imensa."
Como observa Morais, "herói de bronze só tem em praça pública" e a figura de Lula, como se vê, está longe do consenso. Por enquanto, na imprensa e em seminários, o momento é dos primeiros balanços. Especula-se qual seria sua participação na gestão da sucessora, Dilma Rousseff, e se voltaria a se candidatar à Presidência, embora Denise Paraná, até o momento a maior especialista na biografia lulista, aposte que não há volta: "Lula nunca andou para trás. Quando saiu da presidência do sindicato, disseram o mesmo, que ele voltaria, mas não foi o caso. Sempre foi assim na trajetória dele. O Brasil agora já fica pequeno para Lula, que tem a possibilidade de fazer muita coisa pelo mundo. Duvido que se candidate novamente, até porque entrou para a história como o presidente mais popular do país".
Kennedy Alencar, que cobriu os dois mandatos pela "Folha de S. Paulo", em Brasília, fez questão de esperar que Lula deixasse o Planalto para terminar seu livro sobre o governo só agora. "Achei melhor assim, para ter uma perspectiva mais ampla", afirma Alencar, que começou a redigi-lo de maneira mais intensa no ano passado. Já publicou algo do que saiu na própria "Folha", em dezembro. "Desde a eleição do Lula em 2002, pensava em escrever algo, com material apurado que eu não tinha como usar no dia a dia. Reuni muitos bloquinhos de anotação ao longo dos anos. Eu sempre escrevia um pouco e guardava."
Sua intenção é identificar os piores e melhores momentos, contar sobre a sucessão de escândalos enfrentados, como o caso Waldomiro Diniz e o mensalão, falar da crise econômica, das políticas sociais etc. "Vou detalhar um pouco mais. Ainda vou ter algumas conversas. A gente nunca para de apurar. Estou com todo o material arquivado, mas quero tempo para fazer com mais calma." Haveria ainda alguma revelação importante? "Eu acho que sim, porque jornalista nunca consegue mostrar tudo. A relação entre imprensa e governo é naturalmente tensa, sempre vai ter algo para descobrir." Além disso, o próprio Lula gostaria de voltar ao assunto do mensalão este ano, como lembra o jornalista: "É muita história para contar".
domingo, 30 de janeiro de 2011
Tudo que tuitar pode ser usado contra você, até no tribunal
Postagens consideradas ofensivas acabam na Justiça ou em boa dor de cabeça para internautas falastrões
Anônimos ou famosos, ninguém está livre dos ecos de comentários inconsequentes nas redes sociais da internet
JAMES CIMINO – FOLHA SP
DE SÃO PAULO
O vendedor Pedro Henrique Santos, 19, está pagando, a prestação, o preço de uma tuitada inconsequente.
Morador de Ipameri, cidadezinha do interior de Goiás, ele não viu nenhum problema em postar no seu perfil do microblog uma foto de uma garota em trajes sumários.
Processado por danos morais, teve de pagar à vítima -maior de idade- R$ 3.000.
Como não tinha todo o dinheiro, vai desembolsar por mês R$ 150, em 20 vezes.
O caso ilustra uma situação cada vez mais corriqueira: os desabafos, os comentários e as brincadeiras de mau gosto facilmente esquecíveis se ditos em mesa de bar se amplificam se feitos nas redes sociais, com consequências na vida profissional e legal do internauta desbocado.
Antes de Pedro, outras pessoas, incluindo aí os famosos, tiveram problema.
O comediante Danilo Gentilli foi investigado pelo Ministério Público por acusação de racismo após ter feito uma piada em que comparava, no Twitter, o gorila King Kong a jogadores de futebol.
Há casos em que a tuitada não vira caso de Justiça, mas acaba em boa dor de cabeça.
Rita Lee criticou a construção do estádio do Corinthians em Itaquera. Chamou o bairro da zona leste paulistana de “c… de onde sai a bosta do cavalo do bandido”. Gal Costa disse que os conterrâneos baianos eram preguiçosos. As duas ouviram poucas e boas do público.
As empresas têm ficado de olhos nos perfis de seus funcionários. Dois rapazes, um da região de Campinas, outro de Piracicaba, acabaram demitidos por justa causa após postagens inconsequentes.
O primeiro publicou no Orkut que estava furtando notas fiscais da empresa onde trabalhava. O segundo postou no YouTube um vídeo em que dava cavalos de pau com a empilhadeira da empresa.
Ambos entraram com ações na Justiça do Trabalho a fim de reverter o caráter da demissão, mas perderam.
Juliana Abrusio, professora de direito eletrônico da universidade Mackenzie, aponta que o afã de fazer um desabafo, de exprimir uma opinião ou de simplesmente demonstrar atitude crítica em relação a algo faz com que as pessoas percam a ideia do alcance da internet.
“Se você fala mal de alguém numa mesa de bar com seis pessoas, ele fica ofendido, mas é suportável. Quando vai para 6.000 ou 6 milhões de pessoas, a pessoa pode ser destruída”, afirma.
Renato Opice Blum, advogado especializado em crimes digitais, diz que o Brasil tem mais de 30 mil decisões judiciais relacionadas à internet. Só em seu escritório há cerca de 5.000 mil ações.
Um fotógrafo colaborador do Grupo Folha acabou afastado após publicar no Twitter uma declaração considerada ofensiva aos torcedores do Palmeiras, na sede do clube. Foi agredido fisicamente.
Tuitar pelos cotovelos só é vantagem para quem não tem nada a perder
“CASES” COMO O DAS ELEIÇÕES DOS EUA DEIXARAM IDEIA DE QUE É PRECISO TUITAR A GRANEL
DANIEL BERGAMASCO
EDITOR-ADJUNTO DE COTIDIANO
Uma das primeiras grandes ilusões sobre as vantagens de tuitar pelos cotovelos veio da campanha de Barack Obama à Casa Branca, em 2008. Tornaram-se simbólicas as fotos do democrata pendurado no Blackberry.
Com mais seguidores que os concorrentes, ele também acabou por colocar mais voluntários pelas ruas e arrecadar mais dinheiro.
Ficou a falsa ideia de que uma coisa possa ter sido consequência direta da outra e, pela distorção de “cases” como esse, propagou-se a imagem de que tuitar a granel pode ser uma boa maneira de cativar a internet, fazer negócios e influenciar pessoas.
Obama, contudo, nunca tuitou pelos cotovelos, nem pelo fígado. Suas mensagens refletiam um discurso estudado, gerado em laboratório.
Foram as suas causas políticas, propagadas também via TV e grandes comícios, que deram assunto para que seus admiradores espalhassem seu nome no ventilador.
Estratégia diferente tinham alguns dos candidatos pequenos ou nanicos que, sem medo de dar tiro no pé, acabaram acertando na mosca em posições mais controversas e saindo da corrida melhor do que entraram.
Da mesma forma, a lista de celebridades brasileiras com maior número de seguidores está cheia de casos em que esse público todo não faz soma de bons contratos.
A atriz Fernanda Paes Leme, com seu mais de meio milhão de seguidores, está entre os top da rede social, mas na publicidade está muito longe do status de uma Grazi Massafera -que, por sua vez, nem Twitter tem.
Há casos ainda de gente traída pelo dedo leve, pelo esquecimento de que as mensagens são documentos e pelo anseio do desabafo.
A cantora Claudia Leitte alfinetou “alguns” fãs “muito malas” de Ivete Sangalo e acabou por colocar em xeque sua imagem de boa moça.
Celebridades que se deram melhor são as quase-famosas, como a modelo Angela Bismarchi, conhecida pelas muitas cirurgias plásticas.
Ela já agrega mais de 50 mil seguidores tecendo comentários sobre temas como as especificidades sexuais das hienas. No embalo, vai lançar um livro sobre sexo.
PARA TODOS
Cabe, assim, o exemplo também para advogados, vendedores, professores.
Fazer propagar informações sobre um produto que se quer vender ou compartilhar assuntos do qual se é especialista pode ser um gol.
O escritor Fabrício Carpinejar ganhou 84 mil seguidores divulgando sua obra em textos breves.
Já dar bom dia a cavalo para tornar o perfil atraente a um monte de curiosos pode esquentar o ego, mas só tem se mostrado vantagem para quem não tem nada a perder.
É preciso ter bom senso nas redes, dizem advogados
DE SÃO PAULO
As crescentes ações na Justiça fomentadas pelo mau uso da internet podem ser facilmente evitadas, segundo advogados consultados pela Folha. Basta ter bom senso.
“As pessoas não podem esquecer que a lei não mudou. Na dúvida, não fale mal do companheiro de trabalho, não faça piada com o chefe, não se deixe fotografar em situação vexatória. Tudo vira evidência”, afirma a advogada Gilda Figueiredo Ferraz.
Segundo Alessandro Barbosa Lima, dono da empresa E.Life, que oferece serviços de monitoramento de marcas, semanalmente surgem casos de uso indevido das redes sociais por funcionários.
O advogado Eli Alves da Silva, presidente da comissão de direito trabalhista da OAB-SP, diz que não apenas os empregados podem se dar mal com o uso indevido das redes sociais. Empregadores também podem ser punidos e sofrer consequências caso os funcionários reclamem de condições de trabalho.
“Se o empregado reclamar de condições de trabalho que revelem um descumprimento da lei trabalhista, o patrão pode vir a ser punido, caso haja prova dessa ação.”
O advogado Renato Opice Blum descreve o que pode ser o limite entre a liberdade de expressão e o crime.
“Se o internauta avançar o limite da crítica normal e partir para o lado da ofensa, pode ser processado pelos crimes de calúnia, injúria e difamação, sem prejuízo de uma indenização. Tem sempre que evitar fazer juízo de valor”, afirma o advogado.
Para Brum, a primeira coisa que a pessoa deve fazer ao aderir a uma rede social é ler as regras de uso e conhecer os recursos que o programa oferece ao usuário.
Ele cita como simbólico o casos do diretor da Locaweb, patrocinadora do São Paulo, que criticou o time durante um jogo e foi demitido.
(JAMES CIMINO e EVANDRO SPINELLI)
Anônimos ou famosos, ninguém está livre dos ecos de comentários inconsequentes nas redes sociais da internet
JAMES CIMINO – FOLHA SP
DE SÃO PAULO
O vendedor Pedro Henrique Santos, 19, está pagando, a prestação, o preço de uma tuitada inconsequente.
Morador de Ipameri, cidadezinha do interior de Goiás, ele não viu nenhum problema em postar no seu perfil do microblog uma foto de uma garota em trajes sumários.
Processado por danos morais, teve de pagar à vítima -maior de idade- R$ 3.000.
Como não tinha todo o dinheiro, vai desembolsar por mês R$ 150, em 20 vezes.
O caso ilustra uma situação cada vez mais corriqueira: os desabafos, os comentários e as brincadeiras de mau gosto facilmente esquecíveis se ditos em mesa de bar se amplificam se feitos nas redes sociais, com consequências na vida profissional e legal do internauta desbocado.
Antes de Pedro, outras pessoas, incluindo aí os famosos, tiveram problema.
O comediante Danilo Gentilli foi investigado pelo Ministério Público por acusação de racismo após ter feito uma piada em que comparava, no Twitter, o gorila King Kong a jogadores de futebol.
Há casos em que a tuitada não vira caso de Justiça, mas acaba em boa dor de cabeça.
Rita Lee criticou a construção do estádio do Corinthians em Itaquera. Chamou o bairro da zona leste paulistana de “c… de onde sai a bosta do cavalo do bandido”. Gal Costa disse que os conterrâneos baianos eram preguiçosos. As duas ouviram poucas e boas do público.
As empresas têm ficado de olhos nos perfis de seus funcionários. Dois rapazes, um da região de Campinas, outro de Piracicaba, acabaram demitidos por justa causa após postagens inconsequentes.
O primeiro publicou no Orkut que estava furtando notas fiscais da empresa onde trabalhava. O segundo postou no YouTube um vídeo em que dava cavalos de pau com a empilhadeira da empresa.
Ambos entraram com ações na Justiça do Trabalho a fim de reverter o caráter da demissão, mas perderam.
Juliana Abrusio, professora de direito eletrônico da universidade Mackenzie, aponta que o afã de fazer um desabafo, de exprimir uma opinião ou de simplesmente demonstrar atitude crítica em relação a algo faz com que as pessoas percam a ideia do alcance da internet.
“Se você fala mal de alguém numa mesa de bar com seis pessoas, ele fica ofendido, mas é suportável. Quando vai para 6.000 ou 6 milhões de pessoas, a pessoa pode ser destruída”, afirma.
Renato Opice Blum, advogado especializado em crimes digitais, diz que o Brasil tem mais de 30 mil decisões judiciais relacionadas à internet. Só em seu escritório há cerca de 5.000 mil ações.
Um fotógrafo colaborador do Grupo Folha acabou afastado após publicar no Twitter uma declaração considerada ofensiva aos torcedores do Palmeiras, na sede do clube. Foi agredido fisicamente.
Tuitar pelos cotovelos só é vantagem para quem não tem nada a perder
“CASES” COMO O DAS ELEIÇÕES DOS EUA DEIXARAM IDEIA DE QUE É PRECISO TUITAR A GRANEL
DANIEL BERGAMASCO
EDITOR-ADJUNTO DE COTIDIANO
Uma das primeiras grandes ilusões sobre as vantagens de tuitar pelos cotovelos veio da campanha de Barack Obama à Casa Branca, em 2008. Tornaram-se simbólicas as fotos do democrata pendurado no Blackberry.
Com mais seguidores que os concorrentes, ele também acabou por colocar mais voluntários pelas ruas e arrecadar mais dinheiro.
Ficou a falsa ideia de que uma coisa possa ter sido consequência direta da outra e, pela distorção de “cases” como esse, propagou-se a imagem de que tuitar a granel pode ser uma boa maneira de cativar a internet, fazer negócios e influenciar pessoas.
Obama, contudo, nunca tuitou pelos cotovelos, nem pelo fígado. Suas mensagens refletiam um discurso estudado, gerado em laboratório.
Foram as suas causas políticas, propagadas também via TV e grandes comícios, que deram assunto para que seus admiradores espalhassem seu nome no ventilador.
Estratégia diferente tinham alguns dos candidatos pequenos ou nanicos que, sem medo de dar tiro no pé, acabaram acertando na mosca em posições mais controversas e saindo da corrida melhor do que entraram.
Da mesma forma, a lista de celebridades brasileiras com maior número de seguidores está cheia de casos em que esse público todo não faz soma de bons contratos.
A atriz Fernanda Paes Leme, com seu mais de meio milhão de seguidores, está entre os top da rede social, mas na publicidade está muito longe do status de uma Grazi Massafera -que, por sua vez, nem Twitter tem.
Há casos ainda de gente traída pelo dedo leve, pelo esquecimento de que as mensagens são documentos e pelo anseio do desabafo.
A cantora Claudia Leitte alfinetou “alguns” fãs “muito malas” de Ivete Sangalo e acabou por colocar em xeque sua imagem de boa moça.
Celebridades que se deram melhor são as quase-famosas, como a modelo Angela Bismarchi, conhecida pelas muitas cirurgias plásticas.
Ela já agrega mais de 50 mil seguidores tecendo comentários sobre temas como as especificidades sexuais das hienas. No embalo, vai lançar um livro sobre sexo.
PARA TODOS
Cabe, assim, o exemplo também para advogados, vendedores, professores.
Fazer propagar informações sobre um produto que se quer vender ou compartilhar assuntos do qual se é especialista pode ser um gol.
O escritor Fabrício Carpinejar ganhou 84 mil seguidores divulgando sua obra em textos breves.
Já dar bom dia a cavalo para tornar o perfil atraente a um monte de curiosos pode esquentar o ego, mas só tem se mostrado vantagem para quem não tem nada a perder.
É preciso ter bom senso nas redes, dizem advogados
DE SÃO PAULO
As crescentes ações na Justiça fomentadas pelo mau uso da internet podem ser facilmente evitadas, segundo advogados consultados pela Folha. Basta ter bom senso.
“As pessoas não podem esquecer que a lei não mudou. Na dúvida, não fale mal do companheiro de trabalho, não faça piada com o chefe, não se deixe fotografar em situação vexatória. Tudo vira evidência”, afirma a advogada Gilda Figueiredo Ferraz.
Segundo Alessandro Barbosa Lima, dono da empresa E.Life, que oferece serviços de monitoramento de marcas, semanalmente surgem casos de uso indevido das redes sociais por funcionários.
O advogado Eli Alves da Silva, presidente da comissão de direito trabalhista da OAB-SP, diz que não apenas os empregados podem se dar mal com o uso indevido das redes sociais. Empregadores também podem ser punidos e sofrer consequências caso os funcionários reclamem de condições de trabalho.
“Se o empregado reclamar de condições de trabalho que revelem um descumprimento da lei trabalhista, o patrão pode vir a ser punido, caso haja prova dessa ação.”
O advogado Renato Opice Blum descreve o que pode ser o limite entre a liberdade de expressão e o crime.
“Se o internauta avançar o limite da crítica normal e partir para o lado da ofensa, pode ser processado pelos crimes de calúnia, injúria e difamação, sem prejuízo de uma indenização. Tem sempre que evitar fazer juízo de valor”, afirma o advogado.
Para Brum, a primeira coisa que a pessoa deve fazer ao aderir a uma rede social é ler as regras de uso e conhecer os recursos que o programa oferece ao usuário.
Ele cita como simbólico o casos do diretor da Locaweb, patrocinadora do São Paulo, que criticou o time durante um jogo e foi demitido.
(JAMES CIMINO e EVANDRO SPINELLI)
A volta dos tigres da Malásia (SERGIO AUGUSTO)
Um asturiano criado no México, com nome de rei medieval, Paco Ignacio Taibo II, inaugurou de forma sui-generis os festejos pelo centenário de morte do escritor italiano Emilio Salgari. Pegou o mais aclamado herói salgariano, o exótico príncipe malaio Sandokan, defensor dos fracos e oprimidos do Sudeste Asiático, e o expôs a novos desafios, na mesma latitude de antanho (os mares do Oriente), com o mesmo parceiro (Yáñez de Gomara) de outras refregas contra os parasitas do colonialismo europeu. Por enquanto, El Retorno de los Tigres de la Malasia só pode ser lido em espanhol, editado pela Planeta.
Conhecido por alguns romances policiais e duas biografias (Che Guevara e Pancho Villa), Taibo, de 61 anos, não quis simplesmente pegar carona num secular fenômeno literário – por sinal, ainda de pé, inclusive no Brasil, onde a farta galeria de heróis salgarianos reluz nos catálogos da Ediouro e da Iluminuras -, mas apenas quitar sua dívida com o criador de Sandokan. Foi através das aventuras do Tigre da Malásia, do Leão de Damasco, do Capitão Tormenta, do Corsário Negro, de Tremal-Naik e outras míticas figuras da literatura infanto-juvenil criadas por Salgari no final do século 19 que Taibo descobriu o prazer da leitura e tomou suas primeiras lições sobre o valor moral da coragem, a cupidez dos poderosos e as nefastas ações ultramarinas dos impérios europeus.
Umberto Eco já prestara sua homenagem ao mestre veronês, por intermédio de um alter ego, Yambo, o reminiscente protagonista de A Misteriosa Chama da Rainha Loana. Taibo foi mais audacioso: não só reincorporou o universo ficcional de Salgari, como o revitalizou, modernizando-o, problematizando-o, politizando-o, pero sin perder la bravura. Alguns roteiristas da antiga Warner fizeram mais ou menos a mesma coisa com as peripécias (reais, legendárias ou imaginárias) de arqueiros, corsários e espadachins formidáveis, muito antes de Robin Hood receber de Eric Hobsbawm a fidalga insígnia de “bandido social”.
Já que uma parcela das sagas salgarianas foi escrita por mãos anônimas, a pedido do próprio filho do escritor, dispensam-se as objeções dos puristas. Salgari inventou e modelou todos os personagens, produziu a maior parte dos romances (a bem dizer, novelas), deu-lhes o espírito aventureiro e a tônica anticolonialista; Taibo soube aproveitar-se bem do que não ouso chamar de franquia, esquivando-se de injetar antígenos revisionistas nas façanhas do “pirata do bem”. Nenhum vilão de outrora virou mocinho em seu atualizado pasticho, narrado de uma “perspectiva marxista”, salienta o autor, para quem, esclareça-se, Os Três Mosqueteiros era (ou é) uma aventura marxista. O avant lettre não é facultativo.
Sessentões e de cabelos brancos, mas ainda vigorosos e intrépidos, Sandokan e Yáñez viajam até a ilha de Bornéu para desvendar a conspiração de uma sociedade secreta chinesa (o Clube da Serpente) que inferniza os pobres ilhéus asiáticos. Tornaram-se homens de ação e reflexão. Yáñez virou um justiceiro filosofante, que sabe de cor provérbios chineses e cita Calderón de la Barca e Quevedo. Como envelhecer com vigor e dignidade é um dos temas subjacentes da novela, em cuja trama se intrometem outras obsessões de Taibo, como Friedrich Engels (coautor do Manifesto Comunista), o professor Moriarty (o arquirrival de Sherlock Holmes), o escritor Rudyard Kipling (no papel de um jornalista) e Old Shatterhand (parceiro de Winnetou, o totêmico pele-vermelha inventado pelo alemão Karl May, outra estrela da ficção juvenil, contemporâneo de Salgari).
A inserção de Kipling é um achado. Jornalista de profissão, era nessa condição que ele narrava o conto O Homem Que Queria Ser Rei, adaptado ao cinema por John Huston e parcialmente inspirado nas proezas do britânico James Brooke, o primeiro rajá branco de Sarawak, no Bornéu, e o mais graduado rival de Sandokan. É quase um ciclo que se fecha; ou melhor, continua – infelizmente ad infinitum, ao que tudo leva a crer.
O viés marxista adotado por Taibo é uma licença poética, não de todo descabida. Ao contrário de Jules Verne, a quem chegou a ser comparado por conta de uma fantasia futurista ambientada no ano 2000, Salgari não via chances na utopia socialista, a seu ver, disse-o com outras palavras, um dinossauro ideológico. “Era uma bela utopia, que na prática não funcionou, resultando numa espécie de escravidão”, esclarece o guia dos visitantes do passado em As Maravilhas do Ano 2000, acrescentando: “Assim, voltamos à antiga e hoje há pobres e ricos, patrões e empregados, como sempre aconteceu desde que o mundo começou a ser povoado”.
Salgari tinha apenas 21 anos quando publicou seu primeiro folhetim, O Tigre da Malásia, em 1883, num jornal de Verona. Era uma máquina de produzir histórias, menos por gosto e vocação do que por pressão de um editor sanguessuga, que o obrigava a entregar vinte páginas de texto por dia e, no fim, o deixou de pires na mão. Desesperado, tentou em vão matar-se em 1909. Em 25 de abril de 1911, com uma faca de cozinha, praticou um haraquiri. Deixou três cartas: uma para os filhos, outra para um jornal de Turim, onde vivia, e outra para seus editores. Nesta escreveu: “De vocês, que enriqueceram à custa do meu suor, mantendo a mim e minha família na miséria, o mínimo que espero é que paguem o meu funeral. Saúdo-os quebrando a minha pena. Emilio Salgari”.
SERGIO AUGUSTO – O Estado de S.Paulo
Conhecido por alguns romances policiais e duas biografias (Che Guevara e Pancho Villa), Taibo, de 61 anos, não quis simplesmente pegar carona num secular fenômeno literário – por sinal, ainda de pé, inclusive no Brasil, onde a farta galeria de heróis salgarianos reluz nos catálogos da Ediouro e da Iluminuras -, mas apenas quitar sua dívida com o criador de Sandokan. Foi através das aventuras do Tigre da Malásia, do Leão de Damasco, do Capitão Tormenta, do Corsário Negro, de Tremal-Naik e outras míticas figuras da literatura infanto-juvenil criadas por Salgari no final do século 19 que Taibo descobriu o prazer da leitura e tomou suas primeiras lições sobre o valor moral da coragem, a cupidez dos poderosos e as nefastas ações ultramarinas dos impérios europeus.
Umberto Eco já prestara sua homenagem ao mestre veronês, por intermédio de um alter ego, Yambo, o reminiscente protagonista de A Misteriosa Chama da Rainha Loana. Taibo foi mais audacioso: não só reincorporou o universo ficcional de Salgari, como o revitalizou, modernizando-o, problematizando-o, politizando-o, pero sin perder la bravura. Alguns roteiristas da antiga Warner fizeram mais ou menos a mesma coisa com as peripécias (reais, legendárias ou imaginárias) de arqueiros, corsários e espadachins formidáveis, muito antes de Robin Hood receber de Eric Hobsbawm a fidalga insígnia de “bandido social”.
Já que uma parcela das sagas salgarianas foi escrita por mãos anônimas, a pedido do próprio filho do escritor, dispensam-se as objeções dos puristas. Salgari inventou e modelou todos os personagens, produziu a maior parte dos romances (a bem dizer, novelas), deu-lhes o espírito aventureiro e a tônica anticolonialista; Taibo soube aproveitar-se bem do que não ouso chamar de franquia, esquivando-se de injetar antígenos revisionistas nas façanhas do “pirata do bem”. Nenhum vilão de outrora virou mocinho em seu atualizado pasticho, narrado de uma “perspectiva marxista”, salienta o autor, para quem, esclareça-se, Os Três Mosqueteiros era (ou é) uma aventura marxista. O avant lettre não é facultativo.
Sessentões e de cabelos brancos, mas ainda vigorosos e intrépidos, Sandokan e Yáñez viajam até a ilha de Bornéu para desvendar a conspiração de uma sociedade secreta chinesa (o Clube da Serpente) que inferniza os pobres ilhéus asiáticos. Tornaram-se homens de ação e reflexão. Yáñez virou um justiceiro filosofante, que sabe de cor provérbios chineses e cita Calderón de la Barca e Quevedo. Como envelhecer com vigor e dignidade é um dos temas subjacentes da novela, em cuja trama se intrometem outras obsessões de Taibo, como Friedrich Engels (coautor do Manifesto Comunista), o professor Moriarty (o arquirrival de Sherlock Holmes), o escritor Rudyard Kipling (no papel de um jornalista) e Old Shatterhand (parceiro de Winnetou, o totêmico pele-vermelha inventado pelo alemão Karl May, outra estrela da ficção juvenil, contemporâneo de Salgari).
A inserção de Kipling é um achado. Jornalista de profissão, era nessa condição que ele narrava o conto O Homem Que Queria Ser Rei, adaptado ao cinema por John Huston e parcialmente inspirado nas proezas do britânico James Brooke, o primeiro rajá branco de Sarawak, no Bornéu, e o mais graduado rival de Sandokan. É quase um ciclo que se fecha; ou melhor, continua – infelizmente ad infinitum, ao que tudo leva a crer.
O viés marxista adotado por Taibo é uma licença poética, não de todo descabida. Ao contrário de Jules Verne, a quem chegou a ser comparado por conta de uma fantasia futurista ambientada no ano 2000, Salgari não via chances na utopia socialista, a seu ver, disse-o com outras palavras, um dinossauro ideológico. “Era uma bela utopia, que na prática não funcionou, resultando numa espécie de escravidão”, esclarece o guia dos visitantes do passado em As Maravilhas do Ano 2000, acrescentando: “Assim, voltamos à antiga e hoje há pobres e ricos, patrões e empregados, como sempre aconteceu desde que o mundo começou a ser povoado”.
Salgari tinha apenas 21 anos quando publicou seu primeiro folhetim, O Tigre da Malásia, em 1883, num jornal de Verona. Era uma máquina de produzir histórias, menos por gosto e vocação do que por pressão de um editor sanguessuga, que o obrigava a entregar vinte páginas de texto por dia e, no fim, o deixou de pires na mão. Desesperado, tentou em vão matar-se em 1909. Em 25 de abril de 1911, com uma faca de cozinha, praticou um haraquiri. Deixou três cartas: uma para os filhos, outra para um jornal de Turim, onde vivia, e outra para seus editores. Nesta escreveu: “De vocês, que enriqueceram à custa do meu suor, mantendo a mim e minha família na miséria, o mínimo que espero é que paguem o meu funeral. Saúdo-os quebrando a minha pena. Emilio Salgari”.
SERGIO AUGUSTO – O Estado de S.Paulo
sexta-feira, 28 de janeiro de 2011
O IBama virou um negócio insustentável (Marcos Sá Corrêa)
Antes de gerar o primeiro quilowatt, a usina hidrelétrica de Belo Monte, na bacia do Rio Xingu, no Pará, conseguiu incluir o Ministério do Meio Ambiente num negócio insustentável. Eletrocutou nesta semana mais um presidente do Ibama. Governo vai, governo vem, cada vez mais eles passam e ela fica.
Tragados por Belo Monte, os nomes passam pelo cargo tão depressa que mal dá tempo de aprendê-los. Geralmente saem de fininho, "exonerados a pedido" e condecorados por processos. Mas chegam com estardalhaço digno de plenipotenciários do patrimônio natural.
E é assim que o Brasil está inaugurando mais um presidente do Ibama. Quem? O catarinense Américo Ribeiro Tunes.
Como presidente substituto, Tunes nem precisou assinar a posse no Ibama. Assinou diretamente seu passaporte para a posteridade, assinando de cara a licença "parcial" de Belo Monte. Ela autoriza o desmatamento de 23 hectares na bacia do Rio Xingu para a instalação de um canteiro de obras que formalmente poderá ou não construir a hidrelétrica. Mas com isso deixou na poeira todos os recursos técnicos e judiciais que o projeto ainda não conseguiu responder.
O demissionário Abelardo Bayma, antecessor de Tunes, assinou a licença prévia de Belo Monte. O antecessor do antecessor, Roberto Messias Franco, desencalhou em 2009 os estudos de impacto da hidrelétrica. Em 2008, demitiu-se a ministra Marina Silva, ao entrar em rota de colisão com Belo Monte, depois de capitular diante das pressões para liberar as usinas de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira. Mesmo sem eletricidade, Belo Monte dá choque.
Dure muito ou pouco essa interinidade de Tunes, ele tem um lugar na história da usina e da burocracia ambiental, juntando sua assinatura à estreia da "licença parcial", um truque que a rigor serve para testar encanador em reforma de banheiro. "Parcial", neste caso, quer dizer o quê?
Interesses insensatos. Se o termo for sincero, o País está entregue a interesses poderosos, sem dúvida, mas insensatos a ponto defenestrar presidentes do Ibama só para construir um canteiro de obra sem a menor garantia de fazer a obra. Ideia semelhante só passou por Brasília uma vez, há mais de 30 anos, por meio da cabeça prodigiosa do economista Mario Henrique Simonsen. Como ministro do governo João Figueiredo, ele propôs que o Brasil legalizasse o pagamento de comissões por obras que não se pretendia executar. Alegava que assim todos sairiam ganhando. A começar pelos brasileiros, que assim gastariam menos com empreitadas inúteis e perdulárias.
Simonsen estava brincando. Queria simplesmente dizer com isso que muita coisa no País só sai do papel porque alguém está de olho na porcentagem da intermediação. Mas a licença "parcial" de Belo Monte, a julgar pelo número de baixas que já causou, está falando a sério, mesmo sem esclarecer se aquilo custará menos de R$ 19 bilhões ou mais de R$ 30 bilhões e gerará 11 mil ou 4 mil megawatts.
Belo Monte é urgente porque o Palácio do Planalto está sentado sobre mais de 60 projetos de usinas, a maioria na Amazônia. Isso porque a região tem potencial sobrando? Não. Por enquanto, o que há são advertências no mínimo plausíveis, como a do engenheiro Enéas Salati, da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável.
Salati está combinando com calma e cautela o que já se sabe sobre mudança climática com o que se conhece dos rios nas 12 grandes regiões hidrológicas do território brasileiro. Encara um horizonte de 2015 a 2100. Não tem pressa, porque não vai ganhar nem perder um tostão com obra nem desmatamento. Mas já tem dados para prever que a vazão média dos rios na Amazônia cairá de 30% a 40% até o fim do século. O Rio Tocantins tende a chegar lá com a metade do volume que tinha antes de 1990. É para lá que o governo está nos levando, custe o que custar.
Tragados por Belo Monte, os nomes passam pelo cargo tão depressa que mal dá tempo de aprendê-los. Geralmente saem de fininho, "exonerados a pedido" e condecorados por processos. Mas chegam com estardalhaço digno de plenipotenciários do patrimônio natural.
E é assim que o Brasil está inaugurando mais um presidente do Ibama. Quem? O catarinense Américo Ribeiro Tunes.
Como presidente substituto, Tunes nem precisou assinar a posse no Ibama. Assinou diretamente seu passaporte para a posteridade, assinando de cara a licença "parcial" de Belo Monte. Ela autoriza o desmatamento de 23 hectares na bacia do Rio Xingu para a instalação de um canteiro de obras que formalmente poderá ou não construir a hidrelétrica. Mas com isso deixou na poeira todos os recursos técnicos e judiciais que o projeto ainda não conseguiu responder.
O demissionário Abelardo Bayma, antecessor de Tunes, assinou a licença prévia de Belo Monte. O antecessor do antecessor, Roberto Messias Franco, desencalhou em 2009 os estudos de impacto da hidrelétrica. Em 2008, demitiu-se a ministra Marina Silva, ao entrar em rota de colisão com Belo Monte, depois de capitular diante das pressões para liberar as usinas de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira. Mesmo sem eletricidade, Belo Monte dá choque.
Dure muito ou pouco essa interinidade de Tunes, ele tem um lugar na história da usina e da burocracia ambiental, juntando sua assinatura à estreia da "licença parcial", um truque que a rigor serve para testar encanador em reforma de banheiro. "Parcial", neste caso, quer dizer o quê?
Interesses insensatos. Se o termo for sincero, o País está entregue a interesses poderosos, sem dúvida, mas insensatos a ponto defenestrar presidentes do Ibama só para construir um canteiro de obra sem a menor garantia de fazer a obra. Ideia semelhante só passou por Brasília uma vez, há mais de 30 anos, por meio da cabeça prodigiosa do economista Mario Henrique Simonsen. Como ministro do governo João Figueiredo, ele propôs que o Brasil legalizasse o pagamento de comissões por obras que não se pretendia executar. Alegava que assim todos sairiam ganhando. A começar pelos brasileiros, que assim gastariam menos com empreitadas inúteis e perdulárias.
Simonsen estava brincando. Queria simplesmente dizer com isso que muita coisa no País só sai do papel porque alguém está de olho na porcentagem da intermediação. Mas a licença "parcial" de Belo Monte, a julgar pelo número de baixas que já causou, está falando a sério, mesmo sem esclarecer se aquilo custará menos de R$ 19 bilhões ou mais de R$ 30 bilhões e gerará 11 mil ou 4 mil megawatts.
Belo Monte é urgente porque o Palácio do Planalto está sentado sobre mais de 60 projetos de usinas, a maioria na Amazônia. Isso porque a região tem potencial sobrando? Não. Por enquanto, o que há são advertências no mínimo plausíveis, como a do engenheiro Enéas Salati, da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável.
Salati está combinando com calma e cautela o que já se sabe sobre mudança climática com o que se conhece dos rios nas 12 grandes regiões hidrológicas do território brasileiro. Encara um horizonte de 2015 a 2100. Não tem pressa, porque não vai ganhar nem perder um tostão com obra nem desmatamento. Mas já tem dados para prever que a vazão média dos rios na Amazônia cairá de 30% a 40% até o fim do século. O Rio Tocantins tende a chegar lá com a metade do volume que tinha antes de 1990. É para lá que o governo está nos levando, custe o que custar.
quarta-feira, 26 de janeiro de 2011
Pequenas Lembranças (Juca Magalhães)
Muita gente me diz que eu tenho boa memória, dizem que eu lembro muitas coisas, coisas que ninguém mais lembra. Não sei. Acho que não é bem verdade. O gatilho de nossas lembranças dispara quando estamos receptivos para a experiência, quando queremos lembrar coisas.
Quando pequeno, no início da infância, lembro da “venda do Zé Pretinho”. Muitos se lembram dela também, se começamos a conversar sobre as coisas que tinham lá é provável que até a sua memória vá se expandindo. Não existem mais vendas como aquela nos dias de hoje, não aqui na cidade, talvez no interior. Talvez.
Seu Zé tinha uma voz rachada como bambu, estridente. Era pequeno, mas eu também era. Ele se escondia atrás dos balcões. Eu também. A sua venda tinha coisas de papelaria, canivetes, aqueles espelhinhos com moldura laranja, pentes redondos de encaixar na palma da mão, chapéus de palha e de vaqueiro, pipas, bandeirolas. Eu ia lá por causa dos doces e do refrigerante.
Tinha cocada branca e escura, pé de moleque, Maria mole e uns sorvetes que pareciam isopor. Chicletes, balas de todos os tipos e aqueles doces estranhos em forma de coração com sabor de abóbora e outras coisas que hoje parecem bizarras. Do lado da venda do Zé Pretinho tinha uma costureira. Indo em direção a nossa casa ficava o barraquinho do sapateiro.
O Zé Pretinho vendia coisas proibidas para os guris, por isso mesmo comprá-las era parte da diversão. Especialmente as bombinhas. Tinham as irritantes pimentinhas que vinham numa caixinha de papelão, as bombinhas pequenas com um fósforo para riscar que a gente chamava de “peido de velha” e as grandes apelidadas de “cabeça de nego”. Bom, lá também tinha rapé.
Foi a primeira droga que eu experimentei, afinal, o rapé é tabaco para inalar. Eu não fazia idéia que aquilo era droga, também não lembro como a moda se difundiu entre a garotada. Achava o máximo cheirar aquele pozinho escuro e apimentado e depois ficar espirrando. As vezes o rapé descia para a garganta e o gosto não era ruim. Duas coisas me fizeram lembrar do rapé e é assim que nossa memória distante funciona.
Na quinta passada encontrei com o Toninho, velho amigo daqueles tempos. E no sábado fui na Vila Rubim com um amigo que parou para comprar folhas de chá e lá vendia rapé também. Peguei a latinha redonda de metal, as memórias se fundiram. Toninho me falou do falecimento de Glorinha, sua mãe e foi ela, dentre os adultos, quem primeiro se deu conta de nossa traquinagem. Tomamos um brigueiro daqueles, rolou até a ameaça de proibir o filho de andar comigo.
Lembro de ter ficado chateado com sua reação, para mim exagerada, meus pais não costumavam me chamar a atenção daquela maneira. Talvez fosse melhor se o tivessem feito, talvez para um outro futuro. Talvez. Nunca tive chance de a agradecer, ela era uma pessoa que queria o nosso bem. Mas é assim que as coisas são. Em seu momento as pessoas se vão e nós ficamos aqui, nós e as nossas pequenas lembranças.
Quando pequeno, no início da infância, lembro da “venda do Zé Pretinho”. Muitos se lembram dela também, se começamos a conversar sobre as coisas que tinham lá é provável que até a sua memória vá se expandindo. Não existem mais vendas como aquela nos dias de hoje, não aqui na cidade, talvez no interior. Talvez.
Seu Zé tinha uma voz rachada como bambu, estridente. Era pequeno, mas eu também era. Ele se escondia atrás dos balcões. Eu também. A sua venda tinha coisas de papelaria, canivetes, aqueles espelhinhos com moldura laranja, pentes redondos de encaixar na palma da mão, chapéus de palha e de vaqueiro, pipas, bandeirolas. Eu ia lá por causa dos doces e do refrigerante.
Tinha cocada branca e escura, pé de moleque, Maria mole e uns sorvetes que pareciam isopor. Chicletes, balas de todos os tipos e aqueles doces estranhos em forma de coração com sabor de abóbora e outras coisas que hoje parecem bizarras. Do lado da venda do Zé Pretinho tinha uma costureira. Indo em direção a nossa casa ficava o barraquinho do sapateiro.
O Zé Pretinho vendia coisas proibidas para os guris, por isso mesmo comprá-las era parte da diversão. Especialmente as bombinhas. Tinham as irritantes pimentinhas que vinham numa caixinha de papelão, as bombinhas pequenas com um fósforo para riscar que a gente chamava de “peido de velha” e as grandes apelidadas de “cabeça de nego”. Bom, lá também tinha rapé.
Foi a primeira droga que eu experimentei, afinal, o rapé é tabaco para inalar. Eu não fazia idéia que aquilo era droga, também não lembro como a moda se difundiu entre a garotada. Achava o máximo cheirar aquele pozinho escuro e apimentado e depois ficar espirrando. As vezes o rapé descia para a garganta e o gosto não era ruim. Duas coisas me fizeram lembrar do rapé e é assim que nossa memória distante funciona.
Na quinta passada encontrei com o Toninho, velho amigo daqueles tempos. E no sábado fui na Vila Rubim com um amigo que parou para comprar folhas de chá e lá vendia rapé também. Peguei a latinha redonda de metal, as memórias se fundiram. Toninho me falou do falecimento de Glorinha, sua mãe e foi ela, dentre os adultos, quem primeiro se deu conta de nossa traquinagem. Tomamos um brigueiro daqueles, rolou até a ameaça de proibir o filho de andar comigo.
Lembro de ter ficado chateado com sua reação, para mim exagerada, meus pais não costumavam me chamar a atenção daquela maneira. Talvez fosse melhor se o tivessem feito, talvez para um outro futuro. Talvez. Nunca tive chance de a agradecer, ela era uma pessoa que queria o nosso bem. Mas é assim que as coisas são. Em seu momento as pessoas se vão e nós ficamos aqui, nós e as nossas pequenas lembranças.
O Ministério do Bolso adverte: pule a cerca... mas com moderação!
"Se você é casado(a) e também é simpatizante da, digamos, terceirização, ou portabilidade conjugal (se é que você me entende), é bom ficar atento(a)"
Heitor Peixoto*
Dois projetos em tramitação na Câmara dos Deputados “prometem”, digamos, inovar o “mercado das escapadelas”.
Um deles (PL 6.433/2009) é de autoria do deputado federal Paes de Lira (PTC-SP) e abre a possibilidade de, num cenário de infidelidade conjugal, o(a) amante ser condenado(a) a pagar pensão alimentícia no lugar do cônjuge que, bem, “contribuiu” para a traição.
Ou seja, minha senhora, com a devida vênia, se seu marido lhe botar aquele belo par de chifres e vocês se separarem por causa disso, a pensão pode vir a ser paga... pela amante dele. Quanto a você, nobre senhor que não perdoa mulher casada, cuidado, pois você pode vir a ser chamado a sustentar... o ex-marido dela, no caso deles se separarem em função da traição. Que tal o negócio?
Se essa proposta parece ruim para o(a) amante, a outra matéria só não recebeu o apoio de entidades representativas da categoria... porque ainda não tiveram a pachorra de criar uma entidade representativa para a categoria. Ainda.
O PL 2.285/2007, não menos polêmico, é do deputado federal Sérgio Barradas Carneiro (PT/BA). Ele prevê que o(a) amante também pode vir a ser beneficiário(a) de pensão e partilha de bens, na falta daquele ou daquela com quem se relacionava em caráter extraconjugal.
Segundo o deputado, "a união formada em desacordo aos impedimentos legais não exclui os deveres de assistência e a partilha dos bens". Mas não vale qualquer traiçãozinha não, hein? Seria preciso, nesse caso, provar que a tal escapadela era, na verdade, uma união estável, ainda que não estivesse registrada como tal.
Comprovado o vínculo, imaginem uma viúva tendo que dividir o patrimônio... com a outra. E como traição não é “privilégio” de um ou outro sexo, o mesmo valeria para viúvos, que poderiam ver uma parte dos bens adquiridos ao longo do casamento ir parar nas mãos do famoso Ricardão.
Os dois projetos foram apensados a outro (PL 674/2007) do deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP), que recebeu parecer favorável na Comissão de Constituição e Justiça em sua última reunião, no dia 15 de dezembro. Assim, esses projetos continuam tramitando agora em 2011.
Portanto, se você é casado(a) e também é simpatizante da, digamos, terceirização, ou portabilidade conjugal (se é que você me entende), é bom ficar atento(a). Essa brincadeira pode vir a pesar em mais bolsos do que ocorre hoje: no de seu (ou sua) amante... ou até mesmo no dos dependentes legítimos, caso o senhor ou a senhora parta desta para uma melhor.
*Repórter da TV Assembleia de Minas Gerais.
Congresso em foco
Heitor Peixoto*
Dois projetos em tramitação na Câmara dos Deputados “prometem”, digamos, inovar o “mercado das escapadelas”.
Um deles (PL 6.433/2009) é de autoria do deputado federal Paes de Lira (PTC-SP) e abre a possibilidade de, num cenário de infidelidade conjugal, o(a) amante ser condenado(a) a pagar pensão alimentícia no lugar do cônjuge que, bem, “contribuiu” para a traição.
Ou seja, minha senhora, com a devida vênia, se seu marido lhe botar aquele belo par de chifres e vocês se separarem por causa disso, a pensão pode vir a ser paga... pela amante dele. Quanto a você, nobre senhor que não perdoa mulher casada, cuidado, pois você pode vir a ser chamado a sustentar... o ex-marido dela, no caso deles se separarem em função da traição. Que tal o negócio?
Se essa proposta parece ruim para o(a) amante, a outra matéria só não recebeu o apoio de entidades representativas da categoria... porque ainda não tiveram a pachorra de criar uma entidade representativa para a categoria. Ainda.
O PL 2.285/2007, não menos polêmico, é do deputado federal Sérgio Barradas Carneiro (PT/BA). Ele prevê que o(a) amante também pode vir a ser beneficiário(a) de pensão e partilha de bens, na falta daquele ou daquela com quem se relacionava em caráter extraconjugal.
Segundo o deputado, "a união formada em desacordo aos impedimentos legais não exclui os deveres de assistência e a partilha dos bens". Mas não vale qualquer traiçãozinha não, hein? Seria preciso, nesse caso, provar que a tal escapadela era, na verdade, uma união estável, ainda que não estivesse registrada como tal.
Comprovado o vínculo, imaginem uma viúva tendo que dividir o patrimônio... com a outra. E como traição não é “privilégio” de um ou outro sexo, o mesmo valeria para viúvos, que poderiam ver uma parte dos bens adquiridos ao longo do casamento ir parar nas mãos do famoso Ricardão.
Os dois projetos foram apensados a outro (PL 674/2007) do deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP), que recebeu parecer favorável na Comissão de Constituição e Justiça em sua última reunião, no dia 15 de dezembro. Assim, esses projetos continuam tramitando agora em 2011.
Portanto, se você é casado(a) e também é simpatizante da, digamos, terceirização, ou portabilidade conjugal (se é que você me entende), é bom ficar atento(a). Essa brincadeira pode vir a pesar em mais bolsos do que ocorre hoje: no de seu (ou sua) amante... ou até mesmo no dos dependentes legítimos, caso o senhor ou a senhora parta desta para uma melhor.
*Repórter da TV Assembleia de Minas Gerais.
Congresso em foco
"CAUSOS" BORGIANOS (Ariel palacios)
Livro reúne 333 ‘causos’ borgianos
O escritor argentino Jorge Luis Borges poderia ter morrido atropelado em uma rua londrina por uma brincadeira do colega cubano Guillermo Cabrera Infante nos anos 70. Uma noite os dois caminhavam juntos na direção da praça Berkeley quando o escritor cubano, suspeitando que o colega argentino não era um cego verdadeiro, mas apenas um farsante para “emular Milton e Homero”, decidiu deixar Borges sozinho no meio de uma rua com intenso tráfego de automóveis. Os táxis e carros esquivavam o autor de “Ficções” e “O Informe de Brodie”, enquanto este – sozinho – continuava lentamente atravessando a rua. “Borges estava impassível, talvez devido à sua condição de discípulo do (bispo e filósofo George) Berkeley. Isto é, já que ele não via os carros, estes não existiam. Corri para resgatar Borges e o levei a um lugar seguro”, explicou posteriormente Cabrera Infante.
Este causo – junto com outros 332 – foram recopilados pelo escritor e jornalista argentino Mario Paoletti em “O outro Borges – Anedotário completo” – recém-lançado em Buenos Aires pela editora Emecé. A maior parte dos “causos” mostram as irônicas opiniões – e atitudes – de Borges sobre religião, literatura, política e religião, entre vários outros assuntos. Segundo Paoletti, nenhum outro escritor no mundo hispano-americano gerou tantos “causos” como Borges. “Não é impossível que isto se transforme em um subgênero literário”, diz.
BLEFE – No livro, Paoletti conta duas cenas vistas pelo escritor Blas Matamoros nos EUA com Borges. Em uma delas, uma pessoa diz ao escritor argentino: “Borges, o senhor é um blefe”. Borges respondeu: “sim, mas leve em conta que é involuntário…”.
Na outra cena um estudante contestador grita ao escritor: “você, Borges, está morto!”. Borges retrucou: “é verdade, só existe um erro nas datas”.
DEUS, A VIRGEM E O MOTOR – O editor polonês-americano Walter Bara, da editora McGraw-Hill conta a yBorges que havia estado em um avião que quase estatelou-se no chão porque um de seus motores havia desprendido da fuselagem. No entanto, depois de uma vertiginosa queda, o piloto conseguiu equilibrar o avião e aterrissar. Bara cumprimentou o piloto efusivamente. Mas, os outros passageiros ficaram zangados com ele, já que atribuíam a salvação de suas vidas à uma medalhinha da Virgem Maria que uma das passageiras pegou em sua maleta quando o avião caía. Borges ouviu o relato e comentou: “isto é, Deus havia ordenado que o motor se soltasse e que eles morressem. Mas, graças a um apelo à Virgem, intervém um subalterno de Deus (a Virgem em questão) e muda os planos. Como alguém pode pensar assim?”.
SINCERIDADE E CALOR – Em um dia de calor sufocante Borges chega à casa do amigo e escritor Adolfo Bioy Casares, na elegante rua Posadas, no bairro da Recoleta, para almoçar (costume que manteve durante décadas, todos os dias). Os almoços eram embalados por conversas sobre filosofia e literatura. Mas, ao entrar, cumprimenta o amigo e diz: “o calor é o assunto natural. Sejamos sinceros: falemos sobre o calor”.
LUGAR ERRADO – Adolfo Bioy Casares, Silvina Ocampo (mulher de Bioy) e Borges vão a um velório. Mas, não encontram a casa. E de quebra, não lembram do nome do morto. Outro dia, o trio vai a um lugar onde Borges terá que proferir uma palestra. No entanto, entram, por engano, na casa errada, onde está sendo celebrado um casamento. Cumprimentam todas as pessoas e só percebem que a conferência não é ali quando os noivos aparecem.
SINCERIDADE E ESTADO – Durante uma entrevista à revista portenha “Siete Días” em 1973 o jornalista conversava com Borges sobre as modalidades de Estados.
- Sr. Borges, que tipo de Estado desejaria?
- Um Estado mínimo, que não fosse notado. Morei na Suíça cinco anos e ali ninguém sabia o nome do presidente.
- A abolição do Estado que o senhor propõe tem muito a ver com o anarquismo.
- Sim, exato, com o anarquismo de Spencer, por exemplo. Mas não sei se somos suficientemente civilizados para chegar ali.
- Acredita seriamente que tal Estado é factível?
- Evidentemente. Mas, uma coisa é verdade: será preciso esperar 200 ou 300 anos.
- E enquanto isso, Borges?
- Enquanto isso a gente se f…
SER OU NÃO SER – O livro conta que em uma ocasião o poeta Eduardo González Lanuza, amigo de Borges desde a adolescência, caminhava pela rua Florida, em pleno centro portenho, quando repentinamente vê o autor de “O Aleph” sozinho, no meio da multidão que caminha apressada. Borges, cego, estava com sua bengala no meio-fio, esperando para atravessar a rua. O poeta coloca a mão em cima do ombro do amigo e diz: “Borges, sou eu, González Lanuza”. Borges gira a cabeça e após uns segundos, responde: “é muito provável”.
GASTRONOMIA – Paoletti relata que em uma entrevista em Roma um jornalista europeu tentava colocar Borges em uma situação constrangedora. Mas, como não conseguia, recorreu a uma pergunta que considerou que seria muito provocante: “em seu país ainda existem canibais?”. Borges, imediatamente, respondeu: “já não existem mais… devoramos todos eles”.
SÉCULO – Um jornalista entrevista Borges em Paris em um estúdio de gravação. Em meio à conversa, o jornalista pergunta a Borges:
- O sr. percebe que é um dos grandes escritores deste século?
Borges fica quieto durante uns segundos e responde:
- É que este foi um século muito medíocre…
METAFORICÍDIO – O livro também conta como Borges um dia foi ao banco, onde uma funcionária lhe disse: “embora eu saiba (de memória) qual é seu saldo bancário, vou verificá-lo, pois não gostaria de dizer uma coisa e que seja outra”. Borges depois relatou ao amigo Esteban Peicovich: “essa senhorita acabou de assassinar a metáfora”.
CASTELO – Paoletti também conta – baseado no relato do poeta José Bergamin – que nos anos 50 Borges foi à Montevidéu para uma série de conferências. Mas, antes de iniciar, começou a colocar sobre a mesa uma pilha de livros. No entanto, ao longo da palestra, não usou nenhum dos livros ali colocados. Ao terminar a conferência Bergamín aproximou-se de Borges e perguntou qual havia sido a utilidade de tantos volumes que não consultou. Borges respondeu: “eu os uso como ameia”.
Borges, ilustrado pelo cartunista uruguaio Alberto Breccia para o comic “Perramus”, no qual o escritor envolve-se em uma delirante trama política-policial de realismo fantástico.
PREMATURA – Anos antes da morte de Borges em 1986 na Suíça, os jornais franceses, além do New York Times, publicaram a notícia de que ele havia morrido. Preocupado, o ensaísta Ulysses Petit de Murat tentou entrar em contato Borges, até que conseguiu encontrá-lo e confirmar que estava vivo. Murat expressou a Borges seu desagrado pela “notícia apócrifa de sua morte”. Borges corrigiu: “apócrifa não…somente prematura”.
Ariel Palacios (Estadao)
19.janeiro.2011
O escritor argentino Jorge Luis Borges poderia ter morrido atropelado em uma rua londrina por uma brincadeira do colega cubano Guillermo Cabrera Infante nos anos 70. Uma noite os dois caminhavam juntos na direção da praça Berkeley quando o escritor cubano, suspeitando que o colega argentino não era um cego verdadeiro, mas apenas um farsante para “emular Milton e Homero”, decidiu deixar Borges sozinho no meio de uma rua com intenso tráfego de automóveis. Os táxis e carros esquivavam o autor de “Ficções” e “O Informe de Brodie”, enquanto este – sozinho – continuava lentamente atravessando a rua. “Borges estava impassível, talvez devido à sua condição de discípulo do (bispo e filósofo George) Berkeley. Isto é, já que ele não via os carros, estes não existiam. Corri para resgatar Borges e o levei a um lugar seguro”, explicou posteriormente Cabrera Infante.
Este causo – junto com outros 332 – foram recopilados pelo escritor e jornalista argentino Mario Paoletti em “O outro Borges – Anedotário completo” – recém-lançado em Buenos Aires pela editora Emecé. A maior parte dos “causos” mostram as irônicas opiniões – e atitudes – de Borges sobre religião, literatura, política e religião, entre vários outros assuntos. Segundo Paoletti, nenhum outro escritor no mundo hispano-americano gerou tantos “causos” como Borges. “Não é impossível que isto se transforme em um subgênero literário”, diz.
BLEFE – No livro, Paoletti conta duas cenas vistas pelo escritor Blas Matamoros nos EUA com Borges. Em uma delas, uma pessoa diz ao escritor argentino: “Borges, o senhor é um blefe”. Borges respondeu: “sim, mas leve em conta que é involuntário…”.
Na outra cena um estudante contestador grita ao escritor: “você, Borges, está morto!”. Borges retrucou: “é verdade, só existe um erro nas datas”.
DEUS, A VIRGEM E O MOTOR – O editor polonês-americano Walter Bara, da editora McGraw-Hill conta a yBorges que havia estado em um avião que quase estatelou-se no chão porque um de seus motores havia desprendido da fuselagem. No entanto, depois de uma vertiginosa queda, o piloto conseguiu equilibrar o avião e aterrissar. Bara cumprimentou o piloto efusivamente. Mas, os outros passageiros ficaram zangados com ele, já que atribuíam a salvação de suas vidas à uma medalhinha da Virgem Maria que uma das passageiras pegou em sua maleta quando o avião caía. Borges ouviu o relato e comentou: “isto é, Deus havia ordenado que o motor se soltasse e que eles morressem. Mas, graças a um apelo à Virgem, intervém um subalterno de Deus (a Virgem em questão) e muda os planos. Como alguém pode pensar assim?”.
SINCERIDADE E CALOR – Em um dia de calor sufocante Borges chega à casa do amigo e escritor Adolfo Bioy Casares, na elegante rua Posadas, no bairro da Recoleta, para almoçar (costume que manteve durante décadas, todos os dias). Os almoços eram embalados por conversas sobre filosofia e literatura. Mas, ao entrar, cumprimenta o amigo e diz: “o calor é o assunto natural. Sejamos sinceros: falemos sobre o calor”.
LUGAR ERRADO – Adolfo Bioy Casares, Silvina Ocampo (mulher de Bioy) e Borges vão a um velório. Mas, não encontram a casa. E de quebra, não lembram do nome do morto. Outro dia, o trio vai a um lugar onde Borges terá que proferir uma palestra. No entanto, entram, por engano, na casa errada, onde está sendo celebrado um casamento. Cumprimentam todas as pessoas e só percebem que a conferência não é ali quando os noivos aparecem.
SINCERIDADE E ESTADO – Durante uma entrevista à revista portenha “Siete Días” em 1973 o jornalista conversava com Borges sobre as modalidades de Estados.
- Sr. Borges, que tipo de Estado desejaria?
- Um Estado mínimo, que não fosse notado. Morei na Suíça cinco anos e ali ninguém sabia o nome do presidente.
- A abolição do Estado que o senhor propõe tem muito a ver com o anarquismo.
- Sim, exato, com o anarquismo de Spencer, por exemplo. Mas não sei se somos suficientemente civilizados para chegar ali.
- Acredita seriamente que tal Estado é factível?
- Evidentemente. Mas, uma coisa é verdade: será preciso esperar 200 ou 300 anos.
- E enquanto isso, Borges?
- Enquanto isso a gente se f…
SER OU NÃO SER – O livro conta que em uma ocasião o poeta Eduardo González Lanuza, amigo de Borges desde a adolescência, caminhava pela rua Florida, em pleno centro portenho, quando repentinamente vê o autor de “O Aleph” sozinho, no meio da multidão que caminha apressada. Borges, cego, estava com sua bengala no meio-fio, esperando para atravessar a rua. O poeta coloca a mão em cima do ombro do amigo e diz: “Borges, sou eu, González Lanuza”. Borges gira a cabeça e após uns segundos, responde: “é muito provável”.
GASTRONOMIA – Paoletti relata que em uma entrevista em Roma um jornalista europeu tentava colocar Borges em uma situação constrangedora. Mas, como não conseguia, recorreu a uma pergunta que considerou que seria muito provocante: “em seu país ainda existem canibais?”. Borges, imediatamente, respondeu: “já não existem mais… devoramos todos eles”.
SÉCULO – Um jornalista entrevista Borges em Paris em um estúdio de gravação. Em meio à conversa, o jornalista pergunta a Borges:
- O sr. percebe que é um dos grandes escritores deste século?
Borges fica quieto durante uns segundos e responde:
- É que este foi um século muito medíocre…
METAFORICÍDIO – O livro também conta como Borges um dia foi ao banco, onde uma funcionária lhe disse: “embora eu saiba (de memória) qual é seu saldo bancário, vou verificá-lo, pois não gostaria de dizer uma coisa e que seja outra”. Borges depois relatou ao amigo Esteban Peicovich: “essa senhorita acabou de assassinar a metáfora”.
CASTELO – Paoletti também conta – baseado no relato do poeta José Bergamin – que nos anos 50 Borges foi à Montevidéu para uma série de conferências. Mas, antes de iniciar, começou a colocar sobre a mesa uma pilha de livros. No entanto, ao longo da palestra, não usou nenhum dos livros ali colocados. Ao terminar a conferência Bergamín aproximou-se de Borges e perguntou qual havia sido a utilidade de tantos volumes que não consultou. Borges respondeu: “eu os uso como ameia”.
Borges, ilustrado pelo cartunista uruguaio Alberto Breccia para o comic “Perramus”, no qual o escritor envolve-se em uma delirante trama política-policial de realismo fantástico.
PREMATURA – Anos antes da morte de Borges em 1986 na Suíça, os jornais franceses, além do New York Times, publicaram a notícia de que ele havia morrido. Preocupado, o ensaísta Ulysses Petit de Murat tentou entrar em contato Borges, até que conseguiu encontrá-lo e confirmar que estava vivo. Murat expressou a Borges seu desagrado pela “notícia apócrifa de sua morte”. Borges corrigiu: “apócrifa não…somente prematura”.
Ariel Palacios (Estadao)
19.janeiro.2011
Legitimidades e vilezas (Roberto Damatta )
Um traço visível, insofismável e indelével de nosso patriarcalismo escravista que curiosamente Gilberto Freyre não associava ao Estado, mas somente à sociedade, é - em toda tentativa de modernização - uma profunda crise de legitimidade. As regras não se encaixam aos comportamentos ou sequer com as suas implicações jurídicas. Essa incongruência surge em quase todos os domínios do chamado "estado" que confundimos (propositadamente ou não) com o seu lado mais personificado, o "governo" (que é sempre de alguém). O resultado é a vil transformação do legítimo em ilegítimo, tal como ocorre quando um tribunal condena um inocente. No momento chama atenção a questão da aposentadoria de governadores, um sistema que permite acumular múltiplos benefícios de tal sorte que os "patrões do Estado" (relativamente eventuais, mas com um olho grande nas vantagens permanentes), transformam a administração pública num mecanismo de enriquecimento pessoal a competir com o seu lado altruístico e "social". Neste processo, o Estado deixa de ser um sistema destinado a prestar serviços à sociedade. Só há grana para pessoal, não há como investir em educação, saúde, transporte e segurança.
Estou convencido que tal modelo nasceu na matriz aristocrática imperial somada ao neo-stalinismo, tão popular entre os "desenhistas" que sucessivamente reformaram (com um extraordinário pendor para o pior) a nossa administração pública. Tais engenheiros, chamados nos governos militares de "tecnocratas", sempre foram travestis dos velhos letrados ibéricos, bacharéis em Coimbra, e crentes num platonismo jurídico que até hoje proclama a letra da lei como tendo o poder (tal qual uma fórmula mágica) de modificar a realidade, resolvendo suas contradições. Esse fetichismo jurídico-político tem sido dominante na política brasileira. É dele que vêm um brutal centralismo e o poder avassalador que faz com que um presidente tenha a capacidade de nomear milhares de pessoas e de distribuir para os ávidos comedores do bom presunto desse velho Reino de Janbom inúmeros cargos e instituições. Haja, porém, dinheiro para sustentar cada vez que tais mudanças sempre centralizadoras são feitas, causando roubos e rombos de todos os tipos. Numa fórmula, fizemos a república, mas jamais admitimos viver num sistema republicano. E os recursos da sociedade, furtados pelo Estado, são os construtores de uma curiosa dualidade: de um lado, os milionários por ele vitaliciamente mantidos; do outro, os milhões de pobres e desvalidos que vibram quando recebem uma bolsa de pobreza! Tudo isso sob a égide de políticos bem vestidos e falantes, pronto para politizar tudo, até mesmo a política!
fonte: O Estado de S.Paulo
Estou convencido que tal modelo nasceu na matriz aristocrática imperial somada ao neo-stalinismo, tão popular entre os "desenhistas" que sucessivamente reformaram (com um extraordinário pendor para o pior) a nossa administração pública. Tais engenheiros, chamados nos governos militares de "tecnocratas", sempre foram travestis dos velhos letrados ibéricos, bacharéis em Coimbra, e crentes num platonismo jurídico que até hoje proclama a letra da lei como tendo o poder (tal qual uma fórmula mágica) de modificar a realidade, resolvendo suas contradições. Esse fetichismo jurídico-político tem sido dominante na política brasileira. É dele que vêm um brutal centralismo e o poder avassalador que faz com que um presidente tenha a capacidade de nomear milhares de pessoas e de distribuir para os ávidos comedores do bom presunto desse velho Reino de Janbom inúmeros cargos e instituições. Haja, porém, dinheiro para sustentar cada vez que tais mudanças sempre centralizadoras são feitas, causando roubos e rombos de todos os tipos. Numa fórmula, fizemos a república, mas jamais admitimos viver num sistema republicano. E os recursos da sociedade, furtados pelo Estado, são os construtores de uma curiosa dualidade: de um lado, os milionários por ele vitaliciamente mantidos; do outro, os milhões de pobres e desvalidos que vibram quando recebem uma bolsa de pobreza! Tudo isso sob a égide de políticos bem vestidos e falantes, pronto para politizar tudo, até mesmo a política!
fonte: O Estado de S.Paulo
Gato por lebre (Alon Feuerwerker)
A boa notícia deste início de ano é que o governo Dilma Rousseff não se sente estimulado a lançar seus exércitos no pântano congressual das reformas. Mas é bom ficar de olho
A alardeada urgência de macrorreformas como a política e a tributária é uma verdade absoluta. Parece dispensar comprovação.
A tal verdade absoluta nasce de uma esperteza.
Num país repleto de passagens reprováveis na vida política, quem poderia ser contra uma reforma política, que o público poderia “comprar” como reforma benigna “da” política?
E num país de carga tributária sempre descrita como alta quem poderia se opor a uma reforma benigna do sistema de impostos? Desde que, naturalmente, o Estado continuasse a prover tudo que provê hoje. Ou mais.
Por motivos semelhantes, a maioria tenderá a inclinar-se para o “sim” se alguém propuser abstratamente uma reforma da segurança pública, ou da saúde, ou da educação. Ou do transporte público nas metrópoles. E por que não dos aeroportos? Ou das rodoviárias?
O reformismo genérico ganhou corpo entre nós depois da última Constituinte, por uma razão: segmentos da opinião pública preferiam uma Carta menos intervencionista, menos generosa no campo social. Daí o esforço ininterrupto para desidratá-la.
Na esfera trabalhista, por exemplo, o apelo permanente é por uma mudança que “facilite a contratação” de mão de obra. O próprio ex-presidente recém-saído andou no passado posando de bom moço em defesa da tese. Na passagem do primeiro para o segundo mandato falou longamente à The Economist sobre a ideia.
Mas sempre que a discussão desce para a vida prática do mundo do trabalho as medidas propostas visam a facilitar a demissão, e não a contratação. E ainda está para ser provado que demissões mais fáceis gerariam mais contratações.
No começo do governo do PT, em 2003, tentou-se implantar um tal de “Programa Primeiro Emprego”, prometido pelo candidato na campanha do ano anterior. A ideia era precisamente reduzir encargos para facilitar a absorção de mão de obra novata. O programa foi engavetado depois do fracasso completo.
Mas a geração de empregos nos últimos anos acabou sendo bastante satisfatória, e sem mexer em nenhum direito dos trabalhadores.
No debate recente sobre a prorrogação da Contribuição “Provisória” sobre Movimentação Financeira havia o argumento de que sem a CPMF os preços cairiam, por não mais carregarem as taxas cobradas ao longo de toda a cadeia produtiva. Alguém ouviu falar de algo que tenha ficado mais barato por causa do fim da CPMF?
Não aconteceu. Apenas cerca de R$ 50 bilhões anuais deixaram de ser recolhidos aos cofres da União.
A discussão aqui não é sobre a CPMF, ou sobre o falecido Primeiro Emprego. É sobre a venda indiscriminada de gatos por lebres, com o bichano vindo embalado no papel de presente daquela reforma indispensável e inadiável que -finalmente- vai colocar o dedo nas grandes chagas nacionais.
Viu a lebre? Procure pelo gato. Na reforma política o que há até o momento é uma tentativa de abolir o voto direto na eleição proporcional (deputado, vereador). Chamam de “lista fechada”.
Ela vem junto com a tentativa de impedir a oposição de se financiar na sociedade. Chamam de “financiamento exclusivamente público”. Significaria dar ao(s) partido(s) no poder uma vantagem financeira estratégica e definitiva.
Ambas as medidas aumentariam ainda mais a força de quem está no governo, em qualquer governo, especialmente depois que a Justiça instituiu a fidelidade partidária estrita.
A boa notícia deste início de ano é que Dilma Rousseff não está muito a fim de lançar seus exércitos no pântano congressual das reformas. Mas é adequado ficar de olho.
E não é difícil monitorar. A cada situação, ou proposta, basta procurar pelo detalhe que esconde a tentativa de retirar direitos e aumentar obrigações do cidadão comum.
A alardeada urgência de macrorreformas como a política e a tributária é uma verdade absoluta. Parece dispensar comprovação.
A tal verdade absoluta nasce de uma esperteza.
Num país repleto de passagens reprováveis na vida política, quem poderia ser contra uma reforma política, que o público poderia “comprar” como reforma benigna “da” política?
E num país de carga tributária sempre descrita como alta quem poderia se opor a uma reforma benigna do sistema de impostos? Desde que, naturalmente, o Estado continuasse a prover tudo que provê hoje. Ou mais.
Por motivos semelhantes, a maioria tenderá a inclinar-se para o “sim” se alguém propuser abstratamente uma reforma da segurança pública, ou da saúde, ou da educação. Ou do transporte público nas metrópoles. E por que não dos aeroportos? Ou das rodoviárias?
O reformismo genérico ganhou corpo entre nós depois da última Constituinte, por uma razão: segmentos da opinião pública preferiam uma Carta menos intervencionista, menos generosa no campo social. Daí o esforço ininterrupto para desidratá-la.
Na esfera trabalhista, por exemplo, o apelo permanente é por uma mudança que “facilite a contratação” de mão de obra. O próprio ex-presidente recém-saído andou no passado posando de bom moço em defesa da tese. Na passagem do primeiro para o segundo mandato falou longamente à The Economist sobre a ideia.
Mas sempre que a discussão desce para a vida prática do mundo do trabalho as medidas propostas visam a facilitar a demissão, e não a contratação. E ainda está para ser provado que demissões mais fáceis gerariam mais contratações.
No começo do governo do PT, em 2003, tentou-se implantar um tal de “Programa Primeiro Emprego”, prometido pelo candidato na campanha do ano anterior. A ideia era precisamente reduzir encargos para facilitar a absorção de mão de obra novata. O programa foi engavetado depois do fracasso completo.
Mas a geração de empregos nos últimos anos acabou sendo bastante satisfatória, e sem mexer em nenhum direito dos trabalhadores.
No debate recente sobre a prorrogação da Contribuição “Provisória” sobre Movimentação Financeira havia o argumento de que sem a CPMF os preços cairiam, por não mais carregarem as taxas cobradas ao longo de toda a cadeia produtiva. Alguém ouviu falar de algo que tenha ficado mais barato por causa do fim da CPMF?
Não aconteceu. Apenas cerca de R$ 50 bilhões anuais deixaram de ser recolhidos aos cofres da União.
A discussão aqui não é sobre a CPMF, ou sobre o falecido Primeiro Emprego. É sobre a venda indiscriminada de gatos por lebres, com o bichano vindo embalado no papel de presente daquela reforma indispensável e inadiável que -finalmente- vai colocar o dedo nas grandes chagas nacionais.
Viu a lebre? Procure pelo gato. Na reforma política o que há até o momento é uma tentativa de abolir o voto direto na eleição proporcional (deputado, vereador). Chamam de “lista fechada”.
Ela vem junto com a tentativa de impedir a oposição de se financiar na sociedade. Chamam de “financiamento exclusivamente público”. Significaria dar ao(s) partido(s) no poder uma vantagem financeira estratégica e definitiva.
Ambas as medidas aumentariam ainda mais a força de quem está no governo, em qualquer governo, especialmente depois que a Justiça instituiu a fidelidade partidária estrita.
A boa notícia deste início de ano é que Dilma Rousseff não está muito a fim de lançar seus exércitos no pântano congressual das reformas. Mas é adequado ficar de olho.
E não é difícil monitorar. A cada situação, ou proposta, basta procurar pelo detalhe que esconde a tentativa de retirar direitos e aumentar obrigações do cidadão comum.
terça-feira, 25 de janeiro de 2011
Sofia e seu ensaio sobre a solidão
Em Um Lugar Qualquer, La Coppola vasculha vidas sem sentido e motivação e mapeia o mundo do espetáculo
A.O. Scott, The New York Times – O Estado de S.Paulo
A abertura de Um Lugar Qualquer (Somewhere), o quarto longa de Sofia Coppola, que estreia no Brasil na sexta, um filme delicado, melancólico e ousado do ponto de vista formal, prepara o espectador para o que vem em seguida, de uma maneira sutil. Uma Ferrari preta circula por uma estrada deserta, entrando e saindo do campo coberto pela câmera, enquanto o ruído do motor também oscila entre um lamento distante e um profundo estrondo.
O carro dá mais voltas do que seria necessário, mas o que ela diz na realidade é: Prestem atenção e vejam o que acontece.
E ocorre algo maravilhoso: Um filme que não apela para as emoções do espectador e mostra uma história triste e tocante sobre a solidão de um pai e a devoção de uma filha. Mas assistir a Um Lugar Qualquer, rodadono Sul da Califórnia, é uma experiência que nos aproxima da leitura de um poema, o que constitui a evidência mais concreta da arte poderosa e sutil de Sofia.
Quem dirige o carro é Johnny Marco, um astro do cinema interpretado, entre a contenção e a catatonia, por Stephen Dorff. Johnny mora no Chateau Marmont, um hotel de Hollywood, o paraíso da fácil satisfação dos desejos ou o purgatório do desregramento das celebridades. Aparentemente, ele está terminando um filme e, ao mesmo tempo, trabalha na divulgação de outro, mas na maior parte do tempo fica perambulando, fumando, bebendo e fazendo sexo com mulheres que possivelmente estão no hotel para essa finalidade. A façanha de Sofia está em transmitir o vazio da existência de Johnny sem negar seu charme.
Somewhere é em parte uma comédia com um olhar de cumplicidade sobre o mundo do espetáculo, vida que Sofia conheceu em primeira mão. Mas ela ilumina desde o seu interior a bolha da fama e do privilégio, e mapeia seus contornos emocionais e existenciais com precisão desconcertante. Conhecemos então sua filha de 11 anos, Cleo, interpretada por Elle Fanning, que transmite ciúme, preocupação e, acima de tudo, a sabedoria e a inocência de uma pessoa que já assistiu ao mau comportamento dos adultos, em parte por ter um pai que nunca amadureceu.
Sofia expõe o seu domínio da arte, da sensibilidade e da descoberta de um vocabulário visual adequado à história e ao seu ambiente. Se prestarem atenção, Somewhere mostrará tudo isso. / TRADUÇÃO ANA CAPOVILLA
A.O. Scott, The New York Times – O Estado de S.Paulo
A abertura de Um Lugar Qualquer (Somewhere), o quarto longa de Sofia Coppola, que estreia no Brasil na sexta, um filme delicado, melancólico e ousado do ponto de vista formal, prepara o espectador para o que vem em seguida, de uma maneira sutil. Uma Ferrari preta circula por uma estrada deserta, entrando e saindo do campo coberto pela câmera, enquanto o ruído do motor também oscila entre um lamento distante e um profundo estrondo.
O carro dá mais voltas do que seria necessário, mas o que ela diz na realidade é: Prestem atenção e vejam o que acontece.
E ocorre algo maravilhoso: Um filme que não apela para as emoções do espectador e mostra uma história triste e tocante sobre a solidão de um pai e a devoção de uma filha. Mas assistir a Um Lugar Qualquer, rodadono Sul da Califórnia, é uma experiência que nos aproxima da leitura de um poema, o que constitui a evidência mais concreta da arte poderosa e sutil de Sofia.
Quem dirige o carro é Johnny Marco, um astro do cinema interpretado, entre a contenção e a catatonia, por Stephen Dorff. Johnny mora no Chateau Marmont, um hotel de Hollywood, o paraíso da fácil satisfação dos desejos ou o purgatório do desregramento das celebridades. Aparentemente, ele está terminando um filme e, ao mesmo tempo, trabalha na divulgação de outro, mas na maior parte do tempo fica perambulando, fumando, bebendo e fazendo sexo com mulheres que possivelmente estão no hotel para essa finalidade. A façanha de Sofia está em transmitir o vazio da existência de Johnny sem negar seu charme.
Somewhere é em parte uma comédia com um olhar de cumplicidade sobre o mundo do espetáculo, vida que Sofia conheceu em primeira mão. Mas ela ilumina desde o seu interior a bolha da fama e do privilégio, e mapeia seus contornos emocionais e existenciais com precisão desconcertante. Conhecemos então sua filha de 11 anos, Cleo, interpretada por Elle Fanning, que transmite ciúme, preocupação e, acima de tudo, a sabedoria e a inocência de uma pessoa que já assistiu ao mau comportamento dos adultos, em parte por ter um pai que nunca amadureceu.
Sofia expõe o seu domínio da arte, da sensibilidade e da descoberta de um vocabulário visual adequado à história e ao seu ambiente. Se prestarem atenção, Somewhere mostrará tudo isso. / TRADUÇÃO ANA CAPOVILLA
Estado neoliberal ou proprietário? (Singer e Giannotti e o legado de Lula)
Estado neoliberal ou proprietário? André Singer e José Arthur Giannotti debatem o legado de Lula
André Mascarenhas
Qual será a herança deixada pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva às próximas gerações e como os historiadores interpretarão a passagem do primeiro operário pela Presidência da República? A discussão, que deverá ocupar os cientistas políticos das mais variadas orientações nos próximos anos, é o tema do primeiro debate do blog do Instituto Moreira Salles, que foi ao ar ontem, e que reuniu o filosofo José Arthur Giannotti e o cientista político André Singer. O Radar Político teve acesso à íntegra do programa, que foi gravado em vídeo de alta definição. Assista aos melhores momentos.
Intermediado pelo jornalista Mário Sérgio Conti, o primeiro encontro teve como pano de fundo uma série de artigos sobre o lulismo escrita por Singer e que busca dar uma forma teórica ao que foram os últimos anos. Secretário de imprensa do primeiro governo Lula e ligado ao PT, o cientista político argumenta nesses textos que o aumento do salário mínimo, as políticas de distribuição de renda e ampliação do crédito deram cidadania a setores historicamente excluídos, provocando um realinhamento das forças políticas do primeiro para o segundo mandato de Lula. Segundo esse raciocínio, setores da classe média que tradicionalmente apoiavam o PT teriam abandonado o partido, enquanto as classes com menor poder aquisitivo, incluídas ao longo do governo Lula, passaram a apoiar eleitoralmente o projeto do presidente Lula. Singer ainda compara o fenômeno ao varguismo e vê, para os próximos anos, uma tendência de amadurecimento da classe média semelhante ao que ocorreu nos Estados Unidos após o New Deal.
“Meu problema é justamente se não vamos formar uma sociedade de classe média mixa. Isto é, que nós percamos certos padrões de excelência e de progresso e que nós chafurdemos no cotidiano”, opina Giannotti em sua primeira intervenção do debate, ao ser confrontado com as hipóteses de Singer.
Historicamente ligado a PSDB e amigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o filósofo descarta as comparações entre o lulismo e o varguismo e argumenta que a era Lula encerra um ciclo iniciado com a abertura da economia brasileira durante o governo do ex-presidente Fernando Collor de Mello e que culmina no amadurecimento do capitalismo no País nos últimos anos. Giannotti, no entanto, é pessimista quanto às perspectivas para o futuro, uma vez que, para ele, Lula demonstrou “uma enorme sintonia com a população”, mas, no “sistema político, teve um trabalho extremamente dissolvente, porque foi misturando todas as ideologias, todas as diferenças, no mesmo caldeirão”.
“O problema, agora, é como nós vamos rearticular o sistema político para que ele corresponda àquilo que está muito forte no Brasil. O capitalismo está muito forte”, aponta.
“Talvez eu esteja mais otimista com relação ao nosso sistema partidário”, rebate Singer, que embora critique uma tendência de “americanização” da política brasileira, argumenta que tanto o PSDB quanto o PT, na sua opinião os únicos partidos com chances reais de disputar a Presidência, encontram-se fortemente estruturados.
“O Brasil está vivendo um período de consolidação de dois grandes partidos, que são o PT e o PSDB. Com características meio americanizadas, mais do tipo de máquinas eleitorais, mas que não deixam de ser partidos estruturados”, afirma. “Acho que estamos consolidando um sistema partidário que funciona”, continua.
Leia, a seguir, os principais trechos do debate.
OPOSIÇÃO
Giannotti: “[A oposição] não foi capaz de ter um projeto próprio, aceitou o rótulo de neoliberal dado pelo PT e pelas forças dominantes. Não soube, inclusive, defender um tipo de regulamentação do Estado a partir das agências e aceitou, sem discussão, a ideia do Estado proprietário.”
BOLSA FAMÍLIA, CIDADANIA E CLIENTELISMO
Giannotti: “É uma cidadania inteiramente concedida. Não é uma cidadania conquistada. Numa democracia, o que importa é, basicamente, as pessoas conquistarem a cidadania”.
Singer: “Eu interpreto mais como um movimento no sentido de redução da pobreza e da desigualdade, que eu acho que guarda uma certa similaridade com o que aconteceu nos anos 1930 nos Estados Unidos.”
Singer: “Quando você diz paternalismo, acho que há uma avaliação de que é algo próximo do clientelismo, alguma coisa que não está na ordem da legitimidade democrática. (…) O clientelismo é caracterizado por uma relação de troca definida. Aqui você não tem relação de troca. O que foi feito foi uma política pública que é praticamente universal. O Bolsa Família se expandiu tanto que ele é hoje praticamente um direito de quem ganha aquém de um piso.”
BIPARTIDARISMO
Giannotti: “Eu vejo a enorme importância do PMDB, que no fundo vai dar o equilíbrio do governo Dilma, e o fortalecimento do PSB. (…) O PSB mostra que é possível abrir uma política de centro que não está necessariamente confinada [ao PT e ao PSDB]. (…) Esse jogo bipartidário, a meu ver, tende a se desfazer, na medida em que nós vamos ter vários atores brigando pelo poder.”
Singer: “Nada indica no sentido de que, na eleição de 2014, os contendores sejam outros que não PT e PSDB. Então, nesse sentido, eu acho que nós estamos realmente caminhando a uma bipolarização no que diz respeito a eleição presidencial.”
NEOLIBERALISMO vs ESTADO PROPRIETÁRIO
Singer: “[O neoliberalismo] é uma visão de mundo que começou a ser aplicada ao Brasil a partir do governo Collor, foi acentuada e teve mais sucesso ainda no governo Fernando Henrique, e eu acho que o governo Lula, no mínimo, brecou essa tendência. E, em alguns aspectos, tendeu a revertê-la.”
Giannotti: “Nós temos que pensar como é que vai ser esse controle do capital [pelo Estado]. Pela apropriação dos meios de produção – que no fundo ainda é um velho resquício do centralismo democrático – ou se nós vamos tentar criar um Estado interventor, mais democrata. Porque aí nós temos, com as agências, a possibilidade de aumentar a democracia desse controle. E termos, realmente, ao invés do Estado neoliberal, um Estado democrático ativo, sem o peso das corporações e, em particular, dos sindicatos se apropriando dos mecanismos de acumulação do capital. (…) Simplesmente dizer ‘neoliberal’ é evitar que a gente tenha uma discussão clara de qual Estado nós queremos.”
Singer: “Essas agências reguladoras são montadas para regular a sociedade e não para regular as empresas. (…) Elas são representantes das empresas junto ao Estado. (…) Acho que as privatizações da Vale e da telefonia foram um sinal dentro de um projeto global. (…) Mas há uma visão claramente que tem a ver com o neoliberalismo. (…) A visão neoliberal é de que o mercado é mais eficiente, inclusive para gerir saúde e educação.”
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
André Mascarenhas
Qual será a herança deixada pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva às próximas gerações e como os historiadores interpretarão a passagem do primeiro operário pela Presidência da República? A discussão, que deverá ocupar os cientistas políticos das mais variadas orientações nos próximos anos, é o tema do primeiro debate do blog do Instituto Moreira Salles, que foi ao ar ontem, e que reuniu o filosofo José Arthur Giannotti e o cientista político André Singer. O Radar Político teve acesso à íntegra do programa, que foi gravado em vídeo de alta definição. Assista aos melhores momentos.
Intermediado pelo jornalista Mário Sérgio Conti, o primeiro encontro teve como pano de fundo uma série de artigos sobre o lulismo escrita por Singer e que busca dar uma forma teórica ao que foram os últimos anos. Secretário de imprensa do primeiro governo Lula e ligado ao PT, o cientista político argumenta nesses textos que o aumento do salário mínimo, as políticas de distribuição de renda e ampliação do crédito deram cidadania a setores historicamente excluídos, provocando um realinhamento das forças políticas do primeiro para o segundo mandato de Lula. Segundo esse raciocínio, setores da classe média que tradicionalmente apoiavam o PT teriam abandonado o partido, enquanto as classes com menor poder aquisitivo, incluídas ao longo do governo Lula, passaram a apoiar eleitoralmente o projeto do presidente Lula. Singer ainda compara o fenômeno ao varguismo e vê, para os próximos anos, uma tendência de amadurecimento da classe média semelhante ao que ocorreu nos Estados Unidos após o New Deal.
“Meu problema é justamente se não vamos formar uma sociedade de classe média mixa. Isto é, que nós percamos certos padrões de excelência e de progresso e que nós chafurdemos no cotidiano”, opina Giannotti em sua primeira intervenção do debate, ao ser confrontado com as hipóteses de Singer.
Historicamente ligado a PSDB e amigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o filósofo descarta as comparações entre o lulismo e o varguismo e argumenta que a era Lula encerra um ciclo iniciado com a abertura da economia brasileira durante o governo do ex-presidente Fernando Collor de Mello e que culmina no amadurecimento do capitalismo no País nos últimos anos. Giannotti, no entanto, é pessimista quanto às perspectivas para o futuro, uma vez que, para ele, Lula demonstrou “uma enorme sintonia com a população”, mas, no “sistema político, teve um trabalho extremamente dissolvente, porque foi misturando todas as ideologias, todas as diferenças, no mesmo caldeirão”.
“O problema, agora, é como nós vamos rearticular o sistema político para que ele corresponda àquilo que está muito forte no Brasil. O capitalismo está muito forte”, aponta.
“Talvez eu esteja mais otimista com relação ao nosso sistema partidário”, rebate Singer, que embora critique uma tendência de “americanização” da política brasileira, argumenta que tanto o PSDB quanto o PT, na sua opinião os únicos partidos com chances reais de disputar a Presidência, encontram-se fortemente estruturados.
“O Brasil está vivendo um período de consolidação de dois grandes partidos, que são o PT e o PSDB. Com características meio americanizadas, mais do tipo de máquinas eleitorais, mas que não deixam de ser partidos estruturados”, afirma. “Acho que estamos consolidando um sistema partidário que funciona”, continua.
Leia, a seguir, os principais trechos do debate.
OPOSIÇÃO
Giannotti: “[A oposição] não foi capaz de ter um projeto próprio, aceitou o rótulo de neoliberal dado pelo PT e pelas forças dominantes. Não soube, inclusive, defender um tipo de regulamentação do Estado a partir das agências e aceitou, sem discussão, a ideia do Estado proprietário.”
BOLSA FAMÍLIA, CIDADANIA E CLIENTELISMO
Giannotti: “É uma cidadania inteiramente concedida. Não é uma cidadania conquistada. Numa democracia, o que importa é, basicamente, as pessoas conquistarem a cidadania”.
Singer: “Eu interpreto mais como um movimento no sentido de redução da pobreza e da desigualdade, que eu acho que guarda uma certa similaridade com o que aconteceu nos anos 1930 nos Estados Unidos.”
Singer: “Quando você diz paternalismo, acho que há uma avaliação de que é algo próximo do clientelismo, alguma coisa que não está na ordem da legitimidade democrática. (…) O clientelismo é caracterizado por uma relação de troca definida. Aqui você não tem relação de troca. O que foi feito foi uma política pública que é praticamente universal. O Bolsa Família se expandiu tanto que ele é hoje praticamente um direito de quem ganha aquém de um piso.”
BIPARTIDARISMO
Giannotti: “Eu vejo a enorme importância do PMDB, que no fundo vai dar o equilíbrio do governo Dilma, e o fortalecimento do PSB. (…) O PSB mostra que é possível abrir uma política de centro que não está necessariamente confinada [ao PT e ao PSDB]. (…) Esse jogo bipartidário, a meu ver, tende a se desfazer, na medida em que nós vamos ter vários atores brigando pelo poder.”
Singer: “Nada indica no sentido de que, na eleição de 2014, os contendores sejam outros que não PT e PSDB. Então, nesse sentido, eu acho que nós estamos realmente caminhando a uma bipolarização no que diz respeito a eleição presidencial.”
NEOLIBERALISMO vs ESTADO PROPRIETÁRIO
Singer: “[O neoliberalismo] é uma visão de mundo que começou a ser aplicada ao Brasil a partir do governo Collor, foi acentuada e teve mais sucesso ainda no governo Fernando Henrique, e eu acho que o governo Lula, no mínimo, brecou essa tendência. E, em alguns aspectos, tendeu a revertê-la.”
Giannotti: “Nós temos que pensar como é que vai ser esse controle do capital [pelo Estado]. Pela apropriação dos meios de produção – que no fundo ainda é um velho resquício do centralismo democrático – ou se nós vamos tentar criar um Estado interventor, mais democrata. Porque aí nós temos, com as agências, a possibilidade de aumentar a democracia desse controle. E termos, realmente, ao invés do Estado neoliberal, um Estado democrático ativo, sem o peso das corporações e, em particular, dos sindicatos se apropriando dos mecanismos de acumulação do capital. (…) Simplesmente dizer ‘neoliberal’ é evitar que a gente tenha uma discussão clara de qual Estado nós queremos.”
Singer: “Essas agências reguladoras são montadas para regular a sociedade e não para regular as empresas. (…) Elas são representantes das empresas junto ao Estado. (…) Acho que as privatizações da Vale e da telefonia foram um sinal dentro de um projeto global. (…) Mas há uma visão claramente que tem a ver com o neoliberalismo. (…) A visão neoliberal é de que o mercado é mais eficiente, inclusive para gerir saúde e educação.”
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
segunda-feira, 24 de janeiro de 2011
'É preciso esclarecer Dilma sobre a questão das drogas'
FH diz que ficou surpreso com queda de Abramovay e teme que país assuma posição reacionária sobre o tema
Deborah Berlinck
GENEBRA. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que lança hoje em Genebra, com outras personalidades, uma comissão global em busca de políticas alternativas de combate às drogas, se disse preocupado com o rumo do Brasil após a saída de Pedro Abramovay, que defendeu o fim da prisão para pequenos traficantes, da Secretaria Nacional de Política sobre Drogas. O ex-presidente, que teme que o país se volte à repressão em vez de combater o consumo, revela suas dúvidas em relação à liberalização da maconha, e faz um mea-culpa de seu governo.
Não era novidade que Pedro Abramovay defendia penas alternativas para pequeno traficante. A demissão dele foi surpresa para o senhor?
FERNANDO HENRIQUE: Foi, pois pensei que havia um pré-consenso no governo. Quando vi que o governo atual levou a Senad do Gabinete de Segurança Institucional para o Ministério da Justiça, imaginei que teria uma integração. Quem criou a Senad fui eu, para dar uma resposta à questão das drogas através da prevenção, deixando para a Polícia Federal a repressão. Existia uma resistência no Ministério da Justiça contra a Senad.
E com a saída do Pedro Abramovay?
FH: O lado da repressão pode ficar mais forte.
Não há o risco de transformar o pequeno traficante num instrumento do tráfico organizado?
FH: Ele já é. Não acredito que o pequeno traficante possa não ser penalizado. A questão é: que penalização? Se você pega um jovem de 15 anos que é avião e põe na cadeia, ele vai sair mais treinado em bandidagem. Seria bom penas alternativas.
E o que aconteceu no Rio?
FH: O governo tem que fazer o que está sendo feito, combater o tráfico e não permitir que ele tome conta de áreas territoriais. Mas é preciso uma ação social contínua. O que acontece nesse momento? Você não está acabando com o tráfico, está levando para outros lugares. Você está dispersando o tráfico. Sai do Rio e vai para o Espírito Santo, para Bahia... Não estou criticando o que foi feito. É positivo. O Sérgio Cabral, ao mesmo tempo, está propondo a liberalização da maconha, pois sabe que o problema é imenso e que não basta ocupar a região.
O que o Brasil deve fazer sobre o tráfico internacional?
FH: A raiz do mal não é a produção, é o consumo. O que tem que haver é uma política de redução do consumo.
A liberação da maconha também não é solução?
FH: Não. Tem que haver regulação. Tem que descriminalizar, quer dizer, não passa a ser crime, pode até em certos casos legalizar, desde que regule.
O que deu errado na política do Brasil? Por que o crack aumentou tanto?
FH: Porque fizemos, todos nós, muito pouco na prevenção.
O senhor faz sua mea-culpa?
FH: Lógico. Fizemos muito pouco na prevenção, ninguém imaginou que (a droga) fosse tomar essa proporção tão grande. Outra coisa muito perigosa, e por isso que pessoas defendem a legalização da maconha: o traficante que vende maconha é o mesmo que vai levar o jovem a provar outras drogas. Talvez, se você regulasse o uso da maconha ao invés de proibí-la, talvez tirasse a pessoa da mão do traficante e diminuísse o risco de ela ir para o crack.
O Ministério da Justiça havia preparado um projeto para acabar com a prisão de traficantes de baixa periculosidade. Por que a reviravolta?
FH: Paulo Teixeira ia representar este projeto. O ministro Tarso Genro estava nesta mesma linha. Imagino que a presidente tenha tomado esta posição. É preciso esclarecê-la sobre a questão das drogas. É importante que o Brasil não siga um caminho reacionário. Não é conservador, é errado. Não pode ser dogmático e dizer: reprimir resolve. Não resolve. Liberar resolve? Também não.
Qual a ideia desta reunião em Genebra ?
FH: Fizemos uma comissão latino-americana sobre drogas. Ela teve impacto, porque a situação na América Latina é muito dramática, mas mudou. Mesmo esta posição que estava sendo tomada pelo Brasil é boa. E no Brasil já há descriminalização da droga: não é crime ser usuário.
FONTE: O GLOBO
Deborah Berlinck
GENEBRA. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que lança hoje em Genebra, com outras personalidades, uma comissão global em busca de políticas alternativas de combate às drogas, se disse preocupado com o rumo do Brasil após a saída de Pedro Abramovay, que defendeu o fim da prisão para pequenos traficantes, da Secretaria Nacional de Política sobre Drogas. O ex-presidente, que teme que o país se volte à repressão em vez de combater o consumo, revela suas dúvidas em relação à liberalização da maconha, e faz um mea-culpa de seu governo.
Não era novidade que Pedro Abramovay defendia penas alternativas para pequeno traficante. A demissão dele foi surpresa para o senhor?
FERNANDO HENRIQUE: Foi, pois pensei que havia um pré-consenso no governo. Quando vi que o governo atual levou a Senad do Gabinete de Segurança Institucional para o Ministério da Justiça, imaginei que teria uma integração. Quem criou a Senad fui eu, para dar uma resposta à questão das drogas através da prevenção, deixando para a Polícia Federal a repressão. Existia uma resistência no Ministério da Justiça contra a Senad.
E com a saída do Pedro Abramovay?
FH: O lado da repressão pode ficar mais forte.
Não há o risco de transformar o pequeno traficante num instrumento do tráfico organizado?
FH: Ele já é. Não acredito que o pequeno traficante possa não ser penalizado. A questão é: que penalização? Se você pega um jovem de 15 anos que é avião e põe na cadeia, ele vai sair mais treinado em bandidagem. Seria bom penas alternativas.
E o que aconteceu no Rio?
FH: O governo tem que fazer o que está sendo feito, combater o tráfico e não permitir que ele tome conta de áreas territoriais. Mas é preciso uma ação social contínua. O que acontece nesse momento? Você não está acabando com o tráfico, está levando para outros lugares. Você está dispersando o tráfico. Sai do Rio e vai para o Espírito Santo, para Bahia... Não estou criticando o que foi feito. É positivo. O Sérgio Cabral, ao mesmo tempo, está propondo a liberalização da maconha, pois sabe que o problema é imenso e que não basta ocupar a região.
O que o Brasil deve fazer sobre o tráfico internacional?
FH: A raiz do mal não é a produção, é o consumo. O que tem que haver é uma política de redução do consumo.
A liberação da maconha também não é solução?
FH: Não. Tem que haver regulação. Tem que descriminalizar, quer dizer, não passa a ser crime, pode até em certos casos legalizar, desde que regule.
O que deu errado na política do Brasil? Por que o crack aumentou tanto?
FH: Porque fizemos, todos nós, muito pouco na prevenção.
O senhor faz sua mea-culpa?
FH: Lógico. Fizemos muito pouco na prevenção, ninguém imaginou que (a droga) fosse tomar essa proporção tão grande. Outra coisa muito perigosa, e por isso que pessoas defendem a legalização da maconha: o traficante que vende maconha é o mesmo que vai levar o jovem a provar outras drogas. Talvez, se você regulasse o uso da maconha ao invés de proibí-la, talvez tirasse a pessoa da mão do traficante e diminuísse o risco de ela ir para o crack.
O Ministério da Justiça havia preparado um projeto para acabar com a prisão de traficantes de baixa periculosidade. Por que a reviravolta?
FH: Paulo Teixeira ia representar este projeto. O ministro Tarso Genro estava nesta mesma linha. Imagino que a presidente tenha tomado esta posição. É preciso esclarecê-la sobre a questão das drogas. É importante que o Brasil não siga um caminho reacionário. Não é conservador, é errado. Não pode ser dogmático e dizer: reprimir resolve. Não resolve. Liberar resolve? Também não.
Qual a ideia desta reunião em Genebra ?
FH: Fizemos uma comissão latino-americana sobre drogas. Ela teve impacto, porque a situação na América Latina é muito dramática, mas mudou. Mesmo esta posição que estava sendo tomada pelo Brasil é boa. E no Brasil já há descriminalização da droga: não é crime ser usuário.
FONTE: O GLOBO
A revolta dos Prefeitos (Rudá Ricci)
A situação ficou nítida quando da crise de queda do repasse do FPM e arrecadação que afetou os municípios brasileiros. Com as chuvas do início deste ano, o problema escancarou. O fato é que o município perde espaço como ente federativo autônomo. A execução orçamentária fortemente centralizada pratica por FHC e Lula, e que deve acelerar com a entrada de recursos da exploração Pré-Sal, faz dos prefeitos meros executores de programas federais. Trezentas prefeituras do país ainda não conseguiram pagar o 13º salário para seus funcionários. A maioria se concentra em Minas Gerais e nordeste, onde estão as pequenas prefeituras, quase sempre incrustadas em áreas rurais e que não conseguem produzir renda própria. A substituição do IPTU para o ISS como principal fonte autônoma de arrecadação das prefeituras sugere a precariedade de municípios que têm na agricultura sua principal fonte de produção de riquezas.
O caso da crise aberta com as chuvas é um dos motes. No ano passado, foram investidos em Minas Gerais R$ 85,9 milhões em ações pós-chuva, oito vezes mais do que em planos de prevenção a tragédias (R$ 10,3 milhões). Em Inhapim, questões burocráticas atrasaram a liberação de R$ 240 mil para a reforma de oito pontes e reconstrução de outras seis. A cidade, de 24 mil habitantes, foi inundada pelo rio Caratinga no dia 26 de dezembro. Cerca de cem famílias tiveram que deixar suas casas e buscar ajuda com parentes e amigos. Cerca de 1.100 imóveis precisam de reparos. Em Itanhomi, a 60 km de Governador Valadares, os prejuízos com as chuvas chegam a R$ 3 milhões. No fim do ano passado, o município decretou situação de emergência. Foram quatro fortes temporais, um em novembro e outros três em dezembro, que deixaram 40 pessoas desalojadas e 30 desabrigadas. Mais de 400 km de estradas na zona rural e rodovias de acesso ao município precisam ser recuperados.
O caso da queda de repasse do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) é o segundo mote da revolta dos prefeitos. No início do ano, os municípios tiveram uma queda de 2,5 bilhões de reais no repasse do FPM. Segundo a Confederação Nacional de Municípios, o acumulado do FPM entre 2003 e 2010 é o seguinte (de janeiro a outubro, com correção pelo IPCA, em bilhões de reais):
2003: 25,9
2004: 26,8
2005: 30,3
2006: 32,9
2007: 36,2
2008: 42,7
2009: 40,1
2010: 39,2
Como se percebe, a partir de 2009, os repasses começaram a cair. Prefeituras de vários Estados brasileiros chegaram a fechar suas portas em protesto.
No primeiro repasse do FPM deste ano, realizado em 10 de janeiro, o governo federal injetou 294 milhões de reais nos municípios (10% maior que o repasse de 10 de dezembro de 2010). O aumento teve relação com aumento de vendas das festas de final de ano. Embora os prefeitos sejam céticos, receberam a notícia que neste ano o FPM será majorado em 29,66% (em relação a 2010), significando um repasse da ordem de 7 bilhões de reais. Em Minas Gerais, o governo estadual saiu na frente e renovou os critérios do chamado ICMS Solidário. Seis novas regras previstas na Lei 18.030/2009 vai engordar os cofres de 677 municípios mineiros. Outros 176 municípios perderão recursos (com Betim liderando a fila, num processo de compensação. As principais mudanças foram:
1) Repassa arrecadação de municípios mais ricos para beneficiar os mais pobres;
2) 4,14% destinados para municípios com baixos índices de ICMS per capita do Estado;
3) 0,25% destinados para áreas alagadas por hidrelétricas;
4) 0,10% para municípios com território penitenciário;
5) 0,10% para municípios com Conselho de Esportes;
6) Os municípios que tratarem lixo e esgoto terão outro aumento de repasse.
Na outra ponta, municípios mineradores perderam: os repasses caem de 0,11% para 0,01%.
A revolta chegou a tal ponto que prefeitos petistas do sul de Minas Gerais anunciaram a criação de um movimento municipalista. Minas Gerais é o Estado onde o partido da Presidente da República conquistou mais prefeituras: 107. E justamente aqui o calo dos municípios doeu mais. O que demonstra que não se trata de um problema privilégios partidários, mas de concepção de pacto federativo.
O que parece ser cada vez mais claro é que os dirigentes do Executivo Federal desconfiam dos municípios como indutores do desenvolvimento. A estratégia de fomento e orientação de investimentos públicos deveria, nesta formulação, ser tarefa da União. Daí a concentração orçamentária que já atinge 75% do total do orçamento público. O mesmo ocorrerá com o Fundo Social do Pré-Sal, que movimentará 15 bilhões de reais por ano (ou o mesmo que um PAC anual) e que será totalmente coordenado pelo Comitê Gestor que envolve apenas órgãos federais.
Os prefeitos sentem na pele que se transformam em executores de programas federais. Em época de eleição são procurados por candidatos à governador, presidente, deputados e senadores. Porque os prefeitos é que efetivamente mobilizam votos (com raras exceções). Passadas as eleições, voltam à condição de meros gestores de programas estaduais e, principalmente, federais. O que destrói a autonomia dos municípios como entes federativos autônomos.
Marta Arretche vem se dedicando aos estudos da relação entre descentralização e federalismo (cf. Marta ARRETCHE. Estado federativo e políticas sociais: determinantes da descentralização. Rio de Janeiro/São Paulo, Editora Revan/FAPESP, 2000. 304 páginas). O que seus estudos revelaram que os anos 1990 diminuíram o ímpeto do processo de descentralização de políticas públicas iniciado na década anterior. E, mais: que este processo nunca foi linear e muitas vezes foi inteligível. A autora se surpreende ao perceber que São Paulo possui níveis de descentralização mais baixos que o Ceará ou ao se debater com o exitoso processo de descentralização de políticas educacionais confrontados com o fracasso da descentralização dos programas habitacionais. Ao tentar analisar tais incongruências, Arretche descobre a chave de explicação do problema por que passam os municípios brasileiros: nossa organização federativa, marcado por barganhas. Como municípios (e mesmo Estados) possuem desigualdades estruturais e administrativas profundas, a descentralização exige incentivos federais e estaduais. E identifica nos governos estaduais o papel mais destacado para aumento do poder de ação dos municípios. A autora resume:
"[...] a capacidade fiscal e administrativa das administrações locais [estados ou municípios] influi no processo de reforma; mas, estas variáveis não são determinantes em si mesmas. Seu peso varia de acordo com os requisitos postos pelos atributos institucionais das políticas que se pretende descentralizar, vale dizer, dos custos operacionais implicados na sua gestão, das dificuldades à transferência de atribuições derivadas do legado das políticas prévias e das prerrogativas legais estabelecidas constitucionalmente. [...] No entanto, estratégias de indução eficientemente desenhadas e implementadas por parte dos níveis de governo interessados nas reformas podem compensar obstáculos à descentralização derivados dos atributos estruturais de estados e municípios ou dos atributos institucionais das políticas." (pp. 73-74).
Ora, o problema não é partidário, portanto, mas de estrutura do pacto federativo. O fato é que o processo de descentralização de gestão de programas governamentais iniciado em 1980 gerou uma nova barganha política. Barganha iniciada pelos entes federativos superiores: o município aceita a descentralização e recebe algum incentivo, mas apenas para a execução. Não formula, não avalia autonomamente e, ainda, é obrigado (ainda que implicitamente) a fazer campanha eleitoral para seu “padrinho”. No limite, se cala. E, ao se calar, o prefeito perde autonomia política. Nem Raimundo Faoro imaginava que o Brasil democrática criaria algo tão engenhoso para reproduzir o modelo da Coroa Portuguesa.
Sociólogo,Doutor em Ciências Sociais, Diretor Geral do Instituto Cultiva (www.tvcultiva.com.br) e membro do Fórum Brasil do Orçamento. Autor de “Lulismo: da Era dos Movimentos Sociais à Ascensão da Nova Classe Média Brasileira” (Editora Contraponto). Blog: rudaricci.blogspot.com. E-mail: ruda@inet.com.br
O caso da crise aberta com as chuvas é um dos motes. No ano passado, foram investidos em Minas Gerais R$ 85,9 milhões em ações pós-chuva, oito vezes mais do que em planos de prevenção a tragédias (R$ 10,3 milhões). Em Inhapim, questões burocráticas atrasaram a liberação de R$ 240 mil para a reforma de oito pontes e reconstrução de outras seis. A cidade, de 24 mil habitantes, foi inundada pelo rio Caratinga no dia 26 de dezembro. Cerca de cem famílias tiveram que deixar suas casas e buscar ajuda com parentes e amigos. Cerca de 1.100 imóveis precisam de reparos. Em Itanhomi, a 60 km de Governador Valadares, os prejuízos com as chuvas chegam a R$ 3 milhões. No fim do ano passado, o município decretou situação de emergência. Foram quatro fortes temporais, um em novembro e outros três em dezembro, que deixaram 40 pessoas desalojadas e 30 desabrigadas. Mais de 400 km de estradas na zona rural e rodovias de acesso ao município precisam ser recuperados.
O caso da queda de repasse do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) é o segundo mote da revolta dos prefeitos. No início do ano, os municípios tiveram uma queda de 2,5 bilhões de reais no repasse do FPM. Segundo a Confederação Nacional de Municípios, o acumulado do FPM entre 2003 e 2010 é o seguinte (de janeiro a outubro, com correção pelo IPCA, em bilhões de reais):
2003: 25,9
2004: 26,8
2005: 30,3
2006: 32,9
2007: 36,2
2008: 42,7
2009: 40,1
2010: 39,2
Como se percebe, a partir de 2009, os repasses começaram a cair. Prefeituras de vários Estados brasileiros chegaram a fechar suas portas em protesto.
No primeiro repasse do FPM deste ano, realizado em 10 de janeiro, o governo federal injetou 294 milhões de reais nos municípios (10% maior que o repasse de 10 de dezembro de 2010). O aumento teve relação com aumento de vendas das festas de final de ano. Embora os prefeitos sejam céticos, receberam a notícia que neste ano o FPM será majorado em 29,66% (em relação a 2010), significando um repasse da ordem de 7 bilhões de reais. Em Minas Gerais, o governo estadual saiu na frente e renovou os critérios do chamado ICMS Solidário. Seis novas regras previstas na Lei 18.030/2009 vai engordar os cofres de 677 municípios mineiros. Outros 176 municípios perderão recursos (com Betim liderando a fila, num processo de compensação. As principais mudanças foram:
1) Repassa arrecadação de municípios mais ricos para beneficiar os mais pobres;
2) 4,14% destinados para municípios com baixos índices de ICMS per capita do Estado;
3) 0,25% destinados para áreas alagadas por hidrelétricas;
4) 0,10% para municípios com território penitenciário;
5) 0,10% para municípios com Conselho de Esportes;
6) Os municípios que tratarem lixo e esgoto terão outro aumento de repasse.
Na outra ponta, municípios mineradores perderam: os repasses caem de 0,11% para 0,01%.
A revolta chegou a tal ponto que prefeitos petistas do sul de Minas Gerais anunciaram a criação de um movimento municipalista. Minas Gerais é o Estado onde o partido da Presidente da República conquistou mais prefeituras: 107. E justamente aqui o calo dos municípios doeu mais. O que demonstra que não se trata de um problema privilégios partidários, mas de concepção de pacto federativo.
O que parece ser cada vez mais claro é que os dirigentes do Executivo Federal desconfiam dos municípios como indutores do desenvolvimento. A estratégia de fomento e orientação de investimentos públicos deveria, nesta formulação, ser tarefa da União. Daí a concentração orçamentária que já atinge 75% do total do orçamento público. O mesmo ocorrerá com o Fundo Social do Pré-Sal, que movimentará 15 bilhões de reais por ano (ou o mesmo que um PAC anual) e que será totalmente coordenado pelo Comitê Gestor que envolve apenas órgãos federais.
Os prefeitos sentem na pele que se transformam em executores de programas federais. Em época de eleição são procurados por candidatos à governador, presidente, deputados e senadores. Porque os prefeitos é que efetivamente mobilizam votos (com raras exceções). Passadas as eleições, voltam à condição de meros gestores de programas estaduais e, principalmente, federais. O que destrói a autonomia dos municípios como entes federativos autônomos.
Marta Arretche vem se dedicando aos estudos da relação entre descentralização e federalismo (cf. Marta ARRETCHE. Estado federativo e políticas sociais: determinantes da descentralização. Rio de Janeiro/São Paulo, Editora Revan/FAPESP, 2000. 304 páginas). O que seus estudos revelaram que os anos 1990 diminuíram o ímpeto do processo de descentralização de políticas públicas iniciado na década anterior. E, mais: que este processo nunca foi linear e muitas vezes foi inteligível. A autora se surpreende ao perceber que São Paulo possui níveis de descentralização mais baixos que o Ceará ou ao se debater com o exitoso processo de descentralização de políticas educacionais confrontados com o fracasso da descentralização dos programas habitacionais. Ao tentar analisar tais incongruências, Arretche descobre a chave de explicação do problema por que passam os municípios brasileiros: nossa organização federativa, marcado por barganhas. Como municípios (e mesmo Estados) possuem desigualdades estruturais e administrativas profundas, a descentralização exige incentivos federais e estaduais. E identifica nos governos estaduais o papel mais destacado para aumento do poder de ação dos municípios. A autora resume:
"[...] a capacidade fiscal e administrativa das administrações locais [estados ou municípios] influi no processo de reforma; mas, estas variáveis não são determinantes em si mesmas. Seu peso varia de acordo com os requisitos postos pelos atributos institucionais das políticas que se pretende descentralizar, vale dizer, dos custos operacionais implicados na sua gestão, das dificuldades à transferência de atribuições derivadas do legado das políticas prévias e das prerrogativas legais estabelecidas constitucionalmente. [...] No entanto, estratégias de indução eficientemente desenhadas e implementadas por parte dos níveis de governo interessados nas reformas podem compensar obstáculos à descentralização derivados dos atributos estruturais de estados e municípios ou dos atributos institucionais das políticas." (pp. 73-74).
Ora, o problema não é partidário, portanto, mas de estrutura do pacto federativo. O fato é que o processo de descentralização de gestão de programas governamentais iniciado em 1980 gerou uma nova barganha política. Barganha iniciada pelos entes federativos superiores: o município aceita a descentralização e recebe algum incentivo, mas apenas para a execução. Não formula, não avalia autonomamente e, ainda, é obrigado (ainda que implicitamente) a fazer campanha eleitoral para seu “padrinho”. No limite, se cala. E, ao se calar, o prefeito perde autonomia política. Nem Raimundo Faoro imaginava que o Brasil democrática criaria algo tão engenhoso para reproduzir o modelo da Coroa Portuguesa.
Sociólogo,Doutor em Ciências Sociais, Diretor Geral do Instituto Cultiva (www.tvcultiva.com.br) e membro do Fórum Brasil do Orçamento. Autor de “Lulismo: da Era dos Movimentos Sociais à Ascensão da Nova Classe Média Brasileira” (Editora Contraponto). Blog: rudaricci.blogspot.com. E-mail: ruda@inet.com.br
Dilma e os sindicatos (Luiz Werneck Vianna)
Logo em seus primeiros dias de governo, nos idos de 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva convocou as principais lideranças sindicais do país para dizer-lhes que, com ele, se iniciava a experiência inédita de um governo dos trabalhadores. Tamanha responsabilidade, acrescentava, era para ser compartilhada pelos sindicatos que, em suas movimentações classistas deveriam considerar o estado de coisas reinante na economia e na correlação de forças políticas do país. Em suma, o cálculo político não poderia se ausentar de suas decisões, uma vez que havia um governo de novo tipo a ser defendido.
Os dois primeiros anos do governo Lula foram especialmente difíceis para o conjunto de forças que o apoiavam, em particular os sindicatos, à medida que significaram uma evidente continuidade com os rumos macroeconômicos da administração que sucedia, denunciada como nociva aos trabalhadores pelo PT, quando exercia o papel de principal partido da oposição. Esses foram tempos de silêncio do mundo sindical, embora tenham assistido a uma expressiva ocupação por parte de sindicalistas de posições no interior da máquina estatal, algumas delas de importância estratégica. De fato, por fas ou por nefas, a política econômica do ciclo PSDB/PT não foi contestada pelo sindicalismo nos oito anos do governo Lula.
Um indicador dessa espécie de concordata implícita entre governo e sindicatos está na radical queda das ações de contestação junto ao Judiciário de medidas legislativas de iniciativa governamental - de passagem, registre-se que esse foi um tempo em que se produziram várias leis favoráveis aos trabalhadores - para não se mencionar a baixa incidência de greves durante o período.
Havia, contudo, uma pedra no caminho: o PT, desde suas origens no movimento sindical do ABC, mantinha uma posição doutrinária adversa à legislação da era Vargas, que o levava a questionar durante dois dos seus pilares: o sindicato único por categoria e o chamado imposto sindical, que, em sua avaliação, obstaculizavam o caminho para a conquista de um sindicalismo efetivamente livre de vínculos com o Estado e representativo da vontade do seu corpo associativo. Com efeito, em 2004, fiel a essa política, o governo convoca um amplo Fórum Sindical com a proposta de converter seu programa sindical em realidade.
Atual contencioso é uma questão política
Tal proposta, diante de uma cerrada oposição de outras correntes do sindicalismo, foi retirada, e, mais que isso, a antiga formatação da CLT se faz ampliar com a incorporação a ela das centrais sindicais, que, além de legitimadas pela legislação, passam a receber uma parcela do que for arrecadado pelo imposto sindical. Os vértices sindicais ganham, assim, maior autonomia operacional e recursos próprios para a sustentação de suas atividades, reforçados por sua inscrição no interior do governo e das agências estatais. Doutrinariamente unido em torno do modelo da CLT, de certo modo o sindicalismo é governo nos mandatos de Lula, e o será em escala inédita na nossa história republicana.
Daí que o atual contencioso entre as centrais sindicais e o governo Dilma extravasa o campo prosaico das demandas salariais e se torna uma questão caracteristicamente política, uma vez que ameaça afetar o seu programa de governo a partir da sua própria estrutura interna. Substantivamente, põe sob risco sua orientação de promover uma gestão sob a bandeira da racionalização da administração e da economia em nome de suas políticas sociais e de expansão das atividades produtivas. De outra parte, a conjuntura sindical se encontra informada por variáveis favoráveis ao mundo do trabalho que repercutem positivamente em sua capacidade de organização, ao contrário do que ocorria, poucos anos atrás, quando conspiravam contra ele tanto a reestruturação do sistema produtivo quanto o baixo crescimento da economia.
Oportuna e bem documentada matéria do Valor (19/1/2011) demonstra que, nos últimos cinco anos, houve um aumento expressivo da massa salarial, registrando-se um salto entre 2009 e 2010 da ordem de 7,6%. A mesma matéria, analisando os reajustes salariais de quatro estratégicas categorias de trabalhadores (bancários, químicos, metalúrgicos de montadoras e petroleiros), no curso dos anos de 2000 a 2010, exibe dados em que se constatam ganhos salariais bem acima da inflação, em particular, em duas categorias, tradicionalmente bem organizadas.
Ainda tateantes, se esboçam, a partir da controvérsia sobre o valor do salário mínimo, novas relações entre governo e sindicatos que, no caso, tendem a evocar os anos de governo João Goulart, quando as centrais pretendiam exercer poder de veto quanto a iniciativas governamentais que não contassem com sua prévia aprovação. Dilma estaria contrariando o estilo de Lula, que não as levava a público antes de torná-las minimamente consensuais entre suas forças principais de sustentação. No caso, para além da questão salarial, as centrais parecem que se insurgem - talvez principalmente - contra o fechamento dos canais de negociação que Lula mantinha com elas (ver "Boletim Eletrônico da Agência Sindical" de 20/1/2011).
O tema recente da elevação da taxa de juros por decisão do Banco Central sinaliza para a mesma direção. Sobre esse tema sensível, nota dada a público pela Força Sindical não foge das palavras fortes: "É incrível, mas parece que o governo que inicia quer implantar a agenda econômica que foi derrotada nas últimas eleições por privilegiar o capital especulativo" (o mesmo Boletim, 21/1/2011). O argumento, como se sabe, é puramente retórico: o candidato Serra sempre se mostrou inequivocamente contrário à política de juros do Banco Central.
As centrais, na verdade, estão é declarando em alto e bom som que ou são reinstaladas no governo pela presidente Dilma, como Lula parecia anuir ou lhes fazia imaginar, ou vão fazer política no Parlamento, nas ruas e nos sindicatos. Como disse um sindicalista, em frase pouco enigmática, "que recomeçou, recomeçou".
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional.
Fonte: Valor Econômico.
Os dois primeiros anos do governo Lula foram especialmente difíceis para o conjunto de forças que o apoiavam, em particular os sindicatos, à medida que significaram uma evidente continuidade com os rumos macroeconômicos da administração que sucedia, denunciada como nociva aos trabalhadores pelo PT, quando exercia o papel de principal partido da oposição. Esses foram tempos de silêncio do mundo sindical, embora tenham assistido a uma expressiva ocupação por parte de sindicalistas de posições no interior da máquina estatal, algumas delas de importância estratégica. De fato, por fas ou por nefas, a política econômica do ciclo PSDB/PT não foi contestada pelo sindicalismo nos oito anos do governo Lula.
Um indicador dessa espécie de concordata implícita entre governo e sindicatos está na radical queda das ações de contestação junto ao Judiciário de medidas legislativas de iniciativa governamental - de passagem, registre-se que esse foi um tempo em que se produziram várias leis favoráveis aos trabalhadores - para não se mencionar a baixa incidência de greves durante o período.
Havia, contudo, uma pedra no caminho: o PT, desde suas origens no movimento sindical do ABC, mantinha uma posição doutrinária adversa à legislação da era Vargas, que o levava a questionar durante dois dos seus pilares: o sindicato único por categoria e o chamado imposto sindical, que, em sua avaliação, obstaculizavam o caminho para a conquista de um sindicalismo efetivamente livre de vínculos com o Estado e representativo da vontade do seu corpo associativo. Com efeito, em 2004, fiel a essa política, o governo convoca um amplo Fórum Sindical com a proposta de converter seu programa sindical em realidade.
Atual contencioso é uma questão política
Tal proposta, diante de uma cerrada oposição de outras correntes do sindicalismo, foi retirada, e, mais que isso, a antiga formatação da CLT se faz ampliar com a incorporação a ela das centrais sindicais, que, além de legitimadas pela legislação, passam a receber uma parcela do que for arrecadado pelo imposto sindical. Os vértices sindicais ganham, assim, maior autonomia operacional e recursos próprios para a sustentação de suas atividades, reforçados por sua inscrição no interior do governo e das agências estatais. Doutrinariamente unido em torno do modelo da CLT, de certo modo o sindicalismo é governo nos mandatos de Lula, e o será em escala inédita na nossa história republicana.
Daí que o atual contencioso entre as centrais sindicais e o governo Dilma extravasa o campo prosaico das demandas salariais e se torna uma questão caracteristicamente política, uma vez que ameaça afetar o seu programa de governo a partir da sua própria estrutura interna. Substantivamente, põe sob risco sua orientação de promover uma gestão sob a bandeira da racionalização da administração e da economia em nome de suas políticas sociais e de expansão das atividades produtivas. De outra parte, a conjuntura sindical se encontra informada por variáveis favoráveis ao mundo do trabalho que repercutem positivamente em sua capacidade de organização, ao contrário do que ocorria, poucos anos atrás, quando conspiravam contra ele tanto a reestruturação do sistema produtivo quanto o baixo crescimento da economia.
Oportuna e bem documentada matéria do Valor (19/1/2011) demonstra que, nos últimos cinco anos, houve um aumento expressivo da massa salarial, registrando-se um salto entre 2009 e 2010 da ordem de 7,6%. A mesma matéria, analisando os reajustes salariais de quatro estratégicas categorias de trabalhadores (bancários, químicos, metalúrgicos de montadoras e petroleiros), no curso dos anos de 2000 a 2010, exibe dados em que se constatam ganhos salariais bem acima da inflação, em particular, em duas categorias, tradicionalmente bem organizadas.
Ainda tateantes, se esboçam, a partir da controvérsia sobre o valor do salário mínimo, novas relações entre governo e sindicatos que, no caso, tendem a evocar os anos de governo João Goulart, quando as centrais pretendiam exercer poder de veto quanto a iniciativas governamentais que não contassem com sua prévia aprovação. Dilma estaria contrariando o estilo de Lula, que não as levava a público antes de torná-las minimamente consensuais entre suas forças principais de sustentação. No caso, para além da questão salarial, as centrais parecem que se insurgem - talvez principalmente - contra o fechamento dos canais de negociação que Lula mantinha com elas (ver "Boletim Eletrônico da Agência Sindical" de 20/1/2011).
O tema recente da elevação da taxa de juros por decisão do Banco Central sinaliza para a mesma direção. Sobre esse tema sensível, nota dada a público pela Força Sindical não foge das palavras fortes: "É incrível, mas parece que o governo que inicia quer implantar a agenda econômica que foi derrotada nas últimas eleições por privilegiar o capital especulativo" (o mesmo Boletim, 21/1/2011). O argumento, como se sabe, é puramente retórico: o candidato Serra sempre se mostrou inequivocamente contrário à política de juros do Banco Central.
As centrais, na verdade, estão é declarando em alto e bom som que ou são reinstaladas no governo pela presidente Dilma, como Lula parecia anuir ou lhes fazia imaginar, ou vão fazer política no Parlamento, nas ruas e nos sindicatos. Como disse um sindicalista, em frase pouco enigmática, "que recomeçou, recomeçou".
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional.
Fonte: Valor Econômico.
domingo, 23 de janeiro de 2011
Livro ensina como Mark virou Zuckerberg (Elio Gaspari)
Dentro de poucas semanas chegará às livrarias brasileiras "O Efeito Facebook", do jornalista David Kirkpatrick. É a história do fenômeno criado por Mark Zuckerberg. Para quem viu "A Rede Social" ou leu "Bilionários por Acaso", explica o que fez daquele garoto avoado e mal vestido um dos homens mais ricos do mundo.
Em sete anos, sua rede, nascida num dormitório de Harvard, juntou 500 milhões de usuários ativos, emprega 1.400 pessoas e vale US$ 50 bilhões. É uma aula.
"Efeito Facebook" evitou os adornos folclóricos (ainda que reais) do filme e não centralizou a narrativa na briga com os gêmeos Winklevoss, que acusam Zuckerberg de lhes ter roubado a ideia, nem na disputa com o brasileiro Eduardo Saverin, que foi afastado da gerência comercial do empreendimento, com US$ 2,5 bilhões no bolso.
Kirkpatrick, ex-editor da revista "Fortune", entrevistou Zuckerberg, mas não falou com os gêmeos nem com Saverin.
Seu livro ajuda a buscar resposta para uma pergunta: o que é que transformou Mark Zuckerberg em Mark Zuckerberg?
Hipótese: como Bill Gates, Sergey Brin e Larry Page (a dupla do Google), ele inventou uma novidade genial, e o resto veio junto.
Falso, tanto no caso dele como no dos outros três. Todos tiveram boas ideias, mas não inventaram nada. O sucesso do Facebook, como o da Microsoft e o do Google, é produto de alguma sorte, uma ideia simples obsessivamente aperfeiçoada, e muito trabalho.
Zuckerberg ralou. Quando foi aceito em Harvard, tinha um currículo de aluno excepcional.
Em 2003, aos 19 anos, fazia um bico no David Rockefeller Center for Latin American Studies, programando o acesso on-line de candidatos às bolsas de Jorge Paulo Lemann e conectando impressoras encrencadas.
No ano seguinte, criou uma rede social exclusiva para estudantes, professores e funcionários de Harvard, um dos maiores símbolos da elite americana. Em três semanas, juntou 6.000 usuários.
Depois, expandiu-se para outras escolas, todas selecionadas pela fama. Nascera um produto da elite, para a elite e pela elite. Coco Chanel fez o mesmo com o seu "nº 5", nos anos 20.
Essa é a parte saborosa da história, mas Zuckerberg virou Zuckerberg por decisões muito mais relevantes. Cinco delas:
1) Quando o negócio mal começara, botou a sociedade no papel e ficou com 65% da empresa. Até hoje ele controla a companhia, dominando o Conselho de Administração. (Steve Jobs não fez o mesmo na Apple e foi defenestrado em 1985, retornando 11 anos depois.)
2) Diante do sucesso, percebeu que devia cuidar de Sua Excelência, o Usuário. Até bem pouco tempo, todo o dinheiro que conseguiu foi investido no aluguel de servidores para a rede, impedindo que o sucesso a congestionasse.
3) Ele calibrou a expansão do negócio e obrigou os anunciantes a se adaptar aos seus critérios de sociabilidade. Com isso, está revolucionando o mercado.
4) Quando poderia acreditar que o Facebook estava pronto, foi adiante. Cruzou as informações dos usuários, abriu o site para fotos e hospedou aplicativos. Seguiu a escrita segundo a qual, na internet, tudo o que é aberto, grátis (ou barato), prospera. Quem quer abarcar o mundo fica para trás. (Por exemplo, a Microsoft e, quem sabe, a Apple daqui a muitos anos.)
5) Zuckerberger teve fé no próprio taco. Recusou US$ 10 milhões quando o site não completara um ano e, mais tarde, não o vendeu por US$ 800 milhões para o Yahoo!, nem por US$ 1,5 bilhão para a Viacom. Mais: afastou-se dos executivos que preferiam vender a empresa.
"Efeito Facebook" não ensina como virar Zuckerberg, mas mostra como o segredo está mais no trabalho e na firmeza do que na genialidade. No entanto, que o moço é esquisito, não há dúvida. Quando sua namorada reclamou da sua falta de atenção, contratou que passariam cem minutos semanais a sós, e teriam ao menos um encontro fora da empresa ou da casa dele.
Em sete anos, sua rede, nascida num dormitório de Harvard, juntou 500 milhões de usuários ativos, emprega 1.400 pessoas e vale US$ 50 bilhões. É uma aula.
"Efeito Facebook" evitou os adornos folclóricos (ainda que reais) do filme e não centralizou a narrativa na briga com os gêmeos Winklevoss, que acusam Zuckerberg de lhes ter roubado a ideia, nem na disputa com o brasileiro Eduardo Saverin, que foi afastado da gerência comercial do empreendimento, com US$ 2,5 bilhões no bolso.
Kirkpatrick, ex-editor da revista "Fortune", entrevistou Zuckerberg, mas não falou com os gêmeos nem com Saverin.
Seu livro ajuda a buscar resposta para uma pergunta: o que é que transformou Mark Zuckerberg em Mark Zuckerberg?
Hipótese: como Bill Gates, Sergey Brin e Larry Page (a dupla do Google), ele inventou uma novidade genial, e o resto veio junto.
Falso, tanto no caso dele como no dos outros três. Todos tiveram boas ideias, mas não inventaram nada. O sucesso do Facebook, como o da Microsoft e o do Google, é produto de alguma sorte, uma ideia simples obsessivamente aperfeiçoada, e muito trabalho.
Zuckerberg ralou. Quando foi aceito em Harvard, tinha um currículo de aluno excepcional.
Em 2003, aos 19 anos, fazia um bico no David Rockefeller Center for Latin American Studies, programando o acesso on-line de candidatos às bolsas de Jorge Paulo Lemann e conectando impressoras encrencadas.
No ano seguinte, criou uma rede social exclusiva para estudantes, professores e funcionários de Harvard, um dos maiores símbolos da elite americana. Em três semanas, juntou 6.000 usuários.
Depois, expandiu-se para outras escolas, todas selecionadas pela fama. Nascera um produto da elite, para a elite e pela elite. Coco Chanel fez o mesmo com o seu "nº 5", nos anos 20.
Essa é a parte saborosa da história, mas Zuckerberg virou Zuckerberg por decisões muito mais relevantes. Cinco delas:
1) Quando o negócio mal começara, botou a sociedade no papel e ficou com 65% da empresa. Até hoje ele controla a companhia, dominando o Conselho de Administração. (Steve Jobs não fez o mesmo na Apple e foi defenestrado em 1985, retornando 11 anos depois.)
2) Diante do sucesso, percebeu que devia cuidar de Sua Excelência, o Usuário. Até bem pouco tempo, todo o dinheiro que conseguiu foi investido no aluguel de servidores para a rede, impedindo que o sucesso a congestionasse.
3) Ele calibrou a expansão do negócio e obrigou os anunciantes a se adaptar aos seus critérios de sociabilidade. Com isso, está revolucionando o mercado.
4) Quando poderia acreditar que o Facebook estava pronto, foi adiante. Cruzou as informações dos usuários, abriu o site para fotos e hospedou aplicativos. Seguiu a escrita segundo a qual, na internet, tudo o que é aberto, grátis (ou barato), prospera. Quem quer abarcar o mundo fica para trás. (Por exemplo, a Microsoft e, quem sabe, a Apple daqui a muitos anos.)
5) Zuckerberger teve fé no próprio taco. Recusou US$ 10 milhões quando o site não completara um ano e, mais tarde, não o vendeu por US$ 800 milhões para o Yahoo!, nem por US$ 1,5 bilhão para a Viacom. Mais: afastou-se dos executivos que preferiam vender a empresa.
"Efeito Facebook" não ensina como virar Zuckerberg, mas mostra como o segredo está mais no trabalho e na firmeza do que na genialidade. No entanto, que o moço é esquisito, não há dúvida. Quando sua namorada reclamou da sua falta de atenção, contratou que passariam cem minutos semanais a sós, e teriam ao menos um encontro fora da empresa ou da casa dele.
Alerta que vem da lama (entrevista com o Biogeógrafo Jared Diamond)
Biogeógrafo americano Jared Diamond afirma que estamos sob risco de suicídio ecológico, mas há saída
Ivan Marsiglia e Carolina Rossetti - O Estado de S.Paulo
Rubbish! É a resposta - em bom inglês - do biogeógrafo americano Jared Diamond para a pergunta sacada com frequência pelos "céticos do clima" no afã de congelar o debate ambiental: o aumento da temperatura do planeta, ao qual se atribui a intensificação dos ciclos de calor e frio testemunhada hoje por toda a parte, pode ser o resultado de um ciclo natural da Terra? Rubbish - lixo, besteira. "A ideia de que as mudanças climáticas que estamos presenciando hoje são naturais é tão ridícula quanto a que nega a evolução das espécies", fustiga o autor de Colapso (Record, 2005), um tratado multidisciplinar de 685 páginas na edição brasileira que analisa as razões pelas quais grandes civilizações do passado entraram em crise e virtualmente desapareceram. E a questão assustadora que emerge de seu olhar sobre as ruínas maias, as estátuas desoladoras da Ilha de Páscoa ou os templos abandonados de Angkor Wat, no Camboja, é: será que o mesmo pode acontecer conosco?
A resposta de Diamond, infelizmente, é sim. Ganhador do Prêmio Pulitzer por sua obra anterior, Armas, Germes e Aço (Record, 1997), em que focaliza as guerras, epidemias e conflitos que dizimaram sociedades nativas das Américas, Austrália e África, o cientista americano há anos nos adverte sobre os cinco pontos que determinaram a extinção de civilizações inteiras. O primeiro, é a destruição de recursos naturais. O segundo, mudanças bruscas no clima. O terceiro, a relação com civilizações vizinhas amigas. O quarto, contatos com civilizações vizinhas hostis. E, o quinto, fatores políticos, econômicos e culturais que impedem as sociedades de resolver seus problemas ambientais. Salta aos olhos em sua obra, portanto, a centralidade que tem a ecologia na sobrevivência dos povos.
Foi na semana subsequente à pior catástrofe natural da história do País, na região serrana do Rio de Janeiro - a mesma em que um arrepiante tornado surgiu nos céus de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense -, que Jared Diamond falou por telefone ao Aliás. Às vésperas do lançamento no Brasil de um de seus primeiros livros, O Terceiro Chimpanzé (1992), o professor de fisiologia e geografia da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, fala das providências cruciais que o ser humano deverá tomar nos próximos anos para garantir sua existência futura. Diz que as elites políticas, seja nos EUA, na Europa, nos países pobres e nos emergentes, tendem a tomar decisões pautadas pelo retorno em curto prazo - até um ponto em que pode não haver mais retorno. Avalia que o Brasil dos combustíveis verdes tem sido "uma inspiração para o mundo", mas também um "mau exemplo" na preservação de suas florestas tropicais. E fala da corrida travada hoje, cabeça a cabeça, entre "o cavalo das boas políticas e aquele das más", que vai determinar o colapso ou a redenção das nossas próximas gerações.
O Brasil enfrentou tempestades de verão que mataram mais de 700 pessoas. Debarati Guha-Sapir, do Centro de Pesquisas sobre a Epidemiologia de Desastres da ONU, disse que o tamanho da tragédia é indesculpável, pois o País tem apenas um desastre natural para gerenciar. Como evitá-lo no futuro?
Precisamos estar preparados para um número cada vez maior de tragédias humanas relacionadas a mudanças climáticas. O clima se tornará mais variável. O úmido será mais úmido e o seco, mais seco. A Austrália, por exemplo, acaba de sair da maior seca de sua história recente e agora enfrenta o período mais úmido já registrado no país. Em Los Angeles, onde moro, recentemente tivemos o dia mais quente da história e, há algum tempo, o ano mais chuvoso e também o mais seco que a cidade já viu.
Em seus escritos, o sr. aponta a Austrália como um país com estilo de vida antagônico às suas condições naturais. Mas, em comparação com o Brasil, os australianos se saíram melhor: enfrentaram a pior enchente em 35 anos, mas contabilizaram apenas 30 mortos. Como explicar isso?
É verdade que o modo de vida dos australianos não está em harmonia com suas condições naturais. Mas o estilo de vida dos americanos e dos brasileiros tampouco. O modo de vida do mundo não está em harmonia com as condições naturais deste próprio mundo. No caso da Austrália, o país fica no continente que tem o meio ambiente mais frágil, o clima mais variável e o solo menos produtivo. Mas a Austrália é um país rico e dispõe de mais dinheiro que o Brasil para criar uma infraestrutura que gerencie tais problemas. Em Los Angeles, onde as enchentes são recorrentes, não resta um rio em seu leito natural: todos receberam canais de concreto para reduzir o risco de enchentes. A minha casa fica literalmente em cima de um córrego coberto por uma estrutura de concreto. Nos 34 anos em que vivi nessa casa, apenas duas vezes a água invadiu o porão.
Em Colapso, o sr. lista cinco razões que explicam o declínio das sociedades. Elas continuam as mesmas?
Sim. Os cinco fatores que levo em consideração ao tentar entender por que uma sociedade é mais ou menos propícia a entrar em colapso são, em primeiro lugar, o impacto do homem sobre o meio ambiente. Ou seja, pessoas precisam de recursos naturais para sobreviver, como peixe, madeira, água, e podem, mesmo que não intencionalmente, manejá-los erradamente. O resultado pode ser um suicídio ecológico. O segundo fator que levo em conta é a mudança no clima local. Atualmente, essa mudança é global, e resultado principalmente da queima de combustíveis fósseis. O terceiro fator são os inimigos que podem enfraquecer ou conquistar um país. O quarto são as aliados. A maioria dos países hoje depende de parceiros comerciais para a importação de recursos essenciais. Quando nossos aliados enfrentam problemas e não são mais capazes de fornecer recursos, isso nos enfraquece. Em 1973, a crise do petróleo afetou a economia americana, que dependia da importação do Oriente Médio de metade dos combustíveis que consumia. O último fator recai sobre a capacidade das instituições políticas e econômicas de perceber quando o país está passando por problemas, entender suas causas e criar meios para resolvê-los.
O colapso da sociedade como hoje a conhecemos é evitável ou apenas prorrogável?
É completamente evitável. Se ocorrer, será porque nós, humanos, o causamos. Não há segredo sobre quais são os problemas: a queima exagerada de combustíveis fósseis, a superexploração dos pesqueiros no mundo, a destruição das florestas, a exploração demasiada das reservas de água e o despejo de produtos tóxicos. Sabemos como proceder para resolver essas coisas. O que falta é vontade política.
O Brasil tem feito sua parte?
Nunca estive no Brasil, portanto não posso falar a partir de uma experiência de primeira mão. Mas pelo que entendo, vocês adotaram uma solução imaginativa para a questão energética, com a produção de etanol. O Brasil é uma inspiração para o resto do mundo em relação aos carros flex. Por outro lado, mesmo que o País esteja consciente dos riscos de se desmatar a maior floresta tropical do mundo, muito ainda precisa ser feito. A Amazônia é muito importante para os brasileiros, pois ela regula o clima do país. Se a destruírem, o Brasil inteiro sofrerá com as secas.
De que maneira as elites tomadoras de decisão podem encabeçar a solução dos problemas ou ser responsáveis por conduzir sociedades à autodestruição?
Uma elite que foi competente em solucionar problemas é a composta por políticos dos Países Baixos, que têm grandes dificuldades com o manejo de água, já que um terço da área desses países está abaixo do nível do mar. A Holanda investiu uma quantidade enorme de dinheiro no controle de enchentes. Uma coisa que motivou os políticos holandeses é que muitos deles vivem em casas que estão sob o nível do mar. Eles sabem que se não resolverem a coisa vão se afogar com os demais. Outra elite razoavelmente bem-sucedida é a realeza do Butão, nos Himalaias. O rei butanês disse ao seu povo que o país precisa se tornar uma democracia quer queira, quer não. Ele também anunciou que a meta do país não é aumentar o PIB, mas elevar o índice que mede a felicidade nacional. Isso é verdadeiramente uma meta maravilhosa. Nos EUA, temos políticos poderosos com uma visão curta e destrutiva. Acho que contamos com um bom presidente, mas temos uma oposição cujos objetivos no presente momento se resumem a ganhar a próxima eleição presidencial e, repetidamente, tem negado a existência da mudança climática e do aquecimento global.
De que forma o declínio de sociedades antigas pode nos servir de lição?
Algumas sociedades do passado cometeram erros decisivos, outras agiram com sabedoria e tiveram longos períodos de estabilidade. Um vizinho de vocês, o Paraguai, é um exemplo de país que cometeu um erro crucial, há 120 anos: lutar simultaneamente contra Brasil, Argentina e Uruguai. Isso resultou na morte de 80% dos homens e um terço da população. Tomando como exemplo o Paraguai, precisamos aprender a adotar metas realistas. Podemos aprender também com os países que manejam bem seus recursos, como a Suécia e a Noruega, ou tomar como mau exemplo a Somália - que desmatou suas florestas e hoje sofre com a seca. Em defesa da Somália, podemos argumentar que o país não conta com um grande número de ecologistas capacitados, ao contrário de Brasil e EUA.
O sr. estudou a ascensão e queda de sociedades no passado, mas o que se discute agora é o futuro da própria humanidade. Sua teoria é capaz de explicar os desafios do mundo globalizado?
Sim. É verdade que esta é a primeira vez na história que enfrentamos o risco de o mundo inteiro entrar em colapso. No passado, o colapso do Paraguai, por exemplo, não teve nenhum efeito na economia da Índia ou da Indonésia. Hoje, até mesmo quando um país remoto, como a Somália ou o Afeganistão, entra em colapso isso repercute ao redor do mundo. Mas, por analogia, é possível tirar conclusões semelhantes.
O geógrafo brasileiro Milton Santos (1926-2001) enfatizou aspectos socioculturais para explicar os dilemas da sociedade, enquanto seu trabalho é considerado por alguns como geodeterminista. Aspectos culturais não teriam mais influência sobre o futuro das sociedades que os naturais?
Com frequência as pessoas me perguntam se isso ou aquilo é mais importante para explicar o declínio das sociedades. Questões como essas são ruins. É o mesmo, por exemplo, que perguntar sobre as causas que levaram ao fracasso de um casamento. O que é mais importante para manter um casamento feliz? Concordar sobre sexo ou dinheiro, ou crianças, ou religião, ou sogros? Para se ter um casamento feliz é preciso estar de acordo a respeito de sexo e crianças e dinheiro e religião e sogros. O mesmo se dá no entendimento do colapso de sociedades. Fatores culturais são importantes, mas diferenças ambientais não podem ser ignoradas. Por exemplo, as regiões Sul e o Sudeste do Brasil são mais ricas que a Norte. Isso é por causa do meio ambiente, não porque as pessoas no norte sejam burras e as do sul mais inteligentes ou cultas. A explicação é que o norte do país é mais tropical e áreas tropicais tendem a ser mais pobres porque têm menos solos férteis e mais doenças. O mesmo é verdade nos EUA, onde até 50 anos atrás o sul foi sempre mais pobre que o norte. Ao redor do mundo, esse padrão é repetido: países tropicais tendem a ser mais pobres que os de zonas temperadas.
Que sociedades estão em colapso hoje?
Todas as sociedades do mundo estão em risco de colapso. Se a economia mundial colapsar isso afetará todos os países. Nós vimos o que houve dois anos atrás, quando o mercado financeiro americano quebrou, afetando todas as bolsas do mundo. Então, embora todos os países estejam em risco de colapso, alguns estão mais próximos dele do que outros - por uma maior fragilidade ambiental, porque são menos maduros política ou ecologicamente ou por qualquer outro motivo. Por exemplo, o Haiti, que retornou agora às manchetes com a volta do ditador Baby Doc, viu seu governo virtualmente colapsar e continua em grande dificuldade. O México enfrenta dificuldades gravíssimas relacionadas a problemas ecológicos, com a aridez de suas terras, e políticos, com a onda de assassinatos ligada ao tráfico de drogas. Paquistão é um exemplo óbvio, Argélia, Tunísia, que também estão no noticiário... Do outro lado, dos países com menos risco de colapso estão a Nova Zelândia, o Butão e, na América Latina, a Costa Rica. Chile também vai bem. E o Brasil tem melhores perspectivas que vizinhos como a Bolívia, claro.
Países podem se recuperar do colapso?
O colapso normalmente não é definitivo. Houve colapsos no passado que foram sucedidos por retomadas. O Império Romano caiu e, apesar disso, a Itália é hoje um país de Primeiro Mundo.
A Europa, onde o debate a as leis de proteção ambiental mais avançaram, também entrou em crise. Quando isso ocorre, há risco de retrocesso nas políticas ambientais?
É possível. Muita gente sustenta que, quando a economia está fraca, não se consegue investir como se deve no meio ambiente. O colapso econômico de fato põe em risco os avanços em sustentabilidade. Só que os problemas ambientais só são fáceis de resolver nos estágios iniciais. Nesse ponto custam menos, mas se aguardamos 20 ou 30 anos, eles se tornarão muito caros ou impossíveis de solucionar.
Nos EUA, quando o presidente Obama condicionou empréstimos às montadoras americanas ao investimento em carros mais baratos e menos poluentes, a crise não ajudou?
Tanto as crises econômicas podem ter bons efeitos para a política ambiental como fazê-la retroceder. Nos EUA, antes do crash financeiro, estava muito em moda o Hummer, um jipe de 3 toneladas, versão civil de um veículo militar utilizado no Iraque. Era caríssimo e gastava horrores em combustível. Aparentemente, suas vendas despencaram e isso é um efeito positivo da crise econômica. Ainda assim, há americanos ignorantes que ainda insistem em dizer que, uma vez que estamos em crise, podemos deixar a agenda ecológica de lado.
Há modelos econômicos melhores e piores no que diz respeito aos danos ecológicos?
No momento em que falamos, tenho que dizer que o modelo econômico americano não parece ser o mais adequado. Por outro lado, somos uma democracia, com maus políticos, mas também bons - que denunciam os problemas que põem em risco o futuro. Numa ditadura comunista, por exemplo, isso seria impossível. Gosto do sistema capitalista porque ele pressupõe competição, inclusive de ideias. Mas aprecio também o papel do Estado em interferir no capitalismo, evitando os monopólios e enfrentando grupos cujos interesses vão de encontro aos da maioria da população. Em comparação, eu diria que o modelo europeu de capitalismo, mais socializado e comprometido com o bem comum, é atualmente a alternativa menos ruim.
Alguns cientistas afirmam que não se pode dizer ao certo que o aquecimento global seja culpa da ação do homem; pode ser parte de um ciclo natural da Terra.
Sabe a palavra inglesa rubbish? Significa lixo, mas é usada em linguagem coloquial em referência a ideias ridículas. O argumento de que as mudanças climáticas que estamos presenciando hoje sejam apenas naturais é simplesmente ridículo. Tanto como aquele que nega a evolução das espécies. As evidências de que tais mudanças se devem a causas humanas são irrefutáveis. Os anos mais quentes registrados em centenas de anos se concentram nos últimos cinco que passaram. O planeta já enfrentou flutuações de temperatura no passado, mas nunca nos padrões registrados hoje. Não conheço um único cientista respeitável que afirme que as atuais mudanças de clima não se devam à ação humana. É por isso que eu digo: rubbish.
Seis anos depois do lançamento de Colapso, o sr. está mais otimista ou pessimista em relação ao futuro de nossa civilização?
Diria que me mantenho mais ou menos no mesmo nível. Tenho visto coisas ruins piorarem e boas tornarem-se melhores. O que mais me preocupa é que continuamos vendo um aumento vertiginoso do consumo no mundo, seja nos EUA, na China, na Índia ou no Brasil. O que me anima é que cada vez mais pessoas reconhecem a gravidade da situação e estão tomando iniciativas. Uma metáfora que gosto de usar é a da corrida de cavalos. Há dois deles correndo agora, o cavalo da destruição e o cavalo das boas políticas. Nestes últimos seis anos, eu diria que os dois têm corrido cada vez mais rápido, disputando cabeça a cabeça. Não sei qual vencerá a corrida, mas diria que as chances do cavalo do bem vencer são de 51%, enquanto o das más políticas tem 49%. E, se nossa destruição não é certa, nem um destino inescapável, é preciso saber que se não tomarmos medidas urgentes vamos ter grandes problemas.
A indústria do entretenimento mostra, cada vez mais, imagens do fim do mundo, prédios em ruínas, cidades abandonadas. Por que somos tão fascinados por nossa destruição?
Parte disso se deve à força romântica das imagens de civilizações passadas que entraram em colapso, como as ruínas dos maias, incas e astecas. Ou os escombros das guerras no Iraque e no Irã. E pensamos: quem construiu aqueles templos e monumentos, tinha uma cultura e arte admiráveis, podia imaginar que isso aconteceria? Por que essas civilizações entraram em colapso, sem poder evitar? E nos angustiamos: será que isso também vai acontecer conosco?
Ivan Marsiglia e Carolina Rossetti - O Estado de S.Paulo
Rubbish! É a resposta - em bom inglês - do biogeógrafo americano Jared Diamond para a pergunta sacada com frequência pelos "céticos do clima" no afã de congelar o debate ambiental: o aumento da temperatura do planeta, ao qual se atribui a intensificação dos ciclos de calor e frio testemunhada hoje por toda a parte, pode ser o resultado de um ciclo natural da Terra? Rubbish - lixo, besteira. "A ideia de que as mudanças climáticas que estamos presenciando hoje são naturais é tão ridícula quanto a que nega a evolução das espécies", fustiga o autor de Colapso (Record, 2005), um tratado multidisciplinar de 685 páginas na edição brasileira que analisa as razões pelas quais grandes civilizações do passado entraram em crise e virtualmente desapareceram. E a questão assustadora que emerge de seu olhar sobre as ruínas maias, as estátuas desoladoras da Ilha de Páscoa ou os templos abandonados de Angkor Wat, no Camboja, é: será que o mesmo pode acontecer conosco?
A resposta de Diamond, infelizmente, é sim. Ganhador do Prêmio Pulitzer por sua obra anterior, Armas, Germes e Aço (Record, 1997), em que focaliza as guerras, epidemias e conflitos que dizimaram sociedades nativas das Américas, Austrália e África, o cientista americano há anos nos adverte sobre os cinco pontos que determinaram a extinção de civilizações inteiras. O primeiro, é a destruição de recursos naturais. O segundo, mudanças bruscas no clima. O terceiro, a relação com civilizações vizinhas amigas. O quarto, contatos com civilizações vizinhas hostis. E, o quinto, fatores políticos, econômicos e culturais que impedem as sociedades de resolver seus problemas ambientais. Salta aos olhos em sua obra, portanto, a centralidade que tem a ecologia na sobrevivência dos povos.
Foi na semana subsequente à pior catástrofe natural da história do País, na região serrana do Rio de Janeiro - a mesma em que um arrepiante tornado surgiu nos céus de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense -, que Jared Diamond falou por telefone ao Aliás. Às vésperas do lançamento no Brasil de um de seus primeiros livros, O Terceiro Chimpanzé (1992), o professor de fisiologia e geografia da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, fala das providências cruciais que o ser humano deverá tomar nos próximos anos para garantir sua existência futura. Diz que as elites políticas, seja nos EUA, na Europa, nos países pobres e nos emergentes, tendem a tomar decisões pautadas pelo retorno em curto prazo - até um ponto em que pode não haver mais retorno. Avalia que o Brasil dos combustíveis verdes tem sido "uma inspiração para o mundo", mas também um "mau exemplo" na preservação de suas florestas tropicais. E fala da corrida travada hoje, cabeça a cabeça, entre "o cavalo das boas políticas e aquele das más", que vai determinar o colapso ou a redenção das nossas próximas gerações.
O Brasil enfrentou tempestades de verão que mataram mais de 700 pessoas. Debarati Guha-Sapir, do Centro de Pesquisas sobre a Epidemiologia de Desastres da ONU, disse que o tamanho da tragédia é indesculpável, pois o País tem apenas um desastre natural para gerenciar. Como evitá-lo no futuro?
Precisamos estar preparados para um número cada vez maior de tragédias humanas relacionadas a mudanças climáticas. O clima se tornará mais variável. O úmido será mais úmido e o seco, mais seco. A Austrália, por exemplo, acaba de sair da maior seca de sua história recente e agora enfrenta o período mais úmido já registrado no país. Em Los Angeles, onde moro, recentemente tivemos o dia mais quente da história e, há algum tempo, o ano mais chuvoso e também o mais seco que a cidade já viu.
Em seus escritos, o sr. aponta a Austrália como um país com estilo de vida antagônico às suas condições naturais. Mas, em comparação com o Brasil, os australianos se saíram melhor: enfrentaram a pior enchente em 35 anos, mas contabilizaram apenas 30 mortos. Como explicar isso?
É verdade que o modo de vida dos australianos não está em harmonia com suas condições naturais. Mas o estilo de vida dos americanos e dos brasileiros tampouco. O modo de vida do mundo não está em harmonia com as condições naturais deste próprio mundo. No caso da Austrália, o país fica no continente que tem o meio ambiente mais frágil, o clima mais variável e o solo menos produtivo. Mas a Austrália é um país rico e dispõe de mais dinheiro que o Brasil para criar uma infraestrutura que gerencie tais problemas. Em Los Angeles, onde as enchentes são recorrentes, não resta um rio em seu leito natural: todos receberam canais de concreto para reduzir o risco de enchentes. A minha casa fica literalmente em cima de um córrego coberto por uma estrutura de concreto. Nos 34 anos em que vivi nessa casa, apenas duas vezes a água invadiu o porão.
Em Colapso, o sr. lista cinco razões que explicam o declínio das sociedades. Elas continuam as mesmas?
Sim. Os cinco fatores que levo em consideração ao tentar entender por que uma sociedade é mais ou menos propícia a entrar em colapso são, em primeiro lugar, o impacto do homem sobre o meio ambiente. Ou seja, pessoas precisam de recursos naturais para sobreviver, como peixe, madeira, água, e podem, mesmo que não intencionalmente, manejá-los erradamente. O resultado pode ser um suicídio ecológico. O segundo fator que levo em conta é a mudança no clima local. Atualmente, essa mudança é global, e resultado principalmente da queima de combustíveis fósseis. O terceiro fator são os inimigos que podem enfraquecer ou conquistar um país. O quarto são as aliados. A maioria dos países hoje depende de parceiros comerciais para a importação de recursos essenciais. Quando nossos aliados enfrentam problemas e não são mais capazes de fornecer recursos, isso nos enfraquece. Em 1973, a crise do petróleo afetou a economia americana, que dependia da importação do Oriente Médio de metade dos combustíveis que consumia. O último fator recai sobre a capacidade das instituições políticas e econômicas de perceber quando o país está passando por problemas, entender suas causas e criar meios para resolvê-los.
O colapso da sociedade como hoje a conhecemos é evitável ou apenas prorrogável?
É completamente evitável. Se ocorrer, será porque nós, humanos, o causamos. Não há segredo sobre quais são os problemas: a queima exagerada de combustíveis fósseis, a superexploração dos pesqueiros no mundo, a destruição das florestas, a exploração demasiada das reservas de água e o despejo de produtos tóxicos. Sabemos como proceder para resolver essas coisas. O que falta é vontade política.
O Brasil tem feito sua parte?
Nunca estive no Brasil, portanto não posso falar a partir de uma experiência de primeira mão. Mas pelo que entendo, vocês adotaram uma solução imaginativa para a questão energética, com a produção de etanol. O Brasil é uma inspiração para o resto do mundo em relação aos carros flex. Por outro lado, mesmo que o País esteja consciente dos riscos de se desmatar a maior floresta tropical do mundo, muito ainda precisa ser feito. A Amazônia é muito importante para os brasileiros, pois ela regula o clima do país. Se a destruírem, o Brasil inteiro sofrerá com as secas.
De que maneira as elites tomadoras de decisão podem encabeçar a solução dos problemas ou ser responsáveis por conduzir sociedades à autodestruição?
Uma elite que foi competente em solucionar problemas é a composta por políticos dos Países Baixos, que têm grandes dificuldades com o manejo de água, já que um terço da área desses países está abaixo do nível do mar. A Holanda investiu uma quantidade enorme de dinheiro no controle de enchentes. Uma coisa que motivou os políticos holandeses é que muitos deles vivem em casas que estão sob o nível do mar. Eles sabem que se não resolverem a coisa vão se afogar com os demais. Outra elite razoavelmente bem-sucedida é a realeza do Butão, nos Himalaias. O rei butanês disse ao seu povo que o país precisa se tornar uma democracia quer queira, quer não. Ele também anunciou que a meta do país não é aumentar o PIB, mas elevar o índice que mede a felicidade nacional. Isso é verdadeiramente uma meta maravilhosa. Nos EUA, temos políticos poderosos com uma visão curta e destrutiva. Acho que contamos com um bom presidente, mas temos uma oposição cujos objetivos no presente momento se resumem a ganhar a próxima eleição presidencial e, repetidamente, tem negado a existência da mudança climática e do aquecimento global.
De que forma o declínio de sociedades antigas pode nos servir de lição?
Algumas sociedades do passado cometeram erros decisivos, outras agiram com sabedoria e tiveram longos períodos de estabilidade. Um vizinho de vocês, o Paraguai, é um exemplo de país que cometeu um erro crucial, há 120 anos: lutar simultaneamente contra Brasil, Argentina e Uruguai. Isso resultou na morte de 80% dos homens e um terço da população. Tomando como exemplo o Paraguai, precisamos aprender a adotar metas realistas. Podemos aprender também com os países que manejam bem seus recursos, como a Suécia e a Noruega, ou tomar como mau exemplo a Somália - que desmatou suas florestas e hoje sofre com a seca. Em defesa da Somália, podemos argumentar que o país não conta com um grande número de ecologistas capacitados, ao contrário de Brasil e EUA.
O sr. estudou a ascensão e queda de sociedades no passado, mas o que se discute agora é o futuro da própria humanidade. Sua teoria é capaz de explicar os desafios do mundo globalizado?
Sim. É verdade que esta é a primeira vez na história que enfrentamos o risco de o mundo inteiro entrar em colapso. No passado, o colapso do Paraguai, por exemplo, não teve nenhum efeito na economia da Índia ou da Indonésia. Hoje, até mesmo quando um país remoto, como a Somália ou o Afeganistão, entra em colapso isso repercute ao redor do mundo. Mas, por analogia, é possível tirar conclusões semelhantes.
O geógrafo brasileiro Milton Santos (1926-2001) enfatizou aspectos socioculturais para explicar os dilemas da sociedade, enquanto seu trabalho é considerado por alguns como geodeterminista. Aspectos culturais não teriam mais influência sobre o futuro das sociedades que os naturais?
Com frequência as pessoas me perguntam se isso ou aquilo é mais importante para explicar o declínio das sociedades. Questões como essas são ruins. É o mesmo, por exemplo, que perguntar sobre as causas que levaram ao fracasso de um casamento. O que é mais importante para manter um casamento feliz? Concordar sobre sexo ou dinheiro, ou crianças, ou religião, ou sogros? Para se ter um casamento feliz é preciso estar de acordo a respeito de sexo e crianças e dinheiro e religião e sogros. O mesmo se dá no entendimento do colapso de sociedades. Fatores culturais são importantes, mas diferenças ambientais não podem ser ignoradas. Por exemplo, as regiões Sul e o Sudeste do Brasil são mais ricas que a Norte. Isso é por causa do meio ambiente, não porque as pessoas no norte sejam burras e as do sul mais inteligentes ou cultas. A explicação é que o norte do país é mais tropical e áreas tropicais tendem a ser mais pobres porque têm menos solos férteis e mais doenças. O mesmo é verdade nos EUA, onde até 50 anos atrás o sul foi sempre mais pobre que o norte. Ao redor do mundo, esse padrão é repetido: países tropicais tendem a ser mais pobres que os de zonas temperadas.
Que sociedades estão em colapso hoje?
Todas as sociedades do mundo estão em risco de colapso. Se a economia mundial colapsar isso afetará todos os países. Nós vimos o que houve dois anos atrás, quando o mercado financeiro americano quebrou, afetando todas as bolsas do mundo. Então, embora todos os países estejam em risco de colapso, alguns estão mais próximos dele do que outros - por uma maior fragilidade ambiental, porque são menos maduros política ou ecologicamente ou por qualquer outro motivo. Por exemplo, o Haiti, que retornou agora às manchetes com a volta do ditador Baby Doc, viu seu governo virtualmente colapsar e continua em grande dificuldade. O México enfrenta dificuldades gravíssimas relacionadas a problemas ecológicos, com a aridez de suas terras, e políticos, com a onda de assassinatos ligada ao tráfico de drogas. Paquistão é um exemplo óbvio, Argélia, Tunísia, que também estão no noticiário... Do outro lado, dos países com menos risco de colapso estão a Nova Zelândia, o Butão e, na América Latina, a Costa Rica. Chile também vai bem. E o Brasil tem melhores perspectivas que vizinhos como a Bolívia, claro.
Países podem se recuperar do colapso?
O colapso normalmente não é definitivo. Houve colapsos no passado que foram sucedidos por retomadas. O Império Romano caiu e, apesar disso, a Itália é hoje um país de Primeiro Mundo.
A Europa, onde o debate a as leis de proteção ambiental mais avançaram, também entrou em crise. Quando isso ocorre, há risco de retrocesso nas políticas ambientais?
É possível. Muita gente sustenta que, quando a economia está fraca, não se consegue investir como se deve no meio ambiente. O colapso econômico de fato põe em risco os avanços em sustentabilidade. Só que os problemas ambientais só são fáceis de resolver nos estágios iniciais. Nesse ponto custam menos, mas se aguardamos 20 ou 30 anos, eles se tornarão muito caros ou impossíveis de solucionar.
Nos EUA, quando o presidente Obama condicionou empréstimos às montadoras americanas ao investimento em carros mais baratos e menos poluentes, a crise não ajudou?
Tanto as crises econômicas podem ter bons efeitos para a política ambiental como fazê-la retroceder. Nos EUA, antes do crash financeiro, estava muito em moda o Hummer, um jipe de 3 toneladas, versão civil de um veículo militar utilizado no Iraque. Era caríssimo e gastava horrores em combustível. Aparentemente, suas vendas despencaram e isso é um efeito positivo da crise econômica. Ainda assim, há americanos ignorantes que ainda insistem em dizer que, uma vez que estamos em crise, podemos deixar a agenda ecológica de lado.
Há modelos econômicos melhores e piores no que diz respeito aos danos ecológicos?
No momento em que falamos, tenho que dizer que o modelo econômico americano não parece ser o mais adequado. Por outro lado, somos uma democracia, com maus políticos, mas também bons - que denunciam os problemas que põem em risco o futuro. Numa ditadura comunista, por exemplo, isso seria impossível. Gosto do sistema capitalista porque ele pressupõe competição, inclusive de ideias. Mas aprecio também o papel do Estado em interferir no capitalismo, evitando os monopólios e enfrentando grupos cujos interesses vão de encontro aos da maioria da população. Em comparação, eu diria que o modelo europeu de capitalismo, mais socializado e comprometido com o bem comum, é atualmente a alternativa menos ruim.
Alguns cientistas afirmam que não se pode dizer ao certo que o aquecimento global seja culpa da ação do homem; pode ser parte de um ciclo natural da Terra.
Sabe a palavra inglesa rubbish? Significa lixo, mas é usada em linguagem coloquial em referência a ideias ridículas. O argumento de que as mudanças climáticas que estamos presenciando hoje sejam apenas naturais é simplesmente ridículo. Tanto como aquele que nega a evolução das espécies. As evidências de que tais mudanças se devem a causas humanas são irrefutáveis. Os anos mais quentes registrados em centenas de anos se concentram nos últimos cinco que passaram. O planeta já enfrentou flutuações de temperatura no passado, mas nunca nos padrões registrados hoje. Não conheço um único cientista respeitável que afirme que as atuais mudanças de clima não se devam à ação humana. É por isso que eu digo: rubbish.
Seis anos depois do lançamento de Colapso, o sr. está mais otimista ou pessimista em relação ao futuro de nossa civilização?
Diria que me mantenho mais ou menos no mesmo nível. Tenho visto coisas ruins piorarem e boas tornarem-se melhores. O que mais me preocupa é que continuamos vendo um aumento vertiginoso do consumo no mundo, seja nos EUA, na China, na Índia ou no Brasil. O que me anima é que cada vez mais pessoas reconhecem a gravidade da situação e estão tomando iniciativas. Uma metáfora que gosto de usar é a da corrida de cavalos. Há dois deles correndo agora, o cavalo da destruição e o cavalo das boas políticas. Nestes últimos seis anos, eu diria que os dois têm corrido cada vez mais rápido, disputando cabeça a cabeça. Não sei qual vencerá a corrida, mas diria que as chances do cavalo do bem vencer são de 51%, enquanto o das más políticas tem 49%. E, se nossa destruição não é certa, nem um destino inescapável, é preciso saber que se não tomarmos medidas urgentes vamos ter grandes problemas.
A indústria do entretenimento mostra, cada vez mais, imagens do fim do mundo, prédios em ruínas, cidades abandonadas. Por que somos tão fascinados por nossa destruição?
Parte disso se deve à força romântica das imagens de civilizações passadas que entraram em colapso, como as ruínas dos maias, incas e astecas. Ou os escombros das guerras no Iraque e no Irã. E pensamos: quem construiu aqueles templos e monumentos, tinha uma cultura e arte admiráveis, podia imaginar que isso aconteceria? Por que essas civilizações entraram em colapso, sem poder evitar? E nos angustiamos: será que isso também vai acontecer conosco?
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