Como conciliar um partido de quadros com as demandas das massas? Renovar o PSDB pede uma representação que não se esgote na eleição
Em geral são os movimentos religiosos que se refundam, voltam aos textos e aos fundamentos primordiais. Mas sob a capa do retorno ao passado quase sempre nasce uma interpretação, o aggiornamento de velhas ideias para que possam ter vigência em novas situações.
É diversa a situação da política quando uma importante derrota demanda antes de tudo um salto à frente que abra outros horizontes e outras perspectivas de poder. Qualquer retorno aos ideais antigos sem uma análise precisa dos enganos praticados e das novas demandas da população, enfim, sem uma agenda das atividades futuras, este tão só servirá de biombo para jogadas facciosas.
A última vitória do presidente Lula, elegendo uma personalidade política até então ignorada por grande parte da população, poderia ter sido um rolo compressor se não houvesse o segundo turno. Este mostrou que a excepcional popularidade do presidente não significa adesão imediata a seu governo. Grande parte da população quer a continuidade do crescimento econômico e social do País, mas admite a possibilidade de que isso possa ser alcançado por outros caminhos. No segundo turno, José Serra teve uma votação muito significativa, o que faz dele uma de nossas maiores lideranças, um capital político que não pode ser perdido. Agora cabe antes de tudo interpretar essa votação, ir além do que diz o eleitor ao votar, entender o sentido dessa cautelosa tomada de distância.
Parece-me que se a campanha de José Serra tivesse marcado mais suas diferenças com as propostas do governo, se tivesse empolgado a militância dos partidos oposicionistas, hoje ele seria o presidente eleito. Pierre Rosenvallon, analisando os procedimentos das democracias contemporâneas, distingue o período da aglutinação em vista da vitória eleitoral e o período da divisão, quando se faz a partilha do governo. O presidente Lula governou incluindo Deus e todo o mundo, evitando qualquer escolha que implicasse partilha. Por isso deixou para Dilma Rousseff decisões cruciais que, se postergadas, vão emperrar seu governo. Em contrapartida, nem sempre as oposições aglutinaram além do cerimonial da adesão.
O Brasil mudou, nosso capitalismo se fortaleceu, a sociedade se diversificou e, embora sem continuidade e de forma assistemática, tende a participar da política. Mas nosso sistema político como um todo, travado pelo jogo do poder imediato, parece-me ter se isolado das raízes da população, de seus maiores anseios. Presta atenção enorme ao que o eleitor pensa no momento e deixa de lado o diagnóstico do que ele pretende ser. Não é à toa que a educação seja a demanda mais importante. E a ela o sistema educacional como um todo, sob a orientação do governo ou da oposição, tem oferecido muito pouco. Não é o que provam as avaliações divulgadas pelo Pisa? Não dá para se contentar com os avanços que aparecem "de um ponto de vista histórico", porquanto nessa toada o País levará muito tempo para se modernizar. Um país tão pequeno como a Coreia, que revolucionou seu sistema educacional, não poderia nos servir de exemplo?
Nosso sistema representativo envelheceu. Mesmo o PT, hoje o partido mais articulado, com uma estrutura vertical bem definida, não representa a nova visão que o Brasil tem de si mesmo. Essa transparece na mídia, nas redes sociais da internet, no enorme interesse pela educação. Sua burocracia e a luta interna das facções emperram essa percepção. O que nos falta em geral é democracia, um processo representativo mais profundo que não se esgote na dinâmica eleitoral.
Sob esse aspecto, a demanda por uma renovação do PSDB também traz em si esse anseio. Enfim, como conciliar um partido de quadros com demandas das massas?
Mas criar alternativas viáveis não foi o que as oposições fizeram. Durante oito anos preferiram abocanhar migalhas do poder em vez de fazer uma crítica ponderada e severa do governo Lula. Não poderiam negar os avanços desse governo, mas desde logo não acentuaram que Lula embaralhou os sistemas de decisão e passou por cima da legislação em vigor. Se abriu possibilidades de progresso, imaginou-se como profeta capaz de tudo criar do nada. Nunca tomou uma decisão que maculasse seu manto de santidade.
As oposições não souberam criar uma identidade marcando suas diferenças. Erraram quando não fizeram uma análise pormenorizada do governo FHC, quando não interpretaram as privatizações no contexto de um projeto de nova forma de Estado. Aceitaram sem resistência o rótulo de neoliberal, sem avaliar seus acertos e seus enganos. Deixaram que este governo namorasse com um capitalismo de Estado, em vez de proteger agências reguladoras de perfil democrático.
Toda derrota política implica revisão do passado, mas sobretudo um novo desenho do que pode ser feito, com as forças, tanto aquelas disponíveis, quanto as que puderem ser conquistadas. E para que lideranças importantes não se percam no meio do caminho é preciso que todas as alas tenham suas vozes ouvidas e sopesadas. Hoje, a primeira tarefa das oposições é conquistar sua militância. Que esta tenha consciência de sua diversidade e seja capaz de costurar lideranças marcantes. Não é ela a primeira a ser consultada quando se pensa nos novos dirigentes dos partidos?
José Arthur Giannotti é professor emérito de filosofia da USP e pesquisador do CEBRAP. Autor, entre outros, de Trabalho e reflexão e Origens da dialética do trabalho
Fonte: O ESTADO DE S. PAULO
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