domingo, 26 de dezembro de 2010

O LEGADO DO FENÔMENO LULA A CONSTRUÇÃO DO MITO LULA (V)

O governo Lula

FREI BETTO

O Globo - 19/12/2010

Anunciada a vitória de Lula nas eleições de 2002, publiquei em O GLOBO
(28/10/2002) o artigo “O amigo Lula”. Encerrei-o com a frase:
“Sobrevivente da grande tribulação do povo brasileiro, Lula é, agora,
um vitorioso”.
Apoiado por ampla maioria da opinião pública brasileira (hoje, 84%),
Lula governa o país há oito anos. Surpreendeu aliados e opositores.
Lula é, também agora, um vitorioso — posso parafrasear-me.
Vivi sempre de meu trabalho, como recomenda o apóstolo Paulo.
Por breves períodos mantive vínculo empregatício com a iniciativa
privada. Recusei nomeações do poder público. Por considerar compatível
com minha atividade pastoral, aceitei convite do presidente Lula para
integrar, em 2003, sua assessoria especial no gabinete de Mobilização
Social do Programa Fome Zero, ao lado de Oded Grajew.
Ali permaneci dois anos. Tive oportunidade de implantar dois
programas de ampla capilaridade nacional e ainda vigentes: a Rede de
Educação Popular, que atua segundo o método Paulo Freire na formação
cidadã de beneficiários do Bolsa Família; e o Escolas Irmãs, que
estabelece conexões solidárias entre professores e alunos de
instituições de ensino.
Minha tarefa principal consistia em mobilizar a sociedade civil em
prol do Fome Zero, sobretudo os Comitês Gestores que, eleitos
democraticamente nos municípios, cuidavam do cadastro dos
beneficiários e supervisionavam o cumprimento das condicionalidades do
programa de erradicação da miséria.
Muitos prefeitos reagiram. Queriam a si o controle do Fome Zero.
Temiam o despontar de novas lideranças locais via Comitês Gestores.
Exigiam decidir, por razões eleitoreiras óbvias, quem entra e sai do
cadastro. Por sua vez, o lobby do latifúndio — cerca de 200
parlamentares do Congresso — pressionava para o Fome Zero não efetivar
a reforma agrária, que lhe asseguraria caráter emancipatório e
constituía cláusula pétrea do programa do PT.
A Casa Civil deu ouvidos aos insatisfeitos. Tratou de substituir o
Fome Zero por um programa de caráter compensatório e, até hoje, sem
porta de saída, cujo cadastro é controlado pelos prefeitos: o Bolsa
Família. Oded Grajew regressou a São Paulo, o ministro Graziano foi
substituído, e eu, em dezembro de 2004, pedi demissão.
Voltei a ser um feliz ING — Indivíduo Não Governamental.
Às vésperas de encerrar o governo Lula, avalio-o como o mais positivo
de nossa história republicana. O Brasil mudou para melhor.
Entre 2001 e 2008, a renda dos 10% mais pobres cresceu seis vezes
mais que a dos 10% mais ricos. A dos ricos cresceu 11,2%; a dos
pobres, 72%. No entanto, há 25 anos, de acordo com o Ipea, metade da
renda total do Brasil permanece em mãos dos 10% mais ricos. E os 50%
mais pobres dividem entre si apenas 10% da riqueza nacional.
Sob o governo Lula, os mais pobres mereceram recursos anuais de R$ 30
bilhões; os mais ricos, através do mercado financeiro, foram
agraciados, no mesmo período, com mais de R$ 300 bilhões, o que
impediu a redução da desigualdade social.
Faltou ao governo diminuir o contraste social por meio da reforma
agrária, da multiplicação dos mecanismos de transferência de renda e
da redução da carga tributária nas esferas do trabalho e do consumo. E
onerar as do capital e da especulação.
Hoje, os programas de transferência de renda do governo representam
20% do total da renda das famílias brasileiras. Em 2008, 18,7 milhões
de pessoas viviam com menos de 1/4 do salário mínimo. Não fossem as
políticas de transferência, seriam hoje 40,5 milhões. Isso significa
que o governo Lula tirou da miséria 21,8 milhões de pessoas.
É falácia alardear que, ao promover transferência de renda, o governo
“sustenta vagabundos”. Isso ocorre quando não pune corruptos,
nepotistas, licitações fajutas, malversação de dinheiro público. No
entanto, a Polícia Federal prendeu, por corrupção, dois governadores.
Mais da metade da população do Brasil detém menos de 3% das
propriedades rurais. E apenas 46 mil proprietários são donos de metade
das terras. Nossa estrutura fundiária é idêntica à do Brasil império!
E o empregador rural não é o latifúndio nem o agronegócio, é a
agricultura familiar: ocupa apenas 24% das terras e emprega 75% dos
trabalhadores rurais.
A inflação manteve-se abaixo de 5%, cerca de 11,7 milhões de empregos
formais foram criados e o salário mínimo corresponde, hoje, a mais de
US$ 200. Isso permitiu ao consumidor planejar melhor suas compras,
facilitado por uma política de créditos consignados e a longo prazo,
malgrado as elevadas taxas de juros.
O governo Lula não criminalizou movimentos sociais; buscou o diálogo,
ainda que timidamente, com lideranças populares; melhorou as condições
dos quilombos; demarcou terras indígenas como Raposa Serra do Sol.
Ao rechaçar a Alca e zerar as dívidas com o FMI, Lula afirmou o
Brasil como país soberano e independente. O que lhe permitiu manter
confortável distância da Casa Branca e se aproximar da África, dos
países árabes e da Ásia, a ponto de enfraquecer o G8 e fortalecer o
G20, do qual participam países em desenvolvimento.
Estreitou relações com a África do Sul, a Índia e a China, valorizou
a Unasul e rompeu o “eixo do mal” de Bush ao defender a
autodeterminação de Cuba, Venezuela e Irã.
O governo termina sem que, nos oito anos de mandato, tenham sido
abertos os arquivos das Forças Armadas sobre os anos de chumbo, nem
apoiado iniciativas para entregar à Justiça os responsáveis pelos
crimes da ditadura. O país continua sem qualquer reforma estrutural,
como a agrária, a política, a tributária etc.
Na educação, o investimento não superou 5% do PIB, quando a
Constituição exige ao menos 8%. Embora o acesso ao ensino fundamental
tenha se universalizado, o Brasil se compara, no IDH da ONU, ao
Zimbabwe em matéria de qualidade na educação. Os professores são mal
remunerados, as escolas não dispõem de recursos eletrônicos, a evasão
escolar é acentuada.
Os programas de alfabetização de adultos fracassaram e o MEC se
mostrou desastrado na aplicação do Enem. De positivo, a ampliação das
escolas técnicas e das universidades públicas, o sistema de cotas e o
ProUni.
O SUS continua deficiente, enquanto o atendimento de saúde é
progressivamente privatizado. Hoje, 44 milhões de brasileiros estão
inscritos em planos de saúde da iniciativa privada. Mais de 50% dos
domicílios do país não possuem saneamento, os alimentos transgênicos
são vendidos sem advertência ao consumidor, os direitos das pessoas
portadoras de deficiências não são devidamente assegurados.
Governar é a arte do possível. Implica imprevistos e exige
improvisos. Lula soube fazê-lo com maestria. Espero que o governo
Dilma possa aprimorar os avanços da administração que finda e
corrigir-lhe as falhas, sobretudo na disposição de efetuar reformas
estruturais e ampliar o rigor na preservação ambiental. Tomara que a
presidente consiga superar a deficiência congênita de sua gestão: o
matrimônio, por conveniência eleitoral, entre o PT e o PMDB.
PS: O poder não muda ninguém, faz com que as pessoas se revelem.
FREI BETTO é escritor, autor de “A mosca azul” e “Calendário do
poder” (Rocco), entre outros livros.

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